Os desafios da legislação municipal: entrevista com Victor Carvalho Pinto
Imagem: Guilherme Cunha/SMTUR.

Os desafios da legislação municipal: entrevista com Victor Carvalho Pinto

Victor Carvalho Pinto, coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro, fala sobre o urbanismo sob o ponto de vista jurídico-institucional.

16 de fevereiro de 2023

Ir além das abordagens tradicionais do urbanismo, atentar para práticas inovadoras e discutir a eficácia das políticas públicas para a transformação na gestão das cidades. Esses são alguns dos objetivos do Laboratório Arq.Futuro de Cidades, que, atuando de modo inter e multidisciplinar, reúne em seus núcleos profissionais que são referências em suas respectivas áreas. Um deles é Victor Carvalho Pinto, doutor em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório. No fim de 2022, ele foi anunciado como um dos vencedores do Prêmio Somos Cidade, que reconhece o trabalho dos produtores de conteúdo sobre temas relacionados às urbes.

Carvalho Pinto foi contemplado por seus artigos sobre questões urbanas publicados no site da revista Piauí, com a qual o Laboratório mantém uma parceria editorial. Em seus textos, ele busca contribuir para sensibilizar os leitores sobre a importância de assuntos relacionados aos aspectos legislativos e regulatórios do desenvolvimento das cidades, temas da entrevista a seguir.

Arq.Futuro: Em um de seus artigos publicados no site da Piauí, o sr. comentou que no Brasil há uma carência de práticas inovadoras na gestão das urbes e na avaliação sobre a eficácia das políticas públicas para a sua transformação. Nesse contexto, qual o papel do Laboratório Arq.Futuro de Cidades?

Victor Carvalho Pinto: O Laboratório reúne profissionais e pesquisadores de grande experiência e conhecimento. O que unifica a todos é a abordagem interdisciplinar e intersetorial, assim como a compreensão de que o desenvolvimento urbano depende de uma interação sinérgica entre o mercado, o governo e o terceiro setor. Como uma parceria entre as duas instituições, o Laboratório combina o engajamento social do Arq.Futuro com a excelência acadêmica do Insper. Creio que, em pouco tempo, teremos formado massa crítica de profissionais engajados na temática urbana e em conhecimentos aplicados às necessidades do país, que influenciarão não apenas as políticas públicas como também a forma de atuação do mercado imobiliário e do terceiro setor.

Arq.Futuro: O sr. foi um dos vencedores do Prêmio Somos Cidades. Qual a importância desse reconhecimento e como os artigos do site da revista Piauí colaboraram para ele?

Victor Carvalho Pinto: O movimento Somos Cidade reúne alguns dos principais desenvolvedores urbanos do Brasil e se propõe a difundir as melhores práticas do urbanismo mundial. O prêmio tem por objetivo reconhecer quem produz conteúdos de excelência em educação urbanística, voltados para a sociedade em geral. Receber o prêmio é muito significativo, pois sensibilizar a sociedade para os temas urbanos é um dos principais objetivos do Laboratório. O site da revista Piauí é um importante veículo pelo qual o Laboratório realiza essa missão.

Piauí tem conseguido, por meio desse espaço, retratar as questões das cidades, superando a abordagem tradicional dos noticiários da grande mídia que, em geral, limitam-se a mostrar problemas localizados em determinados bairros e cobrar providências das autoridades.

Arq.Futuro: Em sua avaliação, quais são as principais pautas e tendências do urbanismo atualmente?

Victor Carvalho Pinto: Há uma pauta internacional, de grande importância para o Brasil, que é a do combate ao espraiamento urbano e promoção da chamada “Cidade Compacta”, aquela em que as pessoas fazem tudo a pé, de bicicleta ou de transporte coletivo, o que significa deixar de planejar a cidade em função do automóvel. O Desenvolvimento Orientado pelo Transporte (DOT), que consiste na concentração do adensamento ao longo dos eixos de transporte de massa, seja pela ampliação de potencial construtivo, seja pela reurbanização do entorno de estações de metrô, é uma técnica amplamente adotada nesse sentido.

Nos países do Hemisfério Sul, como o Brasil, soma-se a isso a necessidade de tratar da informalidade, ou seja, da ocupação irregular do solo, o que exige desde medidas de urbanismo social, para melhorar a qualidade de vida desses assentamentos, até a remoção de ocupações em áreas de risco, notadamente no contexto das mudanças climáticas, que aumentam a vulnerabilidade a desastres.

O financiamento de políticas urbanas pela captura do valor da terra, ou seja, pela recuperação da valorização gerada pelas próprias obras públicas e alterações regulatórias, é fundamental não apenas enquanto medida de justiça como também para viabilizar intervenções urbanas necessárias, mas que não deveriam disputar recursos com políticas sociais.

Nas cidades conurbadas, como são as regiões metropolitanas brasileiras, é fundamental que se faça, sob a liderança dos estados, uma gestão integrada das políticas de interesse comum aos diversos municípios, como meio ambiente, saneamento básico, mobilidade urbana e ordenamento territorial.

Arq.Futuro: Quais são os principais desafios do país para contemplar uma boa política pública para as cidades? O que é mais urgente?

Victor Carvalho Pinto: Do ponto de vista jurídico-institucional, que é a minha área de competência, eu mencionaria os seguintes desafios: constituir uma governança eficiente para as regiões metropolitanas, que integre as funções públicas de interesse comum aos municípios; organizar um sistema de planejamento territorial, com planos urbanísticos definidos e normalizados para as diversas escalas espaciais; submeter as diversas políticas setoriais, das três esferas da federação, ao planejamento urbano, para que as infraestruturas indutoras da ocupação do território não produzam impactos nocivos, como o espraiamento e a ocupação irregular do solo; criar um método eficiente de reparcelamento do solo, que viabilize a reurbanização e o adensamento de áreas como o entorno de estações de metrôs ou zonas industriais decadentes.

Além disso, implantar um sistema de cartografia oficial, que unifique e torne acessíveis a todos os mapas elaborados por órgãos públicos ou empresas concessionárias; criar um regime jurídico próprio para a reabilitação de edificações antigas, de modo a incentivar sua conservação, reforma ou reconstrução e destinação ao uso habitacional, contribuindo para aumentar a oferta de moradia e a reocupação de áreas centrais; criar um sistema autofinanciável de regularização fundiária por concessão urbanística, no qual os custos da urbanização sejam financiados por empreendimentos voltados para o mercado e pela contribuição dos beneficiários.

Cito ainda a necessidade de desenvolver um modelo unificado de gestão do subsolo e do mobiliário urbano, que organize e coordene as obras e redes de infraestrutura implantadas pelas diversas empresas concessionárias de serviços públicos e de reconfigurar a tributação imobiliária, a fim de que ela contribua para desestimular a ociosidade de terrenos em áreas urbanizadas.

Arq.Futuro: Quais são os bons exemplos globais que o Brasil pode se espelhar para resolver esses desafios?

Victor Carvalho Pinto: Cada desafio tem exemplos internacionais que poderiam servir de inspiração. Eu destacaria a gestão metropolitana da mobilidade urbana na região de Paris; os sistemas de planejamento territorial dos países europeus e asiáticos; as técnicas de reparcelamento do solo da Espanha; o financiamento imobiliário do metrô em Hong Kong e no Japão; a cartografia oficial na Indonésia; o regime de reabilitação urbana de Portugal e a tributação imobiliária da Austrália.

Arq.Futuro: O que se espera do governo federal em termos de políticas de urbanismo?

Victor Carvalho Pinto: Que contribua para o fortalecimento e a institucionalização do urbanismo, mediante regulamentação e apoio técnico e tecnológico a estados, municípios e regiões metropolitanas. Antes de financiar obras, o governo federal tem que apoiar o desenvolvimento institucional dos estados e municípios, oferecendo sistemas de tecnologia da informação para cartografia, cadastro imobiliário e tributação, por exemplo.

Além disso, devem ser estabelecidas condicionalidades para o recebimento de recursos federais. Quem quiser receber financiamento tem que implementar diretrizes previstas em lei, como governança metropolitana, zoneamento inclusivo e captura da valorização imobiliária.

Se houver recursos para políticas habitacionais e de desenvolvimento urbano, o que é incerto no atual contexto de crise fiscal, é importante que não se repitam os erros do Programa Minha Casa Minha Vida, que construiu conjuntos habitacionais sem infraestrutura, serviços públicos ou mistura de usos, em áreas distantes e sem transporte coletivo, favorecendo o espraiamento urbano.

Arq.Futuro: É comum no país pensar que as políticas urbanas são responsabilidade ou dos municípios ou da União, no entanto, os estados também são relevantes para a conta. Qual a importância das políticas urbanas estaduais?

Victor Carvalho Pinto: Eu diria que muito do que esperamos da União deveríamos cobrar dos estados. Em nações de grande dimensão territorial e estruturados como federações, é comum que políticas de desenvolvimento urbano sejam de responsabilidade dos estados ou províncias, e não do governo central.

No caso do Brasil, os estados podem legislar sobre direito urbanístico, o que lhes permitiria atuar sobre a maior parte dos desafios que mencionei anteriormente. No que diz respeito à gestão de políticas, é preciso que os estados operacionalizem com urgência as regiões metropolitanas, para que sejam unificados o planejamento territorial e os serviços de mobilidade e saneamento básico.

Publicado originalmente no Insper em fevereiro de 2023.

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