Por que excluímos crianças da vida urbana?
Na tentativa de proteger as crianças, mantendo-as dentro dos muros e dos carros, acabamos prejudicando o seu próprio desenvolvimento e contribuindo para o abandono dos espaços públicos nas cidades.
Se os condutores jovens são os que mais causam acidentes e os mais aptos a usar outros tipos de transporte, quais poderiam ser os efeitos de um aumento da idade mínima para dirigir?
14 de julho de 2025Em 2012, a mídia brasileira repercutiu a notícia do atropelamento de um ciclista no Rio de Janeiro por Thor Batista, filho do empresário Eike Batista. Com apenas 20 anos na época, Thor dirigia um carro de luxo que poderia chegar a até 334 km/h. O caso ficou mais polêmico quando o empresário alegou que foi a imprudência do ciclista que causou a sua morte, ao mesmo tempo em que as investigações apontaram que seu filho já havia recebido 11 multas nos 18 meses anteriores.
Infelizmente, os acidentes de trânsito frequentemente envolvem condutores jovens, o que pode ser explicado não só pela falta de experiência mas também por tendências de comportamento associadas à própria idade.
Com essa preocupação, o especialista em mobilidade Andy Boenau publicou o texto “The kids (driving) are not alright”, ou “As crianças não estão (dirigindo) bem”, explicando como os jovens tendem a se expor mais a situações de risco. No contexto estadunidense, onde adolescentes podem ter uma carteira de motorista com 16 anos, ele argumenta que um aumento na idade mínima para dirigir é uma forma de proteger os jovens e poupar vidas que são perdidas no trânsito.
Enquanto isso, o Brasil parece ir na contramão desse tipo de pensamento. Atualmente, está em tramitação um Projeto de Lei para diminuir a idade mínima permitida para dirigir, de 18 para 16 anos. O deputado autor da proposta considera “incongruente que ainda perdure a proibição de que jovens de 16 anos venham a conduzir carros ou motocicletas”. Neste artigo, pretendemos mostrar o contrário. Poderia ser até mais positivo para as cidades brasileiras se essa restrição fosse aumentada.
O artigo “Factors Contributing to Crashes among Young Drivers” buscou entender, a partir de uma análise comportamental, por que os motoristas mais jovens têm uma representação desproporcional nos acidentes de trânsito. Os condutores jovens, mais imaturos, tendem a superestimar sua habilidade na direção e são mais propensos a assumir comportamentos arriscados, como andar acima da velocidade permitida e deixar de usar o cinto de segurança. O estudo também mostrou que a presença de outros passageiros no carro aumentava as chances de um acidente fatal, indicando que as companhias podem incentivar o comportamento de risco ou ser uma distração para essa faixa etária.
Além disso, o uso do celular ao volante e o consumo de álcool antes de dirigir estão diretamente relacionados ao aumento da probabilidade de colisões. No Brasil, uma pesquisa de 2023 revelou que dirigir sob a influência de álcool é uma prática mais comum entre homens, jovens adultos e solteiros. Nos Estados Unidos, outro estudo identificou padrões de impulsividade nos motoristas entre 18 e 24 anos. Quase metade dos entrevistados já tinha se envolvido em pelo menos um acidente de trânsito, e mais de 73% admitiu já ter usado o celular enquanto dirigia.
A medicina explica essa tendência ao comportamento imaturo: o desenvolvimento do córtex pré-frontal – região do cérebro associada à tomada de decisões, emoções e reações – só termina aos 25 anos. Se o Código de Trânsito Brasileiro fosse reformulado com foco apenas nas evidências, talvez a decisão mais racional fosse estabelecer essa idade mínima como a mais adequada, e não os 16 anos, como o Projeto de Lei sugere.
É perfeitamente compreensível que, diante de uma proposta de aumento da idade mínima para dirigir, alguns jovens (e talvez os seus pais) lamentem a possibilidade de perder uma vantagem importante no dia a dia. Porém, deve-se ter em mente o benefício coletivo, que nesse caso seria salvar vidas no trânsito. Vidas, inclusive, dos próprios jovens, já que esse tipo de acidente é a principal causa de morte de pessoas entre 10 e 19 anos no mundo.
Dados de 2016 a 2018 mostram que, em um período de dois anos, 49.000 brasileiros de 18 a 34 anos foram vítimas de acidentes de trânsito que levaram a sequelas permanentes ou morte. Esse alto preço social, econômico e de saúde que estamos pagando deve nos motivar a repensar vários aspectos da nossa política urbana, incluindo a idade mínima para dirigir.
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Outro motivo para reconsiderar a idade permitida para dirigir é o fato de que os mais jovens estão mais aptos a utilizar os outros meios de transporte. Biologicamente, eles representam o grupo que tem mais facilidade para percorrer maiores distâncias a pé ou de bicicleta. Também são os mais propensos a usar o transporte coletivo sem grandes dificuldades, e via de regra estão mais familiarizados com as tecnologias que ajudam a descobrir as melhores rotas e a comprar passagens.
A Pesquisa Origem e Destino 2023, em São Paulo, revelou que a faixa etária dos 18 aos 22 anos é a que tem o maior número de deslocamentos por pessoa no transporte coletivo. Essa também havia sido a conclusão da edição anterior da pesquisa, em 2017. Outro estudo da consultoria Questtonó revelou, ainda, que a geração Z na cidade de São Paulo tem mostrado uma preferência por modais ativos e coletivos em detrimento do automóvel individual. As principais motivações são a consciência ambiental, a fuga do trânsito e a liberdade proporcionada.
Os padrões de deslocamento atuais dos mais jovens podem ser um indicativo de como eles se comportariam caso não tivessem a possibilidade de dirigir um automóvel ou motocicleta. Dessa forma, a tendência é que um aumento na idade mínima para dirigir incentive uma mobilidade urbana mais saudável.
É preciso considerar que os maiores privilegiados com a política atual de permitir a direção aos 18 anos são jovens de famílias mais ricas. Afinal, dificilmente uma pessoa que começa a dirigir aos 18 anos teve condições de adquirir um automóvel por conta própria. Levando em conta que essa também é geralmente a idade de ingresso no mercado de trabalho, a permissão para dirigir aos 18 anos reforça as desigualdades de acesso a empregos. Os jovens de famílias mais ricas, por poderem dirigir no cotidiano sem precisar ter conquistado o dinheiro necessário para isso, já iniciam a sua entrada no mercado em vantagem.
Por uma questão cultural, esses jovens também são os que menos têm contato com os espaços públicos. Muitos vêm de infâncias desenvolvidas em condomínios fechados, se deslocando de uma garagem para a outra, sem usufruir de calçadas, parques, praças ou do próprio transporte público. Diante disso, um desincentivo ao uso do carro – ou incentivo às outras alternativas de transporte – para essa faixa etária e de renda teria como provável benefício um engajamento maior com o espaço público e, inclusive, públicos distintos. Conforme explicado no artigo “Por que excluímos crianças da vida urbana?”, isso é importante para desenvolver a autonomia, a maturidade, a civilidade e a empatia dos jovens.
Sob outra perspectiva, também é necessário levar em conta a realidade dos entregadores de aplicativo no Brasil, dos quais 46,4% têm até 29 anos. Para esse grupo, cuja maioria ganha menos de dois salários mínimos e não tem Ensino Médio completo, poder obter uma CNH aos 18 anos parece importante para viabilizar uma oportunidade de renda. Entretanto, a suposta vantagem vira uma grande preocupação diante dos números: mais de 40% dos entregadores já sofreram algum acidente no exercício da função, e os acidentes de trânsito matam 17 vezes mais motociclistas do que pessoas que usam um carro. O perigo é reforçado também por uma política de incentivos para a maximização das entregas dos aplicativos.
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Ao olhar para esses grupos, notamos que a permissão para dirigir tão cedo ora beneficia desproporcionalmente famílias mais ricas, ora condena famílias mais pobres à morte precoce dos jovens.
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Embora não exista uma modelagem clara de quais seriam os efeitos práticos de uma lei que aumentasse a idade mínima para dirigir no Brasil, os dados que temos hoje são indicativos importantes. Uma vez que existem indícios de que essa política poderia poupar vidas no trânsito, incentivar uma mobilidade mais saudável e reduzir desigualdades, a reflexão e o debate são necessários.
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