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A cidade informal toma assim a forma de um imenso jogo, onde o sucesso individual depende da capacidade de interpretar e usar os princípios da comunidade a seu favor.
Na periferia de Brasília, há um bairro chamado Itapoã. Como várias outras no Distrito Federal, essa comunidade se formou a partir da invasão de um terreno público, em 2001. Os moradores ergueram a maioria das casas em mutirões com parentes e vizinhos. Essa prática de autoconstrução é bastante comum em assentamentos informais, e ocorre em todo o Brasil.
Apesar das dificuldades, a ocupação cresceu com uma velocidade explosiva, alcançando a marca atual de 60 mil pessoas. Com o tempo, o Itapoã se tornou um bairro dotado de infraestrutura e integrado à malha urbana. Hoje, é a região que cresce mais rápido em Brasília, com previsão de praticamente dobrar de tamanho até 2030.
O local fica ao lado do Paranoá Parque, um conjunto com mais de seis mil apartamentos entregues pelo programa Minha Casa, Minha Vida. Ninguém no Itapoã parece invejar os vizinhos, e não é difícil entender o porquê. Pouco tempo depois de inaugurado, o Paranoá Parque sofreu depredação e se tornou um dos locais mais violentos do DF. Além disso, as casas do Itapoã são maiores, mais bem construídas, e estão perto de comércio e serviços.
“Para morar ali, o cara tem que estar muito mal, viu?” me disse um morador enquanto apontava para as torres de apartamentos enfileiradas. Imediatamente veio à mente a questão: como pessoas sem acesso ao crédito e com poucas opções de emprego e renda conseguiram produzir moradias melhores que as de um programa do Governo Federal?
Ao olharmos para os assentamentos, favelas e ocupações do Brasil, temos a impressão de que o mercado informal é uma terra sem lei, onde tudo vale e tudo pode ser feito. Como explica Vitor Nisida em sua dissertação de mestrado, fruto de uma extensa e inédita pesquisa de campo que visou compreender os desafios da regulação urbanística no território das favelas, essa impressão é enganosa. A cidade informal tem seu próprio código de conduta, baseado em princípios razoavelmente estabelecidos, que veremos a seguir.
Um dos princípios básicos é o direito à terra para moradia. No primeiro estágio dos assentamentos informais não há um mercado estabelecido de lotes, e as famílias têm permissão para construir barracos sem arcar com o custo de aquisição do terreno. Essa regra parte do reconhecimento que a necessidade de moradia é justificativa suficiente para ocupar o local.
Nas comunidades estudadas por Nisida na Grande São Paulo, não há sequer demarcação de lotes, ou seja, a área do lote coincide com a área do barraco. Em muitas delas, a terra continua sendo considerada propriedade pública mesmo após a ocupação. Assim sendo, quando uma família vai embora da comunidade, deve vender seu barraco por um preço equivalente ao gasto na construção, sem auferir lucro pela venda do terreno.
Na periferia de Brasília a situação é bem diferente. Em comunidades como o Itapoã, a Estrutural e o Sol Nascente, o lote é o elemento básico da organização espacial. Nos períodos de ocupação, a primeira providência é demarcar o lote com estacas e barbantes. Antes mesmo de construir um barraco, a família se apressa e constrói um muro ou ao menos uma cerca ao redor do terreno. Rapidamente se estabelece um mercado de compra e venda de lotes nas melhores localizações. Isso não impede que algumas famílias consigam um lote gratuitamente, ou seja, o princípio da terra para moradia é respeitado até certo ponto.
A demarcação de lotes também dá corpo a um elemento importantíssimo, que é o sistema viário. Nas periferias de Brasília, mesmo nas mais carentes, os automóveis têm acesso a todas as casas. Vários fatores contribuem para que o tráfego automotivo seja levado em conta na ocupação, como o relevo plano, a presença de amplas áreas subutilizadas na Capital Federal e a existência de pessoas que se dedicam a organizar ocupações para lucrar com a venda posterior de terrenos.
Pode-se dizer que a circulação de carros é vista como uma espécie de passaporte para a formalidade, pois há a expectativa de que cedo ou tarde o governo asfaltará as ruas. De fato, os moradores apontam a chegada do asfalto como o acontecimento que traz a sensação de legitimidade ao bairro.
Como já foi dito, na Grande São Paulo não é comum o elemento organizador do lote. Nesse caso, a rua é simplesmente o espaço deixado entre um barraco e outro. Por isso, são poucos os locais acessíveis aos carros. Há um acordo tácito de não invadir as poucas vias que comportam automóveis, para não impedir o acesso de serviços básicos, como ambulâncias e caminhões de lixo.
Essa conformação das vias ao espaço residual dos barracos dá origem a outro princípio, o do direito de passagem. No começo da ocupação, o espaço entre as casas é amplo o suficiente para formar boas ruas para pedestres. Com o tempo, os barracos vão se expandindo, adicionando cômodos e tomando o espaço dos pedestres. Essa expansão é tolerada pelos vizinhos com base no princípio da terra para moradia, e porque eles mesmos têm expectativa de expandir suas casas um dia.
A expansão horizontal dos barracos cria o sistema de becos e vielas característico das favelas paulistanas. Entretanto, há um limite. Não é permitido realizar construções que obstruam o acesso a outras casas da comunidade. É obrigatório deixar um espaço mínimo de passagem, em geral, com largura de um metro.
Um ponto em comum entre as duas cidades é a evolução das casas. Geralmente a família começa erguendo um barraco de lona ou madeira barata. É ali que eles vão morar enquanto a casa é construída. Essa etapa dura até que a comunidade crie confiança de que a ocupação não será despejada. A partir daí, os barracos são substituídos por construções de madeira compensada ou alvenaria.
A obra funciona como uma espécie de caderneta de poupança. O dinheiro que sobra no fim do mês vira uma parede nova ou material de construção. Quando o pavimento térreo é concluído, os filhos já cresceram. É hora de começar o segundo piso para abrigar a família estendida.
Nessas periferias, é comum ver paredes de tijolo sem reboco, vigas com ferros de espera e caixas d’água aparentes. A aparência externa muitas vezes engana. É comum que o interior dessas casas tenha paredes pintadas, piso instalado, e vários móveis e eletrodomésticos. Obviamente, a qualidade dessas construções está longe do ideal. Mas é impressionante que essas famílias alcancem uma moradia digna a partir de recursos tão escassos.
Nessas comunidades, as casas são quase sempre um trabalho em andamento. Por isso, é comum que alguns moradores reservem um espaço ao lado dos barracos para acrescentar mais um cômodo no futuro. Isso é tolerado em nome da necessidade familiar, mas é necessário que os moradores deem um uso àquele espaço enquanto a obra não é concluída, como uma horta ou um pátio para estender roupas. Entende-se que o espaço no solo é um recurso escasso, por isso não deve ficar ocioso.
A simples demarcação do lote ou do espaço onde será construído o barraco não garante a posse. É preciso que o dono comece uma construção, mesmo que rudimentar. Caso ainda não tenha condições de se mudar para o local, é preciso ir até à comunidade frequentemente. Se o interessado não demonstrar sua vontade de ocupar, o espaço pode ser reivindicado por outra pessoa. Nisida chama a atenção para a semelhança dessa regra com um instrumento do Estatuto das Cidades, o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.
Tanto em Brasília quanto em São Paulo, a favela já é um fenômeno vertical. Quando falta espaço no solo, a saída é acrescentar novos pavimentos. Por isso, os moradores que trabalham na construção civil têm um papel de destaque na comunidade. São eles que orientam os moradores sobre o que pode ou não ser feito na obra. Eles também exercem a liderança nos mutirões de construção. É comum que parentes e amigos se reúnam para ajudar a erguer uma casa aos fins de semana, pois há a expectativa que os moradores retribuirão a ajuda em outras obras.
É difícil estimar a resistência da estrutura das casas, pois é comum que se passem anos entre a conclusão de um pavimento e o início do outro. Por não saberem ao certo o quanto a estrutura aguenta, são poucos os que ultrapassam a segunda laje. Mesmo assim, há quem se arrisque indo até o terceiro ou quarto pavimento. Em geral, o acréscimo de pavimentos não é coibido, pois prevalece o direito de construir conforme a necessidade.
Há casos em que a verticalização leva à obstrução de uma janela na casa vizinha, provocando brigas entre os moradores. Em geral, aqui também prevalece o direito de construir. Se alguém abre uma janela diretamente para o lote vizinho, sem deixar espaço para um poço de luz, entende-se que essa pessoa assumiu o risco de ter sua abertura obstruída no futuro.
Há várias razões que justificam a expansão vertical. Um dos mais frequentes é quando um parente deseja construir acima da casa original. Também é comum alugar cômodos no andar de cima para aumentar a renda familiar. Por isso, não é raro que o andar superior tenha entrada independente, com acesso através de uma escada externa.
Outro motivo comum para erguer mais um pavimento é abrir espaço para um ponto comercial no térreo. Isso acontece quando a família planeja abrir um pequeno negócio, como um salão de beleza, oficina de costura, conserto de eletrodomésticos, bares ou mercearias. Em casos mais raros, o ponto comercial pode ser alugado a outro comerciante. Nisida aponta que a atividade comercial é permitida em toda a região das favelas, com exceção do tráfico de drogas, que só pode ser realizado pela organização criminosa que domina cada região.
Por fim, um princípio que atravessa todos os demais é o do fato consumado, ou irreversibilidade. Mesmo que uma construção cause incômodo ou provoque brigas entre os vizinhos, uma vez terminada a obra, não há o que fazer. É quase impossível obrigar alguém a demolir o que já está feito. Sabendo disso, muitos moradores fazem as obras às pressas, e concluindo-as antes que vizinhos incomodados consigam se organizar para impedir a empreitada.
Como se vê, tanto no Distrito Federal quanto na Grande São Paulo, a cidade informal tem um conjunto de regras bem estabelecidas que possibilitam o seu funcionamento. Mesmo que não sejam escritas ou mesmo declaradas, essas normas são respeitadas, pois ignorá-las poria em risco o equilíbrio de toda a comunidade, incluindo o transgressor.
Podemos imaginar que as regras são diferentes em outras cidades do Brasil, mas é pouco provável que um assentamento informal consiga se estabelecer sem qualquer tipo de código de conduta. A cidade informal toma assim a forma de um imenso jogo, onde o sucesso individual depende da capacidade de interpretar e usar os princípios da comunidade a seu favor.
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