Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O que os Jogos representam pode dificultar a visão do que eles trouxeram efetivamente para a cidade — não só neste momento, mas nos próximos anos, considerando as demandas de uma população com necessidades concretas e, em grande parte, historicamente não atendidas.
27 de setembro de 2016Os ingleses têm uma expressão interessante: learn to walk before you run — “aprenda a caminhar antes de correr”. Antes do excepcional, faça o dever de casa, essa expressão ilustra — pelo inverso — o Rio Olímpico. Os Jogos Olímpicos Rio 2016 alteram o cenário urbano do Rio de Janeiro, obras e destinação de verbas são justificadas pelo chamado ‘legado olímpico’, transformações que seriam positivas para a cidade. O que os Jogos representam pode dificultar a visão do que eles trouxeram efetivamente para a cidade — não só neste momento, mas nos próximos anos, considerando as demandas de uma população com necessidades concretas e, em grande parte, historicamente não atendidas. Mas nessa disputa de narrativas, vale trazer algumas questões importantes não só para arquitetos, urbanistas e planejadores, mas para qualquer pessoa que se interesse por (sua) vida na cidade. Vejamos o que prevalece neste suposto legado ao confrontá-lo com as prioridades reais do Rio.
O Rio é marcado pela precariedade. O déficit habitacional se aproxima de 1,5 milhão de pessoas (220 mil unidades) vivendo sem salubridade, em coabitação ou sem habitação, segundo a Fundação João Pinheiro e IBGE. As habitações construídas para os Jogos — as Vilas da Mídia e Árbitros — se relacionam a esse déficit: 3 mil unidades, atendendo menos de 1,4% da demanda. Já a Vila dos Atletas, um conjunto com 3600 unidades com valores de até um milhão de reais, não é acessível às pessoas de menor renda — e segue o modelo de urbanização da Barra da Tijuca, seriamente criticado por sua baixa caminhabilidade e predominância de muros e grades, aumentando a insegurança do espaço público e a dependência do carro para o deslocamento. São um símbolo do urbanismo não-sustentável e um retrocesso para o desenvolvimento urbano do Rio.
Outro emblema, o Porto Maravilha, poderia incentivar o uso residencial e incluir habitações de interesse social, como ocorreu em Londres (chamadas ‘affordable housing’, uma preocupação constante no exterior). Contudo, os empreendimentos em desenvolvimento são essencialmente corporativos, não contribuindo para diversificar e dinamizar a área — e tem seu impacto sobre as comunidades locais e a gentrificação da região ignorado no discurso oficial. As 10 mil unidades de habitação de interesse social previstas para o Porto se tornaram uma incógnita, em função do impacto que sua mera menção teria sobre os valores imobiliários na área. O planejamento para distribuir oportunidades de boa localização para a menor renda é rejeitado em decorrência de preconceitos silenciosos que atravessam o mercado. A cidade segue pensada da perspectiva da separação das classes e isso só ocorre em contextos onde as decisões não são públicas no verdadeiro sentido, onde se atendem interesses privados em detrimentos das necessidades públicas. Essas decisões precisam estar sujeitas a um critério (também ético) mais alto, que deveria ser compartilhado e cumprido pelos atores do jogo imobiliário e do jogo institucional.
O Rio vive, desde 2008, uma bolha imobiliária sem precedentes. O economista de Harvard, Edward Glaeser, menciona em seu livro “O Triunfo das Cidades” o caso clássico da valorização do solo em Manhattan, de 285% entre 1970 e 2000. Pois o Rio, nos 7 anos, entre janeiro de 2008 e janeiro de 2015, teve uma valorização de 266% (figura 1). A única cidade no Brasil a se aproximar deste percentual foi São Paulo (218% no mesmo período). Outras capitais brasileiras ficam bem abaixo, como Belo Horizonte (109% entre julho de 2009 e julho de 2016), mas elas compõem conjuntamente a maior valorização imobiliária entre 58 países, entre 2007 e 2014.[1] Em outras palavras, o Rio foi a cidade com a maior valorização imobiliária do mundo no período. Ainda que outros fatores possam compor essa alta espetacular, como o aumento de renda no país e a crise global, o ‘Rio Olímpico’ se mostra como um fator chave, sobretudo em um mercado imobiliário amarrado a capitais financeiros internacionais, interesses rentistas e a exploração (especulativa) das expectativas de valores futuros.[2]
A questão econômica traz ainda o problema dos custos dos Jogos e demais obras, da ordem de 40 bilhões de Reais, e da dívida da prefeitura, ainda largamente desconhecida do público. Sabemos que Montreal, no Canadá, sede dos Jogos de 1976, só conseguiu quitar sua dívida em 2005; Atlanta (sede em 1996) ainda paga as suas; e em Atenas (Jogos Olímpicos 2004) a dívida adquirida não exatamente amenizou o processo de falência econômica da Grécia. Ao que tudo indica, não há certeza dos impactos positivos diretos desses megaeventos nas economias das cidades sedes — sobretudo se incluirmos queda na atividade comercial durante os Jogos e os custos de manutenção dos equipamentos esportivos que permanecerão após estes (os danosos ‘elefantes brancos’).[3]
Tivemos uma abertura de frentes de obra extensas pela cidade — incluindo a de reservatórios para proteção contra enchentes, o túnel em substituição do elevado junto à Orla portuária (demolição da perimetral) e a requalificação desse espaço público. Outro projeto (ainda não finalizado) percorrendo Zonas Norte e Oeste, o sistema BRT não é obra exclusiva das Olimpíadas, mas teve seus trajetos influenciados por ela. Os indicadores sobre uma de suas linhas, a TransCarioca, mostram reduções de tempo de deslocamento para usuários, mas indicam também pouco resultado em tirar carros da rua — o principal objetivo de um transporte de massa (e o BRT é controverso nesse sentido): apenas 4% dos seus usuários migraram do uso do veículo privado para o BRT (dado do ITDP), e o sistema já extrapola sua lotação máxima, mesmo recém implantado.
A extensão do metrô contrariou pareceres técnicos e terminou beneficiando grandes incorporadores da Barra da Tijuca (e um deles declarou ao jornal inglês The Guardian que “a Barra não é lugar para pobres”):[4] não leva ao principal polo de emprego (o centro histórico) mas à Zona Sul, um artifício que valoriza áreas a urbanizar, da propriedade de poucos, à despeito das futuras perdas cotidianas de milhares de pessoas em tempos de deslocamento e superlotação.
Essa política torna-se mais desastrosa no planejamento discriminatório que gerou remoções e violência, fartamente divulgadas na imprensa internacional (podemos ver imagens desses incidentes na CNN ou na BBC, mas não tão facilmente na mídia local)[5] — um ‘marketing negativo’ com o qual autoridades do Rio de Janeiro não parecem incomodadas — e mais uma demonstração de incivilidade e da distância entre elas e a população.
De fato, é difícil conceber que uma cidade construa um Museu do Amanhã, investimento de 300 milhões, antes de cuidar das urgências de ontem e de hoje, como impedir o despejo diário do esgoto in natura, de milhões de pessoas, em suas lagoas, rios e mar — uma cidade que recicla menos de 3% do lixo que produz.
Diversas cidades estão dizendo “não” às propostas de candidaturas aos Jogos — na verdade, onde quer que esteja havendo consulta democrática, tem havido rejeição das propostas[6]. As razões têm a ver com “fazer o dever de casa”: Boston (“melhorar a educação e as ruas”), Estocolmo (“necessidades como a construção de moradias de interesse social”) e Hamburgo (“evitar a gentrificação e se preparar para receber refugiados”).[7]
O fato do COI ter declarado que mudará suas demandas para futuros Jogos diz muito sobre a conturbada preparação para o Rio 2016 — e são uma vitória para os movimentos de resistência ao rolo compressor que muitas das reformas trouxeram, como o emblemático caso de Vila Autódromo.[8]
A pergunta que fica é: o que o legado olímpico representa de fato diante dessas demandas históricas? À despeito da movimentação do evento e algumas das obras de infraestrutura, os Jogos Olímpicos no Rio também parecem alinhados com uma agenda de obras desenhadas para beneficiar não a população em geral, mas o interesse de atores imobiliários. A construção da Linha 4 do metrô, conectando Zona Sul e Barra e a conversão de uma área de proteção ambiental, com dezenas de hectares de frente para o mar na própria Barra, em campo de golfe, prepararam o terreno para um negócio multimilionário, destinado a poucos. Complementando essas ações, e de certa forma garantindo seu sucesso, foram removidas as habitações informais que ocupavam a região, — que poderiam ter permanecido onde estavam, urbanizadas, dignificando sua presença e o megaevento.
Essas são evidências de decisões capturadas por parcerias público-privadas no pior sentido: aquelas feitas em gabinetes fechados, ignorando o interesse popular. O plano de reformas para as Olimpíadas permitiu um ‘regime de exceção’[9] onde obras foram impostas, sem suficiente transparência pública e cuidado democrático. A narrativa oficial dos Jogos Olímpicos, incluindo a habitual discrição dos grandes veículos da mídia nacional sobre essas contradições, permitiu essa incivilidade.
O Rio não teve planejamento para prepará-lo para a escala e números populacionais que veio a ter. Não fez uso efetivo do evento Olímpico para reparar suas dívidas históricas — e pior: se tornou símbolo da violência contra os menos favorecidos. Nada mais distante do “fazer o dever de casa” e de um “legado Olímpico” positivo.
[1] Dados do Bank for International Settlements (BIS): http://www.bis.org/statistics/pp_residential_lt_1505.pdf. O Estado de São Paulo: http://bit.ly/1tWaJYu. Percentuais do índice FIPE-ZAP: http://www.zap.com.br/imoveis/fipe-zap-b/ . Agradecemos a Anthony Ling por levantar pontos importantes sobre este tema.
[2] ‘Especulação imobiliária’ não é o mesmo que ‘incorporação imobiliária’ (capital em busca de lucro): especulação se refere a uma dimensão rentista, i.e. uma busca de renda que envolve explicitamente expectativas de valores futuros da terra. A dimensão temporal é importante, bem como o aproveitamento de ações alheias à empreitada. Agradecemos à Fernanda Furtado (UFF) por essa observação. Veja trabalhos de Fernanda Sanchez (UFF) e colegas, e Raquel Rolnik (USP), sobre megaeventos, mercado imobiliário e financeirização.
[3] Leia este debate entre economistas sobre os ganhos e perdas dos Jogos Olímpicos no New York Times: http://nyti.ms/2b4k0RL
[4] The Guardian http://bit.ly/29aJRmu; BBC Brasil http://bbc.in/1J7nwEF
[5] Wall Street Journal: http://nyti.ms/29c2ypn; BBC: http://www.bbc.com/news/world-latin-america-36849175
[6] Veja Gaffney em: The Guardian https://www.theguardian.com/sport/2016/jul/27/biggest-threat-future-olympic-games-rio-2016-ioc-thomas-bach-hosts
[7] Boston: http://bit.ly/2bo8mfy; Estocolmo: http://bit.ly/1zRywzF; Hamburgo, Rome e outros casos: http://bit.ly/2amBczO
[8] Vox: http://bit.ly/28XrgcQ
[9] Veja os estudos de Fernanda Sanchez (UFF) e colegas sobre esta interpretação.
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Caro, uma rápida resposta: a ideia de ‘espaço público’ privado é uma contradição absoluta, de essência. Um espaço aberto mas propriedade de algum grupo não é público por definição – pode ter acesso público, mas este tende a ser um acesso controlado – como as ruas de um condomínio ou um shopping. É diferente de um espaço gerenciado por uma comunidade, por exemplo. O espaço público segue com importância nas nossas cidades; muitas ruas não têm a qualidade de infraestrutura que deveriam, certamente, e esse é um problema do Estado. Mas há também um problema da falta de interesse do público em cuidar do espaço público. No Brasil, diferente de outros lugares, o espaço público é desvalorizado: termina sendo ‘de ninguém’ e não ‘de todos’. É uma questão de cultura – não de conversão em espaços privados.
Sim, a contradição existe é verdade. Porém, o estado fracassou na gestão do espaço público especialmente nas periferias violentas. Por que não experimentar o concurso da iniciativa privada? São Paulo precisa de inovação para libertar-se do imobilismo.
Anthony, o que pensas a respeito da ideia de bairros construídos privadamente como Alphaville em Barueri?
Vou por outra linha de raciocínio.Por que as metrópoles brasileiras – e não só o Rio – são territórios conflagrados, ineficientes, caras e produzem segregação, especulação e destruição do meio ambiente? A resposta é a migração. A migração (e não a reforma agrária) porém é vista como muita gente como a solução para as famílias mais pobres. A pobreza brasileira deveria migrar para as ‘ricas’ cidades do sudeste onde há dinheiro para resolver problemas. A classe política esfrega as mãos. Os imensos bolsões de pobreza que devastaram Rio e São Paulo são vistos como um formidável e inesgotável manancial de votos. Se a olimpíada não tirou o Rio da situação de calamidade, pelo menos abaixou momentaneamente a febre da violência e realizou uma admirável plástica urbana. A intenção clara das olimpíadas não era a valorização dos esportes mas da cidade, atraindo investidores e talentos para lá. Cansei de ver na TV gente falando em ‘vocação natural da cidade’ para a realização de megaeventos internacionais exclusivamente no Rio de Janeiro, justificando a Rio92, Rio+20, Jogos Panamericanos, Copa 2014 e Rio-2016. No entanto, a conta vai chegar e será paga por todos os brasileiros uma vez que o estado RJ está quebrado.
Caro, há algum dado que dê suporte a afirmação de que a migração é o culpado de todos esses males? Pessoalmente, desconheço esse dado – as taxas de migração entre regiões no Brasil vêm caindo desde os anos 1950, quando tiveram seu pico, e hoje são quase nulas – e, desde os anos 1980 e 1990, são mais ‘polinucleadas’, mais dentro das regiões do que entre elas. Colocar a origem desses problemas na migração significa não considerar coisas como valor do solo, produção fragmentada do tecido urbano, diferenças de renda, falta de planejamento, etc…
Meu caro Vinicius, vc tem razão. O verbo deveria estar no pretérito. A migração FOI a responsável pela pauperização das metrópoles do sudeste mais Brasília. Não existem dados oficiais demonstrando mas basta ser um bom observador para chegar a essa constatação. Ou para quem é do ramo, uma consulta aos dados do IBGE pode levar a essa conclusão. Converse com as pessoas mais velhas. Elas vão lhe contar como era São Paulo em 1950, 1960 e 1970 em diante. Porém, reconheço que o assunto é melindroso e o debate, inexistente. Melhor continuar amordaçado.
Pegando um gancho na pergunta do Rodrigo. Alguns dos melhores de SP são frutos da iniciativa privada: Alphaville, Aldeia da Serra, Tamboré, Chacara Flora, Sete Praias e todos os planejados pela cia. City. Onde o espaço público foi deixado nas mãos do estado transformou-se na tragédia que conhecemos. Planejamento urbano é algo que foi relegado ao último lugar na lista de prioridades do governo. Nos primeiros lugares estão as ações que dão voto imediato. O problema dos condomínios fechados como fortalezas é o amedrontador muro em redor deles transformando as ruas em meros espaços de passagem de automóveis e segregando o bairro do restante da cidade. Assim como as favelas, os condomínios são a imagem da anti-cidade. Por isso que sou a favor de entregar as áreas de mananciais à iniciativa privada para a construção de bairros mistos. Além de todo o ganho em planejamento de novos bairros o investimento ficaria aqui e não lá no km 180 da Castelo Branco onde estão brotando novos empreendimentos destinados a quem trabalha na capital.