Reformar o estacionamento fora da via pública é a chave para reduzir as emissões
É preciso implementar mudanças contra a perpetuação da oferta excessiva de vagas de estacionamento em áreas urbanas.
Após o mês do movimento de conscientização para a redução de acidentes de trânsito, precisamos refletir sobre como temos lidado com esse problema.
30 de junho de 2025Em junho de 2025, um laudo pericial revelou que o motorista que atropelou e matou duas jovens na faixa de pedestres em São Caetano do Sul (SP), dirigia a 108 km/h. O limite era de 60. O impacto lançou os corpos por dezenas de metros. O réu responde por duplo homicídio qualificado. Poucas semanas antes, em Embu das Artes, uma mulher de 67 anos foi atropelada e morta enquanto atravessava corretamente a faixa. O caminhão a atingiu sem reduzir. O mais trágico: ela própria havia feito vídeos, dias antes, cobrando sinalização no local, jamais instalada.
Esses casos têm diferenças, perfis distintos, contextos urbanos variados, mas compartilham o mesmo roteiro: identifica-se uma falha individual, lamenta-se a fatalidade, arquiva-se o problema. O sistema viário, este, permanece como estava: pronto para repetir o enredo. E a narrativa dominante é sempre a mesma: falha humana. Só que não há faixa de pedestre capaz de competir com 108 km/h. Nem idosa que consiga se proteger de um caminhão sem freios.
Curiosamente, o Brasil já demonstrou saber lidar com risco. Na aviação civil, cada acidente é investigado por um órgão independente (CENIPA), com base em protocolos internacionais, foco em prevenção e nenhuma intenção de culpar o piloto. O processo reconstrói toda a cadeia de eventos e resulta em recomendações concretas: mudar procedimentos, redesenhar equipamentos, ajustar normas. A lógica é simples: o erro é inevitável, mas a repetição não precisa ser.
No trânsito, seguimos o manual inverso. Um sinistro grave raramente gera investigação técnica aprofundada. Quando muito, há um inquérito para punir o infrator. Nenhum órgão analisa de forma sistêmica se a via era segura, se havia fiscalização, se o projeto urbano favorecia o risco. Resultado: acidentes viram estatísticas arquivadas sem aprendizado. Enquanto voar se tornou seguro por construção institucional, dirigir (ou atravessar a rua) continua perigoso.
Leia mais: Maio Amarelo: quem são as vítimas do trânsito no Brasil?
Nesse contexto, campanhas educativas ocupam o centro da resposta pública. O movimento Maio Amarelo, por exemplo, dedica o mês a sensibilizar condutores e pedestres, muitas vezes com slogans como “No trânsito, escolha a vida” ou “conscientizar para mudar o trânsito”. Mensagens assim — “use o cinto”, “não beba e dirija”, “respeite o limite de velocidade”, “não use o celular ao volante” — reforçam a ideia de que o desfecho depende principalmente da conduta individual. Essas campanhas têm mérito em educar e lembrar que comportamentos de risco elevam a sinistralidade. Entretanto, quando isoladas, podem sugerir que bastaria cada um fazer sua parte para solucionar o problema, desconsiderando fatores estruturais. Por exemplo, um pedestre pode ser extremamente cauteloso, mas se não houver faixas seguras ou calçadas adequadas, ele continuará em perigo.
O Brasil também possui um arcabouço legal rigoroso voltado ao comportamento individual no trânsito. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB), desde sua reformulação em 1997, trouxe medidas importantes: sistema de pontuação e suspensão da CNH para infratores recorrentes, multas pesadas para excesso de velocidade, exigência de capacete e cinto, etc. Essas políticas surtiram algum efeito positivo – por exemplo, a combinação de fiscalização via radares e regras mais duras contra álcool resultou em uma queda gradual da taxa de mortalidade ao longo dos anos 2000. No entanto, a narrativa oficial muitas vezes simplifica as causas a erro humano.
A falha humana em si é um dado esperado, e o papel do sistema é proteger as pessoas mesmo quando elas erram. Pouco se discute, por exemplo, a responsabilidade dos governos em prover infraestrutura segura (vias bem projetadas, boa iluminação, engenharia viária que induza velocidades seguras). Assim, o enfoque punitivo tende a atuar após o erro ocorrer (punindo o infrator) e menos em prevenir o erro ou atenuar suas consequências. Em suma, nossas leis cobram severamente o cidadão – o que é necessário – mas não cobram com igual rigor as condições do ambiente viário. Não há previsões legais claras que punam, por exemplo, uma rodovia mal sinalizada que cause mortes, ao passo que o condutor envolvido pode ser responsabilizado quase que isoladamente.
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Enquanto países com Visão Zero colocam a melhoria de engenharia viária e do desenho urbano no centro da estratégia (considerando que o sistema deve salvaguardar vidas), no Brasil essas medidas recebem menos atenção ou enfrentam resistência. Um exemplo simbólico foi a remoção de milhares de radares de velocidade em estradas federais a partir de 2019, sob o argumento político de combater uma suposta “indústria da multa”. Na época, autoridades sugeriram que bastaria o motorista ser consciente e reduzir por si, sem necessidade de tanta fiscalização eletrônica.
Essa decisão privilegiou uma retórica de liberdade individual (de não ser multado) em detrimento de uma medida comprovadamente eficaz no âmbito sistêmico (controle de velocidade). De forma mais ampla, investimentos em melhorias estruturais – como duplicação de rodovias perigosas, construção de travessias confortáveis e seguras, implantação de ciclovias e fiscalização – muitas vezes ficam aquém do necessário, seja por limitação orçamentária ou falta de prioridade política. Em lugar disso, reforça-se a abordagem de mudar o indivíduo com campanhas educativas, blitz, simuladores de direção nas autoescolas, etc. Essa cultura torna mais lenta a adoção de medidas sistêmicas eficazes já consagradas internacionalmente, pois é mais fácil (e politicamente conveniente) atribuir os problemas à “falta de educação” do povo do que encarar deficiências estruturais de longa data.
O paradigma da Visão Zero justamente propõe essa mudança: reconhecer que seres humanos falham, e que o sistema de trânsito deve ser planejado para que essas falhas não resultem em mortes. Somente equilibrando educação, fiscalização, engenharia e legislação o Brasil conseguirá sair do patamar atual de violência viária. E há bons exemplos por aqui. Em Fortaleza, a combinação de campanhas educativas com readequações viárias, ampliação de faixas de pedestres, travessias elevadas, áreas de trânsito calmo e fiscalização inteligente contribuiu para reduzir em mais de 50% o número de mortes no trânsito em menos de uma década. O que mudou não foi apenas a atitude das pessoas, mas o ambiente em que elas se movem. Porque onde o espaço é seguro, o erro não precisa ser fatal.
Em última instância, a verdadeira responsabilização deve incluir quem desenha e gerencia o trânsito. Se vidas estão se perdendo porque o sistema permite erros fatais, então a responsabilidade não é só de quem errou ao volante, mas de todos nós, enquanto sociedade, em exigir e implementar um trânsito mais seguro.
Enquanto continuarmos tratando o trânsito como problema moral e não sistêmico, nossas estatísticas de morte não vão mudar. Seguirão sendo apenas o reflexo de uma escolha política: a de culpar quem morreu, ao invés de responsabilizar quem permite que o erro humano vire tragédia.
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