Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Como a evolução de Nova York explica a perda de densidade de Manhattan ao longo dos últimos cem anos?
6 de março de 2023Por duzentos anos, a cidade de Nova York tem sido a maior metrópole dos Estados Unidos e continua a superar suas concorrentes. A cidade é uma das mais antigas e prósperas do país. Sua região metropolitana produz bens e serviços que equivalem em termos monetários à metade do que o Brasil produz. A sua estrutura urbana, capacidade produtiva e elevada renda per capita evidenciam sua posição privilegiada no mundo, e uma das chaves para entender a sua ascensão está no início da sua história e ao longo do seu processo de desenvolvimento. Em 1624, as terras da ilha de Manhattan foram compradas do povo indígena Lenape pelo holandês Peter Minuit, da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, que fundou a chamada Nova Amsterdã. A ilha é uma extensa área plana de 59 km² situada em meio à foz do Rio Hudson e do Rio do Leste. A baía permitia atracar grandes navios e era também um local mais fácil de se defender.
Em 1664, a vila foi conquistada pelos ingleses e rebatizada de Nova York. O desenvolvimento urbano se concentrava no extremo sul da Ilha, onde surgia uma matriz de ruas tortas e lotes em formatos irregulares.
O crescimento populacional nos próximos 80 anos seria modesto — 1,8% ao ano. Seu porto era o terceiro ou quarto mais movimentado da região. Nova York ainda tinha 23 mil habitantes quando a independência dos Estados Unidos foi promulgada pelo Tratado de Paris, em 1783 — o Estado de Nova York tinha 340 mil habitantes.
A Constituição dos EUA entrou em vigor em 1789, e as palavras constitucionais, a eficiência geográfica do porto e o transbordamento da revolução industrial na Inglaterra logo passaram a surtir efeito em Nova York — entre 1789 e 1800, a população cresceu 7,1% ao ano, atingindo 60 mil habitantes.
Ao constatar a elevada taxa de crescimento urbano, e talvez por tomar conhecimento da industrialização e urbanização na Inglaterra, em 1807, o Conselho dos Comuns de Nova York nomeia três comissários para preparar um plano de expansão urbana na ilha.
Fundamental ao desenvolvimento de Nova York foi o sistema viário em rede planejado pelos membros do Conselho em 1811, que tinha o objetivo de acomodar 400 mil habitantes até 1860. As motivações centrais para o desenho retangular eram promover o crescimento urbano ordenado, recompensando os proprietários de terras no processo, padronizar as glebas e economizar com a construção de edificações de ângulos retos, que “são as mais baratas de construir e as mais convenientes para se viver”. A ideia era preparar o terreno para blocos de edificações geminadas de até 4 andares, que se tornaram o modelo predominante.
As restrições à intensidade de uso do solo eram estritamente tecnológicas, e o meio de transporte da época limitava a expansão urbana. As mercadorias eram transportadas em carroças e algumas pessoas andavam a cavalo ou em carruagens, mas a maioria andava a pé. Isso restringia a extensão das áreas construídas aos quarteirões onde era possível caminhar até o local de trabalho em tempo razoável.
As vias planas da nova malha urbana, entretanto, permitiram a introdução de bondes movidos à tração animal, que chegavam a 13 km/h e transportavam até 40 pessoas. Mesmo assim, a cidade se desenvolvia em elevadas densidades nas regiões próximas aos locais de trabalho, no sul de Manhattan.
Em uma época em que o transporte por via marítima era muito mais barato que o transporte terrestre, a capacidade do porto e o acesso a canais, lagos e rios que se infiltravam no território americano deram uma vantagem significativa a Nova York em relação à maioria das cidades americanas.
Como porta de entrada de produtos importados, e agora também escoando a vasta produção agrícola do meio oeste através do Canal Erie, aberto em 1825, a economia e a população de Nova York começam a decolar. Em 1830, trens movidos a vapor passaram a integrar a logística e o porto de Nova York passou a representar 36,8% do comércio exterior americano, dominando completamente o transporte e a imigração nos Estados Unidos.
A vantagem inicial de Nova York como porto e centro de distribuição em escala atraiu prestadores de serviços e fábricas que aproveitaram seu baixo custo de remessa. A ascensão das três grandes indústrias da cidade no século 19 — refino de açúcar, impressão e publicação, fabricação e comércio de produtos têxteis — dependia da eficiência do porto. Insumos brutos, tecidos e até romances ingleses chegavam primeiro em Nova York.
A industrialização, imigração e até a indústria financeira surgiram como consequência de sua supremacia marítima e dos ganhos de escala como centro de produção e distribuição. Terras e oportunidades de trabalho e renda atraíram constantes levas de imigrantes de toda a Europa, e a urbanização nos Estados Unidos decolou.
Em 1860, a população nova-iorquina atingiu 814 mil habitantes, — o dobro do planejado — e a densidade duplicou para 40 mil hab/km². A representatividade comercial do porto passou para 50% do comércio externo do país. Nesta época, Nova York já era de longe a maior e mais importante cidade dos Estados Unidos.
A fase inicial da industrialização americana trouxe consigo um aumento da proporção da população urbana do país, que passou de 7%, em 1820, para 20%, em 1860, com a renda per capita subindo de US$ 2.815 para US$ 4.860 (USD, 2022), respectivamente — o equivalente à renda per capita na Namíbia, no Iraque ou na Mongólia atualmente. Com a rápida migração e urbanização, surgem os problemas comuns aos centros urbanos.
Entre 1815 e 1915, 25 milhões de pessoas imigraram para os EUA através do porto de Nova York. As primeiras levas de imigrantes — entre 1800 e 1840 —, consistiam em pessoas altamente qualificadas, com flexibilidade para comprar terras e iniciar atividades agrícolas, industriais, ou mudar de cidade em busca de trabalho qualificado.
A segunda leva de imigrantes, entre 1840 e 1920, que foi a maior, incluía muitos pobres camponeses europeus que entraram em Manhattan quando a demanda por trabalhadores era alta. Mas inicialmente, sem recursos para pagar por moradia adequada ou para se locomover ao trabalho, eles passaram a habitar os bairros densos, subdividindo os imóveis.
Conforme a análise de Shlomo Angel e Patrick Hall, entre 1800 e 1840 tanto a população quanto a área construída de Manhattan cresceram 4% ao ano e a densidade da ilha permaneceu estável em 20 mil hab/km². Com a chegada da segunda leva de imigrantes, a partir de 1840, a construção civil não conseguiu acompanhar o ritmo do crescimento populacional.
Entre 1840 e 1910, a área média residencial por pessoa diminuiu de 58 m² para 25 m². A densidade chegou a 60 mil hab/km² em 1910, sendo 153 mil hab/km² em Lower East Side, onde havia 9,5 m² de área construída por pessoa. O New York Times de 28 de novembro de 1898 fala de “quartos densamente lotados” e “moradores … amontoados em suas gaiolas apertadas como coelhos”.
O rápido crescimento populacional é tipicamente resultado do crescimento econômico e da disponibilidade de emprego. A demanda por trabalhadores em Nova York era insaciável. Os salários na indústria cresceram 6,2% ao ano entre 1850 e 1890, enquanto a população cresceu 2,7% ao ano no período.
Quando a renda cresce a taxas superiores ao crescimento populacional, os habitantes enriquecem. Mas quando o crescimento populacional excede o crescimento econômico, a população empobrece. O excesso de oferta de trabalhadores na fase mais aguda do crescimento populacional causou uma queda dos salários entre 1890 e 1900, mas retomou o crescimento na década seguinte.
O caminho para o crescimento econômico de Nova York estava sendo traçado enquanto eficiente centro de produção e distribuição em escala global, atraindo recursos de todo o mundo. As economias de escala da produção viabilizavam investimentos em fábricas, escritórios e habitações na cidade, gerando empregos e consolidando gradualmente uma estrutura urbana densa de elevada intensidade de uso do solo.
Inovações no sistema de transporte e construção civil elevariam o aproveitamento da terra e a dinâmica urbana, ampliando o acesso ao amplo mercado de habitações, trabalho e consumo, gerando crescimento econômico. A cada aumento de um ponto na taxa de urbanização dos Estados Unidos, o PIB per capita subiu em média 3,86% entre 1800 e 1910. Em NY, a taxa de crescimento da renda per capita foi duas vezes superior à média nacional.
A primeira linha de trens elevados de NY surgiu em 1868, e em 1880 a maioria dos residentes de Manhattan já se encontrava a 19 minutos a pé de uma estação. As linhas de bondes a vapor foram abertas em 1883 e substituídas por carros elétricos em 1903.
O aumento das velocidades de trânsito para até 19km/h expandiu a quantidade de terra que estava localizada a uma distância tolerável dos centros de emprego na parte baixa de Manhattan. A expectativa era que a classe trabalhadora se afastasse dos bairros densos, mas poucas ou nenhuma das habitações se tornaram acessíveis, muito menos o custo do transporte — uma viagem de ida e volta, sem opção de transferência, custaria 20% da renda do trabalhador.
No fim do século 19, novas tecnologias de construção, como a estrutura metálica e o elevador, permitiram construir em alturas acima de 30 metros. Como resultado direto das economias de escala e da intensa atividade comercial, surgem os primeiros arranha-céus no centro da cidade, como o edifício American Surety, de 1898, com 110 m de altura. “Estes edifícios eram máquinas de se fazer pagar a terra” — era o ditado da época. Os arranha-céus diluíam os elevados preços da terra e da construção em inúmeros pavimentos comerciáveis, sendo os andares mais altos os mais valorizados.
O primeiro metrô subterrâneo de NY foi construído em 1907 e proporcionou passagens mais baratas, rotas flexíveis e velocidade de 65 km/h, que ampliaram a acessibilidade ao amplo mercado de habitações, trabalho e consumo, especialmente aos mais pobres, potencializando a economia urbana. A maior parte do sistema em uso hoje foi construída entre 1913 e 1931.
A densidade em Manhattan atingiu o pico de 60 mil hab/km² na década de 1910. Nesse momento, surgiu a primeira resolução abrangente de zoneamento do país, a Resolução de Nova York de 1916, que estabeleceu controles na volumetria das edificações e designou zonas comerciais, industriais e residenciais na tentativa de solucionar o problema habitacional, de insalubridade e superlotação.
Em 1925, com 7,8 milhões de habitantes, Nova York ultrapassa Londres como a cidade mais populosa do mundo. Em 1931 foi construído o Empire State Building, que permaneceu como o mais alto edifício do mundo até 1971, com 440 m.
O design art déco do edifício, assim como do edifício Chrysler (1930), com seus recuos laterais a partir de certas alturas, reflete os requisitos do zoneamento dessa época. Os novos edifícios ampliaram o espaço construído por habitante, mas não alteraram o processo de queda da densidade populacional de Manhattan que ocorreria a partir de 1910.
Entre 1910 e 1930, a população de Manhattan decresce 20% e a densidade cai 25%, enquanto a intensidade de uso do solo cresceu 44%. A Resolução de 1916 foi frequentemente alterada para responder ao crescimento populacional e às novas tecnologias de transporte, especialmente o automóvel, que revolucionou os padrões de uso da terra e criou problemas de tráfego e estacionamento não imaginados em 1916.
Os custos de transporte declinaram 95% ao longo do século XX. Com o advento de caminhões de carga, as indústrias de transformação não precisavam mais se aglomerar em torno do porto ou da estação de trem, deslocando-se em parte para os subúrbios ou para municípios mais distantes, onde inclusive, a mão-de-obra era mais barata.
Entre 1950 e 1990, os empregos industriais declinaram 73% em Manhattan e 57% em Nova York. Com o desenvolvimento econômico e tecnológico, a força de trabalho ganhou qualificação e a base econômica da cidade evoluiu para uma base especializada em serviços, especialmente serviços financeiros, gestão empresarial e imobiliários.
O sucesso destes serviços na ilha dependeu criticamente das economias de escala, da densidade urbana e sua facilidade em aproximar as pessoas, acelerar o fluxo de informação e conhecimento, e aprimorar o nível de capital humano — isso inclui a gestão da própria cidade.
A Resolução de 1961 abrangeu o uso e o volume das edificações, incorporando requisitos de estacionamento e a criação de espaços abertos. A lei introduziu o conceito de Incentive Zoning, zoneamento por incentivos, adicionando um bônus de potencial construtivo aos construtores que investissem em melhorias para a cidade, como praças, reformas na infraestrutura, e habitações de baixo custo. O índice de aproveitamento nas regiões afastadas é limitado para favorecer o desenvolvimento das regiões centrais, que têm índices de aproveitamento básicos de até 10 para edifícios residenciais e 15 para edifícios comerciais.
A densidade urbana em Manhattan caiu para 30 mil em 1980, mas a intensidade média de uso do solo nunca declinou. O índice médio de aproveitamento consolidado saiu de 2,8 em 1800 para 4,5 atualmente. A ilha de Manhattan concentra 900 edifícios com altura superior a 100 m e o espaço residencial por pessoa expandiu de 25 m² para 61 m² entre 1910 e 2010.
Hoje Manhattan conta com 1,6 milhão de habitantes e 2,5 milhões de trabalhadores, sendo notável a densidade de residentes nas áreas nobres do Central Park (60 mil hab/km²), e a aglomeração de 1,4 milhões de trabalhadores em um raio de 2 km do centro em Midtown (111 mil trab/km²).
Com renda domiciliar mediana de US$ 85 mil por ano, apenas 15% dos habitantes de Manhattan possuem carro; 19% caminham para o trabalho; e 60% utilizam o transporte público. A elevada densidade de Manhattan se dissipa com o aumento da distância do centro em áreas de baixa densidade otimizadas para o trânsito de veículos automotores.
A ascensão da cidade ocorre durante o início do século XIX e é impulsionada pelas vantagens do seu porto. Manufatura, imigração e até finanças seguiram-se a essa supremacia marítima e comercial. Em 1800, sua população era tão pobre quanto a população dos países mais pobres do mundo atualmente. Mas a cidade se beneficia das economias de escala na industrialização e transita para um centro de serviços especializados e diferenciados.
O sucesso de Nova York vem do seu papel de destaque no mercado internacional, e na construção de uma cidade dinâmica e atraente que continua a atrair capital externo e imigrantes. O preço médio da habitação em NY é de US$ 6,6 mil por m², sendo US$ 16 mil em Manhattan. 50% da produção econômica da Região Metropolitana de Nova York (MSA) ocorre em Manhattan — 0,33% do território — cujo PIB equivale a 20% do PIB do Brasil (PPC OCDE).
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarAs mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Com o objetivo de impulsionar a revitalização do centro, o governo de São Paulo anunciou a transferência da sua sede do Morumbi para Campos Elíseos. Apesar de ter pontos positivos, a ideia apresenta equívocos.
Confira nossa conversa com Diogo Lemos sobre segurança viária e motocicletas.
Ricky Ribeiro, fundador do Mobilize Brasil, descreve sua aventura para percorrer 1 km e chegar até a seção eleitoral: postes, falta de rampas, calçadas estreitas, entulhos...
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
No programa Street for Kids, várias cidades ao redor do mundo implementaram projetos de intervenção para tornar ruas mais seguras e convidativas para as crianças.
Algumas medidas que têm como objetivo a “proteção” do pedestre na verdade desincentivam esse modal e o torna mais hostil na cidade.
A Roma Antiga já possuía maneiras de combater o efeito de ilha de calor urbana. Com a mudança climática elevando as temperaturas globais, será que urbanistas podem aplicar alguma dessas lições às cidades hoje?
Joinville tem se destacado, há décadas, por um alto uso das bicicletas nos deslocamentos da população.
COMENTÁRIOS