Lições da ciclovia da Afonso Pena, em Belo Horizonte
A pesquisa em Belo Horizonte mostra que muitas resistências comuns às ciclovias são, na verdade, equivocadas e sem fundamento.
Entenda quais são os riscos, impactos e soluções para salvar vidas no trânsito.
25 de novembro de 2024Nos últimos anos, a motocicleta consolidou-se como um dos principais meios de transporte no Brasil, impulsionada tanto pelo custo acessível quanto pela sua utilização como ferramenta de trabalho, especialmente para entregadores. Políticas de incentivo fiscal à indústria e acesso ao crédito para aquisição, iniciadas no fim do século passado, contribuíram para um aumento expressivo na produção de motos, que atingiu seu auge entre 2008 e 2012, com mais de 2 milhões de unidades fabricadas por ano. Atualmente, o Brasil conta com uma frota de aproximadamente 34 milhões de motocicletas. Embora sejam economicamente atraentes e ágeis, o uso crescente desses veículos tornou-se um grave problema de saúde pública.
Com o crescimento na produção e uso das motos, veio o custo social das mortes e feridos no trânsito. Há 30 anos, o número de mortes anuais de motociclistas no Brasil era cerca de mil; no início dos anos 2000, subiu para 3 mil e, em 2015, chegou a 12 mil. Apesar de uma leve redução até 2019, a pandemia de Covid-19 provocou um novo aumento. Dados preliminares de 2023 apontam cerca de 13 mil mortes de motociclistas, representando 45% das vítimas fatais no trânsito. Em 2020, mais de 190 mil pessoas foram internadas devido a lesões no trânsito, das quais 61,6% eram motociclistas.
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Os baixos custos de aquisição e uso desses veículos contrastam com os altíssimos gastos relacionados às vítimas de sinistros, incluindo atendimento de emergência e impactos no sistema previdenciário. Esses valores representam um ônus significativo para a sociedade e são comparáveis aos orçamentos de ministérios essenciais. Entre 2007 e 2018, os mortos e feridos no trânsito custaram em média R$ 136 bilhões por ano para a sociedade brasileira, de acordo com o IPEA. Para comparação, o Ministério da Saúde teve um orçamento total de R$ 194 bilhões em 2023, o que ilustra a dimensão financeira das vítimas do trânsito.
O aumento recente das mortes de motociclistas, pós-pandemia, está ligado a um segundo boom no uso desses veículos. Em 2024, a produção de motocicletas atingiu seu maior volume desde 2012, refletindo tanto a preferência crescente por esse meio de transporte quanto a busca por trabalho em um mercado com pouca regulação. Ao final do primeiro boom de vendas de motos, o engenheiro e sociólogo Eduardo Vasconcelos, afirmou que, na história do Brasil, só a escravidão supera a moto em destruição social. Se não enfrentarmos as questões estruturais e continuarmos repetindo o modelo adotado nas últimas décadas, perpetuaremos os danos sociais gerados por esse padrão de mobilidade. Muitos motociclistas que morrem ou sofrem lesões graves são os provedores de suas famílias, e a perda de renda coloca essas famílias e suas comunidades em situação de risco, criando um ciclo de pobreza que pode se estender por gerações. Prevenir mortes e lesões entre motociclistas, portanto, é essencial para promover a justiça social.
Motocicletas apresentam riscos intrínsecos à segurança no trânsito. Circulam em altas velocidades e, diferentemente de carros, que protegem seus ocupantes, elas expõem completamente seus usuários, resultando em uma taxa desproporcional de lesões graves e fatais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta a velocidade como o principal fator de risco para a segurança viária, e o corpo humano não suporta impactos acima de 30 km/h sem consequências graves. Qualquer colisão acima dessa velocidade é frequentemente fatal. Para os motociclistas, a situação é ainda mais perigosa, pois não há outra proteção além do capacete.
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O conceito de Sistema Seguro parte do princípio de que nenhuma morte ou lesão grave no trânsito é aceitável e busca estruturar a mobilidade de forma abrangente para proteger vidas e minimizar erros, sendo, atualmente, a abordagem mais efetiva para salvar vidas no trânsito. Essa abordagem inclui gestão, infraestrutura, legislação, fiscalização, comportamento dos usuários e atendimento às vítimas. Seus cinco princípios são:
A questão que surge é: como enquadrar as motocicletas dentro do conceito de Sistema Seguro, considerando que elas expõem o corpo humano a uma vulnerabilidade extrema? Com uma estrutura que deixa o usuário diretamente sujeito ao impacto e é projetada para altas velocidades, as motocicletas desafiam os limites dessa abordagem. Para que o sistema possa realmente acomodar esses veículos, são necessárias políticas que promovam a readequação de velocidade, infraestrutura apropriada e fiscalização rigorosa, tanto para limites de velocidade quanto para o respeito às sinalizações de trânsito. Além disso, é fundamental desenvolver políticas públicas intersetoriais coordenadas, envolvendo setores como saúde, transporte, urbanismo e finanças. Políticas que incentivem o uso de transporte coletivo e bicicletas convencionais ou elétricas podem ser mais eficazes, eliminando ou substituindo os riscos inerentes ao uso das motocicletas.
A Cidade do México é comparável a São Paulo em termos socioeconômicos e populacionais, mas apresenta uma taxa de fatalidade de motociclistas menor: 2,58 mortes por 100 mil habitantes, em contraste com 3,53 em São Paulo . Esse diferencial deve-se ao investimento em transporte coletivo, como metrô e BRT, que diminui a dependência de motocicletas. A capital mexicana tem cerca de 8 motocicletas por 100 habitantes, enquanto São Paulo tem 13. Esses números reforçam a importância de alternativas de mobilidade acessíveis e eficientes.
O crescimento dos serviços de entrega e transporte de passageiros por aplicativos representa novos desafios para a segurança viária. Esses trabalhadores, em sua maioria motociclistas, enfrentam pressão constante por rapidez e quantidade nas entregas, o que, aliado à ausência de vínculo empregatício e falta de treinamento, resulta em comportamentos de risco no trânsito. A falta de uma relação formal com as plataformas impede o acolhimento desses trabalhadores com seguro ou apoio em caso de sinistro, deixando esses entregadores desprotegidos. O desamparo e a falta de proteção social afetam também essas famílias, pois, quando se lesionam, além de deixarem de sustentar seus lares, exigem assistência prolongada. Muitas vezes, outros membros da família precisam deixar seus empregos para cuidar de maridos ou filhos hospitalizados, agravando ainda mais a situação econômica do núcleo familiar.
A ausência de regulamentação pelos governos deixa esses trabalhadores expostos a condições de trabalho inseguras, onde o tempo de entrega é priorizado em relação à segurança. Isso exige a criação de regras específicas para garantir condições de trabalho mais seguras, como prazos mínimos para entregas, exigência de treinamento e supervisão dos condutores.
Poucas cidades têm tomado medidas para regulamentar a atuação dessas empresas, mas Nova York se destaca com algumas ações que impactam positivamente na segurança dos motociclistas e nas condições de trabalho dos entregadores. Entre essas regulamentações, destacam-se o pagamento mínimo por entrega e a definição de limites máximos de distância, o que reduz a pressa excessiva e, consequentemente, o risco de sinistros.
Na Espanha, em 2021, foi aprovada a Lei Rider que impõe regras às empresas de delivery que trabalham com entregadores autônomos. Ela visa garantir a segurança e direitos trabalhistas desses profissionais. A legislação é pioneira na Europa e tem inspirado outros países a regular o trabalho na economia de plataformas. Depois de três anos de sua regulação, algumas empresas se adaptaram, entretanto muitas ainda desafiam as fiscalizações do governo.
Essas práticas revelam que é possível criar um ambiente regulatório que incentive comportamentos seguros e reduza os riscos para os motociclistas, sem comprometer a viabilidade econômica dos aplicativos de entrega.
Tais experiências podem servir como referência para cidades brasileiras, onde a regulamentação ainda é incipiente. Contudo, há resistência entre muitos trabalhadores de aplicativos no Brasil, que frequentemente expressam uma agenda anti-regulamentação. Em março de 2024, motoristas de aplicativos protestaram contra o Projeto de Lei Complementar 12/2024, argumentando que a regulamentação reduziria seus ganhos e limitaria sua autonomia. Essa situação ilustra o desafio de promover segurança e justiça social, conciliando interesses com a necessidade de regulamentação.
Para que as cidades alcancem a meta do Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans) de reduzir pela metade as mortes no trânsito até 2030, é essencial agir com urgência. Medidas como gestão rigorosa de velocidade, moderação de tráfego e campanhas de conscientização com fiscalização intensiva são fundamentais para combater práticas de risco, como o excesso de velocidade e a combinação de álcool e direção.
Fortalecer o transporte coletivo com investimentos em qualidade e tarifas acessíveis é igualmente importante para reduzir a dependência de veículos particulares e motocicletas. Políticas baseadas em dados garantem estratégias eficazes que priorizam a segurança e a mobilidade sustentável.
Visando a segurança e a justiça social, a regulamentação das empresas de entrega e transporte por aplicativos é vital. Regras que assegurem condições de trabalho seguras, incluindo tempos mínimos de entrega e treinamento, podem reduzir comportamentos de risco e proteger trabalhadores e sociedade. Com políticas integradas e uma abordagem proativa, é possível transformar o trânsito brasileiro, salvar vidas e promover uma mobilidade urbana mais segura e inclusiva.
Dante Rosado
Gerente Sênior de Segurança Viária da Vital Strategies no Brasil
Especialista em segurança no trânsito, atuando desde 2004 em organizações públicas, privadas e do terceiro setor. Em 2015, ingressou na Vital Strategies atuando na Iniciativa Bloomberg para Segurança Viária, como coordenador em Fortaleza. Desde 2021, coordena a Iniciativa no Brasil.
Diogo Lemos
Coordenador Executivo da Iniciativa Bloomberg para Segurança Viária Global para o Estado de SP e Campinas
Apoiou a elaboração de planos de segurança viária e outras ações estratégicas para salvar vidas no trânsito e promover a mobilidade saudável, incluindo o Pnatrans. Antes de se juntar à equipe BIGRS, trabalhou no WRI Brasil e na Prefeitura de São Paulo.
Colaboraram neste artigo Mariana Pires e Mariana Novaski
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