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Quando é anunciada a construção de um edifício com grande altura, há sempre um espanto. Pessoas contestam que a altura irá fazer sombra, tirar a vista, transformar a paisagem, barrar o ar, gerar muito trânsito etc. Mas será que a altura da edificação é capaz de trazer à tona tudo o que há de ruim para uma cidade?
Terri Boake, pesquisadora da Universidade de Waterloo, no Canadá, diz que é um equívoco focar a discussão na altura de um edifício, por mais alto que ele seja. O foco na altura leva a uma discussão de apelo principalmente estético, enganando o que realmente deveria estar sendo observado: a condição da base da edificação, onde ocorre de fato a relação de acesso e interação com a rua e com a cidade. É neste encontro onde ocorre a maior interferência na vitalidade da paisagem em uma metrópole.
Jan Gehl, no seu já célebre livro “Cidades para Pessoas”, afirma, em uma metáfora, que após o 8.º pavimento a interação do morador é com os aviões, e é antes disso que o edifício deve se relacionar com a cidade. No entanto, essa discussão quase nunca ocorre.
Nos dois últimos edifícios altos construídos em São Paulo — Figueira Altos do Tatuapé e Platina 220 —, a discussão enveredou para a descaracterização do bairro, impacto na paisagem, a altura perante os edifícios vizinhos e vistas perdidas pelas vizinhanças, com muitas imagens de drone a partir de ângulos impossíveis para qualquer cidadão. A discussão a respeito de como o térreo dessas edificações se relacionam com a cidade e que vitalidade poderiam trazer (ou não) para seu entorno praticamente inexistiu. O Platina 220 tem lojas no térreo, mas isso é suficiente? E o Figueira Altos do Tatuapé, o que faz para trazer vida para as ruas normalmente muradas pelos condomínios?
O caso emblemático dos arranha-céus de Balneário Camboriú segue o mesmo padrão, criticados pela sua estética e sua altura próxima à faixa de areia da praia. De fato, são pontos questionáveis. No entanto, pouco se fala sobre seus pavimentos térreos, grande parte deles no alinhamento da calçada e repletos de lojas e serviços, tornando Balneário uma cidade ótima para passear e caminhar. Por exemplo, poucos sabem que o Yachthouse Residence, que já foi o edifício mais alto do Brasil, possui a chamada “fachada ativa”, com “os olhos da rua”, ou seja, com vitrines de lojas no alinhamento da calçada.
No Canadá, mais especificamente em Vancouver, é comum ver nos tapumes das construções de empreendimentos imagens simulando como ficará os térreos das edificações. A exemplo do The Stacke do 601 West Hastings, o intuito é mostrar para a população que passa pelo local como ficará o lugar por onde elas caminharão no futuro. É uma sinalização de como os edifícios se integrarão com o tecido urbano já existente, sem esquecer das pessoas. As imagens aéreas, de como será o corpo do edifício, nem sequer são mostradas, por ser um ângulo irrelevante para o pedestre.
Já em Toronto, a condição da base é definida pela altura das edificações vizinhas, na tentativa de se criar um harmonioso contexto com o local existente. Quando não há contexto para se compatibilizar, a base pode chegar até uma altura de 24 metros em determinadas ocasiões. O objetivo dessas condições é respeitar uma escala mais humana, para que, na torre, o edifício possa chegar a alturas de até 300 metros. Essas e outras características estão expostas no Toronto Tall Building Design Guidelines, um guia prático de como melhor inserir uma edificação alta na cidade.
Londres possui guias práticos como Toronto. O Guidance on Tall Buildings e o Tall Buildings: Historic England Advice Note 4são documentos elaborados pelo Design Council CABE (Commission for Architecture and the Built Environment) em associação com o English Heritage, em que uma série de diretrizes para os novos edifícios em altura são apresentadas. Dentre essas diretrizes, os parâmetros estabelecidos para a preservação dos visuais de edificações históricas influenciam em grande escala as novas construções.
Dois arranha-céus se destacam: The Shard — segundo edifício mais alto da Europa, atrás apenas do Lakhta Tower, em São Petersburgo — e o Leadenhall Building, no coração da City de Londres. Localizados em ruas estreitas, ambos possuem recuos mínimos com as edificações lindeiras, e padrões de alinhamentos, sequências e permeabilidade são aplicados garantindo uma relação contextual entre escalas nas suas bases com a paisagem da rua. Resultado dessas características são térreos vibrantes sendo usados como espaços de permanência pela população londrina.
Sobre térreos vibrantes é o que trata o professor Kheir Al-Kodmany, da Universidade de Illinois, em Chicago, no seu livro “Understanding Tall Buildings: a theory of placemaking”. A ideia do livro de Al-Kodmany é trazer uma série de exemplos e princípios de que a tipologia de edifícios altos possui a capacidade para criação de térreos vivos em torno de sua localização, pelo simples fato do potencial que uma edificação em altura tem de reunir pessoas.
Dentro desses princípios está a criação de um “micro-urbanismo” com os edifícios em altura que ajudaria na geração de placemaking e na escala humana. Um exemplo conhecido por brasileiros é o quarteirão onde estão localizados os edifícios Itália e Copan em São Paulo. A quadra comporta edifícios de diferentes alturas, com o princípio do embasamento trazer a escala humana. Os prédios possuem ruas internas e térreos fluídos, favorecendo a conexão entre a calçada e o edifício, existindo uma passagem entre as vias que forma galerias de lojas e acessos aos edifícios. Essa mescla de espaços público-privados permite compreender uma condição de “sentido de lugar” fazendo com que a rua adentre os edifícios altos.
O “sentido de lugar” estaria, assim, intimamente ligado ao “sentido de chegada”, como se refere James Goettsch, presidente do Goettsch Partners. Isso porque, ao se aproximar de um edifício em altura, as relações de perspectiva, bem como a noção de escala e de continuidade com relação ao contexto onde o edifício se insere, são tanto dados que edificam um percurso até o edifício, quanto dados que auxiliam na construção de um lugar que já existe, conformando ou reforçando visuais preexistentes.
A maneira como a Torre Reforma, na Cidade do México, foi inserida no seu contexto serve como exemplo para a compreensão desse “sentido de chegada”. Ao caminhar ao longo do Paseo de La Reforma, avenida em que o edifício está inserido, é possível perceber a opção por uma inserção contextualizada do térreo do arranha-céu com seu entorno. Ao preservar o casarão neogótico localizado no terreno, a única percepção da Torre Reforma, no nível do observador, são as duas paredes de concreto que a sustentam. Embora essas estruturas estejam na testada do terreno com a avenida e sigam até o topo da torre, o que predomina, em termos de sensação, é a permanência do casarão, mantendo preservado o “sentido de chegada ao local”.
Contextualizar edificações em altura no tecido urbano já existente é um dos conceitos sugeridos por estudiosos do tema para um futuro mais humanizado dos arranha-céus. Desta maneira, o intuito desse texto é mostrar por diversas maneiras como um edifício alto pode estar integrado nos seus respectivos locais. Em um mundo que busca por maiores densidades é inevitável a construção de edificações altas. O primeiro parágrafo do Tall Buildings: Historic England Advice Note 4 já diz: “edifícios altos bem projetados podem contribuir positivamente para a vida urbana.”
Julgá-los por sua altura é um equívoco que não traz benefício algum para a urbanidade do local. A crítica deveria estar focada na base do edifício alto, e não só do alto, mas também do médio, do baixo e das casas. Bairros de condomínios fechados de torres ou propriamente de casas muradas são inúmeras vezes mais maléficos para a vida urbana do que regiões repletas de arranha-céus com térreos ativos. Que nos próximos anúncios de construções de edifícios altos a discussão passe a ser “como esse edifício interage com a escala humana?” E deixem a altura em paz!
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