Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar o conteúdo. Saiba mais em Política de privacidade e conduta.
Algumas semanas atrás estive em Buenos Aires e, apesar da crise que o país está passando (e tem passado nos últimos anos), a cidade se encontra surpreendentemente bem cuidada. Parques e praças são limpos e bem mantidos; há vida urbana, com pedestres nas ruas e cafés e comércio de rua movimentado; se vê mais ciclistas nas ruas e há múltiplas opções de transporte para diferentes trajetos.
Enquanto frequentemente olhamos para países desenvolvidos em busca de referências de planejamento urbano, às vezes falhamos ao ignorarmos as boas práticas urbanísticas dos nossos vizinhos latino-americanos. Afinal, o que faz Buenos Aires ser uma cidade tão agradável?
O planejamento da expansão urbana, separando espaço público do privado, é uma das tarefas fundamentais do planejamento urbano. No Brasil, no entanto, é uma arte esquecida, onde a expansão urbana é desenhada de forma errática e privada, por loteadores que aprovam projetos com suas prefeituras locais. Um caso emblemático que deixamos para trás é o de Belo Horizonte, que definiu antecipadamente sua malha viária em uma área de 10 km² dentro da Av. do Contorno no final do século 19.
Como exemplos internacionais clássicos é possível citar o Eixample, de Barcelona, que definiu uma malha viária para cerca de 25 km², e Nova York, que já no início do século 19 definiu quase 60 km² de área com a sua famosa grelha xadrez com ruas numeradas. Buenos Aires, um exemplo pouco valorizado internacionalmente, definiu toda a sua malha viária em 1904, abrangendo uma área de cerca de 190 km², ou três vezes a ilha de Manhattan. De acordo com o Censo de 1904, a cidade crescia rapidamente, tendo quase dobrado a sua população entre 1895 e 1904.
Assim, em 1904 se publica pela primeira vez o traçado da quadrícula para todo seu território, estendendo o que já se manifestava na cidade pré-existente, herança da sua origem no urbanismo espanhol. À época com uma população de um pouco mais de 500 mil habitantes, o plano reservou os espaços públicos – inclusive dos principais parques e praças – e permitiu o desenvolvimento da cidade com poucas alterações viárias até os dias de hoje, em que a capital argentina possui mais de 3 milhões de habitantes.
Infraestrutura como prioridade
Reservados os espaços públicos da malha viária, o futuro se torna mais previsível e é mais factível pensar na expansão da infraestrutura da cidade. Em 1913, o Ministério de Obras Públicas já publicava um memorial com as obras sanitárias de Buenos Aires. A área urbana consolidada já contava com saneamento integralmente, e se projetou a cobertura de toda a área da capital federal com cobertura de saneamento até 1919.
Da mesma época, a Linha A, primeira linha de metrô subterrâneo da cidade (e de toda América Latina, assim como todo hemisfério sul) foi inaugurada em 1913, construída pela Companhia de Trens Anglo Argentina. Em 1912 a Companhia Lacroze Hermanos ganhou uma concessão para construir a Linha B, inaugurada em 1930. Até a metade do século 20 a rede passou por uma grande expansão.
É inegável que, no início do século 20, a Argentina era um dos países mais ricos do mundo, tendo recursos, à época, para construir infraestruturas rivalizando com outras potências mundiais. No entanto, passados mais de 100 anos dos anos dourados argentinos, hoje temos no Brasil um PIB per capita cerca de três vezes o que a Argentina tinha no início do século passado. No entanto, a maioria das grandes cidades brasileiras não priorizaram as obras indispensáveis de infraestrutura e se mantêm atrás de Buenos Aires neste aspecto.
Densidade e vida urbana
Com uma malha viária definida e uma rede de transportes de massa, Buenos Aires permitiu o adensamento das suas áreas centrais a níveis bastante acima das principais cidades brasileiras. Em bairros como Recoleta ou Balvanera a densidade demográfica fica próxima de 30 mil habitantes por km², cerca de três vezes a densidade de bairros como Itaim Bibi ou Moema, em São Paulo.
Como já apontado pelo Luis Henrique Villanova neste site, a tipologia dos edifícios de Buenos Aires, sem recuos frontais ou laterais, com épocas, tamanhos e usos diversos, possuem uma configuração que favorece a caminhabilidade. Essas características, ainda, são comuns nos nossos centros históricos, que cresceram antes das regulações contemporâneas de uso do solo, as quais incentivam torres isoladas nos lotes.
O novo regramento construtivo de Buenos Aires, apresentado em 2018, também buscou desincentivar a tipologia de torres isoladas e favorecer a consolidação das quadras existentes, ou seja, levando em consideração os edifícios já construídos na quadra. Esse caminho é mais pragmático que pensar em tipologias de edificações como se a cidade fosse uma folha em branco, fator comum na definição de parâmetros construtivos na legislação urbanística brasileira.
A forma construída de Buenos Aires favorece fortemente a presença de comércio de rua diversificado que, por sua vez, age para retroalimentar a relação entre os edifícios e o espaço público e, consequentemente, a caminhabilidade. Além disso, parece haver um cuidado com o espaço público: certa padronização e continuidade de calçadas, canteiros arborizados, mobiliário urbano e iluminação pública. Neste contexto, muitos cafés e restaurantes também aproveitam para servir pequenas mesas e cadeiras, trazendo vida ao espaço público.
Ruas para pessoas e mobilidade mais humana
Esse cuidado com o espaço público, nos últimos anos, tem se manifestado também no redesenho do espaço viário para uma mobilidade mais humana. Talvez esse movimento tenha iniciado com o redesenho e implantação de um BRT na Av. 9 de Julio, uma das avenidas mais largas do mundo. Ela corta Buenos Aires com assustadores 140 metros de largura, o dobro da Champs Elysées em Paris e cerca de três vezes a Av. Faria Lima em São Paulo, e até as mudanças recentes contava com 10 faixas de rolamento de cada lado.
A partir de 2009 e com conclusão em 2013, se redesenhou a via e se implantou o BRT chamado Metrobus no eixo da Av. 9 de Julio que, como reportado em 2016, reduziu o tempo do trajeto dos passageiros de ônibus em 40 minutos e em 20% o dos motoristas de veículos.
Segundo reportado no Outra Cidade, o redesenho “se deu como parte de um plano maior que inclui a implantação de 100 blocos de vias exclusivas ou com prioridade para pedestres, algumas delas em ruas por onde os ônibus circulavam antes da implantação do Metrobus. Outra medida para tornar a cidade mais acessível por outros modais além do carro foi a construção de 155 quilômetros de ciclovias, o que colocou a cidade no ranking Copenhagenize 2015 de lugares amigáveis para bicicletas.”
Em 2021, se anunciou o projeto de redesenho da Av. Libertador, uma das principais avenidas da cidade, saindo próximo ao terminal de ônibus de Retiro, até o bairro Vicente Lopez, com 11km de extensão. A ideia é criar a primeira “rua compartilhada” da cidade, amigável a “pedestres, ciclistas, passageiros de transporte público e motoristas”.
Gestão urbana na era digital
No Brasil, gestão urbana é uma palavra polêmica, no sentido de que estamos longe de atingir boas práticas de gestão na área urbana. Entender o que está acontecendo na cidade em “tempo real” está ainda longe da nossa prática urbanística, que costuma apenas contratar consultorias externas de 10 em 10 anos para fazer diagnósticos da situação urbana para a elaboração de um Plano Diretor. Dados sobre acessibilidade à moradia ou produção imobiliária são produzidos principalmente por instituições privadas, sejam elas instituições de pesquisa, empresas de consultoria ou ligadas ao mercado imobiliário. Além disso, as normas urbanísticas são complexas e pouco transparentes.
Buenos Aires publica, desde 2008, relatórios trimestrais da chamada “dinâmica urbana”, que oferecem uma “análise do mercado imobiliário, obras registradas, obras iniciadas e finalizadas, de modo a analisar os principais aspectos vinculados à transformação e desenvolvimento da cidade. Se registram as mudanças e a evolução das diferentes construções na cidade e as suas características como uso, tamanho, ambientes, valor de venda e aluguel, etc. Assim, é possível avaliar que setores dentro da cidade passam por maior desenvolvimento e quais estão estagnados. Serve para analisar o contexto urbano em que se inserem os distintos projetos urbanos de obra pública orientados para fomentar o crescimento econômico e garantir seu sucesso.”
Diante de tudo isso, fica claro que o que faz de Buenos Aires uma cidade tão agradável é um conjunto de boas escolhas. Pode-se dizer que eles souberam o que priorizar, com um urbanismo pragmático focado em infraestrutura e espaços públicos, com um monitoramento próximo do espaço privado. As regulações de uso do solo privado, tão prioritárias no urbanismo brasileiro, ficaram de 1977 a 2018 sem revisão em Buenos Aires, com pouco impacto na qualidade urbanística da cidade. As cidades brasileiras deveriam olhar mais para Buenos Aires por ser um exemplo latino-americano próximo que conseguiu ter sucesso em pontos fundamentais para a qualidade de vida urbana da cidade. Temos muito o que aprender com ela.
Sua ajuda é importante para nossas cidades. Seja um apoiador do Caos Planejado.
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Nem tudo o que é prometido em termos de infraestrutura e serviços acaba sendo entregue pelas intervenções. Já a sensação de segurança, endereçada indiretamente pelas obras, pode aumentar, apesar de os problemas ligados à criminalidade persistirem nas comunidades.
Confira nossa conversa com Ricky Ribeiro e Marcos de Souza sobre o Mobilize Brasil, o primeiro portal brasileiro de conteúdo exclusivo sobre mobilidade urbana sustentável.
Uma série de semelhanças entre a capital paulista e a guatemalteca, como a violência e a desigualdade social, levou ambas a um polêmico ranking de cidades mais feias do mundo. A coincidência me pareceu um convite para compararmos dois “bairros planejados” dessas cidades: o Jardim das Perdizes, em São Paulo, e Cayalá, na Cidade da Guatemala.
Sim, Bs. As. é realmente uma delícia.
Aliás, temos outros bons exemplos na América do Sul: Santiago, Montevideo e até mesmo Assunção.
O que me chama a atenção é que, mesmo com toda a crise no país dos hermanos, não se vê moradores de rua tomando as praças.
Sim, Bs. As. é realmente uma delícia.
Aliás, temos outros bons exemplos na América do Sul: Santiago, Montevideo e até mesmo Assunção.
O que me chama a atenção é que, mesmo com toda a crise no país dos hermanos, não se vê moradores de rua tomando as praças.