Anti-cidades digitais?
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A ausência de assistência técnica de projeto e acompanhamento das reformas no desenho inicial do Programa Reforma Casa Brasil ameaça o potencial transformador da nova política do governo federal, lançada em outubro.
15 de dezembro de 2025O anúncio do Programa Reforma Casa Brasil, em outubro deste ano, trouxe de volta à cena da política nacional um tema que habita o cotidiano de milhões de famílias: o sonho de melhorar a própria casa. Com uma previsão de R$ 30 bilhões em crédito para reformas, ampliações e adequações, o governo federal promete estimular a economia local, gerar empregos e ampliar o direito à moradia digna. Trata-se de um programa de grande alcance simbólico e, sobretudo, econômico. No entanto, como toda política que toca o cotidiano dos brasileiros, ele carrega em si tensões estruturais, como a ausência no desenho inicial do programa de uma assistência técnica de projeto e acompanhamento.
A Nota Técnica nº 55 do Ipea (2025) dimensiona com clareza o tamanho do desafio do país: 16,3 milhões de famílias vivem em moradias com pelo menos uma inadequação habitacional. São mais de 70 milhões de pessoas – quase um terço da população brasileira – que convivem com o adensamento excessivo, a ausência de banheiro, de ventilação ou o risco estrutural. O custo estimado para eliminar essas precariedades é de R$ 273,6 bilhões. Não é pouco – mas é similar aos subsídios para a construção de 5 milhões de unidades habitacionais no primeiro ciclo do MCMV. É, portanto, um valor alto que o país teria condições de realizar, sobretudo considerando os impactos positivos associados às dimensões da vida social e econômica.
Inadequações habitacionais, como falta de ventilação, são responsáveis por casos de tuberculose endêmica e crianças que não aprendem com níveis altos de CO2 dentro da casa. Vergonhosamente, temos 1,2 milhão de casas sem banheiro em pleno século 21. Contudo, o dado mais revelador talvez seja o perfil dessas famílias: 78% dos domicílios inadequados são chefiados por mulheres, e três em cada quatro dessas mulheres são negras. A precariedade habitacional, portanto, não é neutra: ela tem gênero, cor e território.

Mais de 80% das moradias brasileiras foram erguidas sem acompanhamento formal de arquitetos ou engenheiros. Essa estatística, longe de ser apenas um sintoma da erroneamente chamada “informalidade”, revela o que deveríamos reconhecer como a maior política habitacional da história do Brasil: a autopromoção habitacional. É por meio desse setor, não do público e tampouco das construtoras privadas, que milhões de brasileiros – pedreiros, carpinteiros, diaristas, vizinhos solidários – constroem e ampliam suas casas, um cômodo de cada vez, conforme a renda e o tempo permitem.
Essa construção cotidiana, fragmentada e persistente, ergueu cidades inteiras. E, nos últimos anos, o setor da autopromoção se expandiu de diversas formas: as construções se verticalizaram, foram criados mercados de aluguel por aplicativos, impôs-se ao Estado o reconhecimento legal do direito de laje. Toda essa criatividade que nasce da escassez artificialmente produzida, a capacidade popular de criar soluções com pouco, de resistir e reinventar o espaço urbano diante da ausência do Estado constituem o potencial de emancipação do povo brasileiro e fonte efetiva de inserção independente, autônoma e altiva no desenvolvimento das nações.
No entanto, essa força segue invisibilizada e desvalorizada. O que chamamos de “informalidade” é nada mais que o nome burocrático e tecnocrático da exclusão. Enquanto as classes médias e altas constroem com projetos e alvarás, sempre possíveis pelas revisões dos planos diretores, os pobres constroem com coragem, improviso e imaginação. E é justamente nesse ponto que políticas públicas como o Reforma Casa Brasil precisam de um olhar mais fino. Sem assistência técnica associada à tecnologia da quebrada, essas reformas podem reproduzir as mesmas patologias hoje existentes nas casas, aprofundando ainda mais as desigualdades e riscos que pretendem combater.
No campo da política pública, especialistas têm preferido o termo “melhorias habitacionais”. O conceito se distingue das reformas individuais porque envolve planejamento, diagnóstico, priorização e acompanhamento técnico, voltados a corrigir inadequações estruturais. No governo federal e no Ipea em particular, temos desenvolvido, ao longo dos últimos anos, metodologias de pesquisa baseadas em kits de melhoria, que identifica a inadequação, relaciona com uma solução (kit), que por sua vez tem o custo médio regional para a execução completa definido, sendo possível contratar itens como banheiro, novo cômodo, cobertura, etc. A lógica é simples e potencialmente transformadora: a execução do kit não se mede em sacas de cimento ou metros cúbicos de areia, mas por resultados concretos – um banheiro entregue, uma casa ventilada, uma vida com dignidade.
Essas ações têm efeito multiplicador. A indústria da construção civil tem interesse em vender em escala soluções pré-moldadas, com menor pegada de carbono, mas precisam associar essa tecnologia à tecnologia do Brasil real, à potência da gambiarra, do jeitinho. Melhorias habitacionais não apenas qualificam as condições de moradia, mas impulsionam o comércio local, têm o condão de espalhar pelo país médicos e enfermeiros nas casas, criam empregos e reduzem desigualdades. São políticas eficientes, rápidas e de alta capilaridade, que se conectam a temas como saúde familiar, segurança alimentar, educação infantil, igualdade de gênero, trabalho decente, sustentabilidade ambiental e segurança pública. Em termos simples, melhorar casas é melhorar o país.
Para que o Reforma Casa Brasil alcance seu verdadeiro potencial, é preciso enxergar e mobilizar o Brasil que já faz. Pesquisas do Ipea e do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) identificaram 379 Organizações da Sociedade Civil (OSCs) que atuam com Habitação de Interesse Social (HIS) — número que deve se aproximar de oitocentas até o fim de 2025. Essas entidades, espalhadas em periferias urbanas e áreas rurais, formam uma rede viva de conhecimento técnico, social e comunitário. São associações, cooperativas, coletivos e mutirões que há décadas constroem, reformam e projetam habitações populares.
Leia mais: Soluções transitórias para o desafio habitacional brasileiro
Reformar casas é reformar vidas, mas também é reconstruir o próprio país. É, em última instância, um ato civilizatório. Pois, ao corrigir uma instalação precária, erguer uma parede firme ou abrir uma janela para o vento e o sol, o Brasil reencontra a si mesmo – reencontra o seu povo. Entretanto, para isso é preciso que o Estado veja o território não como problema, mas como potência; reconheça nas mãos dos que constroem não apenas força de trabalho, mas sabedoria, imaginação e cidadania.
Renato Balbim é técnico de planejamento e pesquisa no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), doutor em geografia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor pela University of California Irvine.
Uma primeira versão deste artigo foi publicada originalmente no Le Monde Diplomatique , em novembro de 2025.
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