Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Os pontos positivos e negativos do novo Plano Diretor do Rio de Janeiro
29 de janeiro de 2024O novo Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro, aprovado e sancionado pelo prefeito, como Lei Complementar nº 270 de 2024, traz alguns pontos para reflexão. O processo, que levou mais de dois anos, se encerrou recentemente e me fez levantar alguns pontos, positivos e negativos, como alguém que participou da discussão ativamente.
Projetos de Estruturação Urbana
No começo do processo eu era (e ainda sou) defensor dos Projetos de Estruturação Urbana, os PEUs, que são os planos locais, legislações urbanísticas que tratavam de parte da cidade, como um bairro. Acreditava que o Plano Diretor não deveria conter a Lei de Uso e Ocupação do Solo. A defesa na época, que compreendo e concordo, é de que diversos projetos de lei para instituir novos PEUs foram propostos à Câmara de Vereadores e nunca foram aprovados.
Porém, em minhas observações e participações durante o processo, observei que uma boa parte das discussões se dava em assuntos específicos de áreas específicas. Sempre eram trazidos exemplos de como ficaria tal instrumento urbanístico em determinada área.
Caímos então em um dilema, já que a paisagem urbana do Rio de Janeiro foi construída com bases em diversas leis distintas ao longo do tempo, algo que já abordei em meu livro “O Rio de Janeiro nas alturas”.
Esta diversidade se reflete no quadro de parâmetros para as novas zonas e subzonas das cinco áreas de planejamento da cidade que, no total, tem mais de 300 parâmetros diferentes. Ou seja, estamos sim legislando localmente, porém sem ter um olhar mais apurado sobre cada área.
Com o nome de Superfície Mínima Drenante (SMD), a taxa de permeabilidade foi instituída em toda a cidade. Não sou contra a permeabilidade do solo, mas entendo que nas áreas mais densas da cidade, que tem um perfil fundiário com lotes pequenos e normalmente com pouca testada, esta drenagem não irá funcionar. O texto inicial propôs uma taxa de permeabilidade de 15% da área dos lotes, porém o que ficou estabelecido agora é um cálculo que, aplicado na área do terreno, resultará em um valor bem abaixo desse.
Outro ponto, que já foi assunto aqui no Caos Planejado, é a ausência de limites para se construir varandas. Atendidos os afastamentos previstos, não há limite, o que acaba, em alguns casos, levando a varandas maiores que as próprias unidades residenciais, que logo são fechadas e incorporadas ao apartamento, desvirtuando assim a sua função.
Algo que chamou a atenção foram as mudanças pontuais nos anexos que traziam os mapas com as novas zonas e subzonas. Foram diversas alterações propostas pelos vereadores. Sem uma discussão prévia com o planejamento urbano não é possível entender os impactos sobre a paisagem Essas solicitações poderiam ter sido ao longo da discussão de dois anos.
Um fato curioso é que o prefeito vetou parte destes mapas com as novas zonas. Com isso, foi obrigado a estabelecer legislações antigas, tais como o Decreto nº 322 de 1976, que era um dos motes principais de mudança com este novo Plano Diretor.
Na situação atual, ele continua valendo. Portanto, a promessa de simplificar e diminuir a legislação urbana do Rio de Janeiro, sabidamente feita por diversas Leis, Decretos e Resoluções, não se confirma, passando a ser novamente uma concha de retalhos que dificulta um entendimento da sociedade em geral.
Com certeza um dos grandes pontos negativos foi a constante troca de liderança no processo do Plano Diretor. Após a saída do secretário Washington Fajardo, que iniciou os trabalhos do plano, participou de diversas audiências e teve uma defesa constante para manter o cerne da proposta, se perdeu muito em condução por parte da prefeitura.
A cada momento tínhamos um representante para defender e explicar as tomadas de decisão, o que não acontecia com Fajardo, que defendia as ideias, mesmo com muitas entidades criticando-as. Neste momento pude sentir que os vereadores passaram a liderar mais o processo, pela fragilidade na condução por parte da prefeitura.
O afastamento frontal passou a ter um limite fixo, independente do gabarito da edificação, podendo ser, na maioria dos casos, de três ou cinco metros. Dependendo da área e da subzona, em alguns casos não é exigido afastamento frontal, como na área central da cidade e em algumas ruas específicas.
A grande mudança foi o fim do afastamento progressivo que se estabeleceu desde a década de 1960, que previa, de forma geral, que edifícios acima de cinco pavimentos deveriam dar mais um metro de afastamento frontal para cada pavimento acima deste gabarito. Com isso a cidade tinha um perfil nas ruas com muitas reentrâncias, dificultando a criação de fachadas ativas.
Vagas de Estacionamento
Com o novo Plano Diretor não será exigida a criação de vagas de garagem em lançamentos imobiliários para parte da cidade, como a Zona Sul, Zona Norte e o Centro, entre outras. Na Zona Oeste, incluindo a Baixada de Jacarepaguá, foi fixada uma vaga para cada quatro unidades residenciais. Assim, em áreas com boa infraestrutura de transporte, não precisaremos ter vários pavimentos com vagas de garagem, os chamados embasamentos garagem.
A criação deste instrumento que prevê, em seu texto:
“criação de espaços privados de fruição pública tem como objetivo possibilitar o incremento do número de largos, praças, alamedas, galerias e demais modalidades de espaços de fruição ou conexão intraquadras, acessíveis a todos os cidadãos, ao nível do logradouro, promovendo a qualificação da paisagem urbana e uma melhor articulação entre espaços públicos e privados”
É a possibilidade de criação dos conhecidos Privately owned public space (POPS), muito comum em outras cidades, em especial em Nova Iorque onde existem 592 POPS. Isso permite termos mais áreas livres na cidade sem onerar os cofres públicos.
Leia mais: POPS: os espaços públicos de propriedade privada
Outro ponto que trabalhei neste plano foi permitir que em edificações de uso misto seja possível, caso seja uma melhor solução, ter uma mesma circulação vertical para todos os usos. Com isso, podemos ter legalmente o que se consagrou no bairro de Copacabana, com edificações contendo salas comerciais e residências em um único acesso e convivendo de forma a dar vitalidade ao edifício e ao bairro.
Outros instrumentos, como a Desapropriação por Hasta Pública, que diminui o trâmite burocrático para que imóveis desapropriados possam ir a leilão, e o Termo Territorial Coletivo (TTC) que é um modelo em que o território pertence a comunidade, são novidades na legislação da cidade que permitem uma melhor organização do espaço público e privado.
Acredito que este plano demandará diversos decretos reguladores para ser totalmente aplicado. Porém, se os ajustes e alterações necessários forem conduzidos pelos técnicos municipais ligados ao planejamento urbano, podemos ter um Plano que realmente será uma mudança positiva na cidade do Rio de Janeiro.
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Perfeita a análise do novo Plano Diretor, já ue acompanhei a elaboração do s diversos , leis e decretos anteriores como Coordenador de Legislação Urbana da Prefeitura durante 10 anos.
Gostei da separação do processo em NEGATIVAS E POSITIVAS.
Sou suspeito, mas parabéns ao Arquiteto Rogerio Goldfeld Cardeman pela sua avaliação e sugestões.
Parabéns ao Arquiteto Caderman por insistir na disseminação da discussão sobre a importância dos Planos Diretores. Achei muito pertinente tudo que foi considerado no texto, e concordo principalmente com o ponto sobre fato da Prefeitura não ter conseguido manter seu mediador original, deixando o protagonismo das decisões para os atores políticos, que não possuem no mínimo, capacidade técnica para tais questões. E já que pontuam tanto sobre sustentabilidade, acho uma pena ainda não levar-se em consideração uma possibilidade de discussão mais incisiva sobre mudanças de ocupação de solo em áreas com ocupação consolidada e subutilizada por questões ambientais, como Alto da Boa Vista, área da antiga Colônia Juliano Moreira e Vargens.