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Para cima, para dentro ou para fora: como crescem as cidades?
Para cima, para dentro, para fora... Não faltam defensores deste ou daquele modelo de urbanização. Mas há uma questão que parece estar ausente destas discussões: será que nós podemos mesmo escolher?
No ano de 1970, o escritor Alvin Toffler fez o seguinte alerta: “nas três breves décadas entre o agora e o século XXI, milhões de pessoas comuns, psicologicamente normais, enfrentarão uma colisão abrupta com o futuro”. No livro Choque do Futuro, Toffler descreve uma condição de mal-estar, uma sensação de estresse e desorientação que acometeria os indivíduos em uma sociedade destinada a mudar cada vez mais rápido.
Nada representa melhor essa mudança do que o habitat que o ser humano criou para si. A geração anterior a Toffler conheceu um mundo eminentemente rural, do ser humano preso à terra, nascendo e morrendo em sua comunidade. A geração que está por nascer receberá um mundo já urbanizado, hiperconectado e marcado por uma condição de mobilidade extrema entre cidades e países. Nós, que vivemos hoje, temos o privilégio e a responsabilidade de observar o fenômeno urbano mudando a face do planeta.
Meio século atrás, quando Choque do Futuro foi lançado, pouco mais de um terço da população mundial vivia em cidades. Hoje estamos em 55%, proporção que deve subir para 70% em 2050. Quase 90% deste crescimento acontecerá na África e na Ásia. O número de pessoas vivendo em assentamentos informais já chega a um bilhão no mundo, e a ONU estima que, em 2030, cerca de três bilhões de pessoas precisarão de moradia adequada.
No Brasil, boa parte desse processo já se concretizou. Nosso país se urbanizou ferozmente na segunda metade do século XX, atingindo mais de 80% de população urbana na virada do milênio. Desde o ano 2000 esse movimento tem se desacelerado, mas continua ativo. Estima-se que o país acrescentará 29 milhões de habitantes às suas áreas urbanas nas próximas três décadas.
Além de acomodar os futuros moradores, as cidades brasileiras ainda precisam dar um mínimo de conforto para as famílias que já vivem nelas. Problemas como falta de saneamento, mobilidade deficiente e violência urbana se acumulam há décadas em nosso país.
Diante desse quadro, o crescimento urbano tende a ser visto mais como um problema do que como uma oportunidade. Nossa incapacidade de antever e preparar um caminho para expansão urbana empurra a cidade para o mercado informal, que loteia e constrói à margem do Estado, avança em áreas de preservação ambiental e gera milhões para o crime organizado. Tal como na síndrome descrita por Toffler, nos sentimos presos e desorientados em um futuro que escapa de nosso controle.
O curioso, porém, é que nunca se soube tanto sobre o fenômeno urbano. Nas últimas décadas, estudos baseados em Sistemas de Informação Geográfica revelaram uma face diferente das nossas cidades. Novas tecnologias agora permitem registrar a altura dos edifícios junto com a expansão horizontal da mancha urbana.
Com o acréscimo da terceira dimensão, os padrões de urbanização se tornam mais compreensíveis, o que permite traçar estratégias e monitorar resultados. Para entender como isso acontece, precisamos conhecer melhor os três vetores principais de crescimento urbano: para cima, para dentro ou para fora.
O crescimento “para cima”, ou verticalização, consiste na construção de edifícios com vários pavimentos. Muitas vezes, há a demolição de prédios mais baixos, em outras, os edifícios aproveitam terrenos vazios dentro da mancha urbana. Teoricamente, edificações em altura podem multiplicar o número de pessoas que moram em cima de um mesmo terreno.
Na prática, isso nem sempre acontece. No Brasil, é comum ver torres altas em terrenos com amplos recuos laterais e frontais, o que prejudica o aproveitamento do lote. Por isso, a verticalização nem sempre aumenta a densidade populacional.
O crescimento “para dentro” ocorre em terrenos vazios que já estão no perímetro urbano. Há casos em que esses terrenos são verticalizados, mas isso não é uma regra. Esse processo costuma ser visto com bons olhos pelos urbanistas, porque ocupa regiões da cidade que já possuem infraestrutura instalada, como asfalto, luz e esgoto.
Contudo, os vazios urbanos também podem ser ocupados por assentamentos informais onde essa infraestrutura não chega ou é precária. Mesmo assim, essa modalidade é preferível ao espraiamento urbano, que veremos a seguir.
O crescimento “para fora”, ou espraiado, acontece por meio da expansão da mancha urbana. Esse processo leva novos moradores para áreas rurais ou de proteção ambiental. O espraiamento requer a expansão da infraestrutura, algo que custa caro para a sociedade. Por isso, a expansão urbana é considerada nociva dentro do paradigma atual do planejamento urbano, que prefere cidades compactas. A despeito disso, essa é a modalidade de crescimento urbano mais comum no mundo. Segundo estudo de Angel et al, 77% do crescimento registrado entre 1990 e 2014 ocorreu em áreas não urbanizadas.
Na tentativa de frear essa expansão, urbanistas têm sugerido aproximar os locais de residência, trabalho e lazer, construindo edifícios de uso misto e eliminando leis restritivas de zoneamento. Também há quem pense que a melhor alternativa é verticalizar os lotes próximos aos eixos de transporte público.
Há quem diga ainda que é possível aumentar a densidade sem construir prédios altos, eliminando apenas os afastamentos obrigatórios. Não faltam defensores deste ou daquele modelo de urbanização. Mas há uma questão que parece estar ausente dessas discussões: será que nós podemos mesmo escolher?
Um estudo sobre a tipologia de crescimento urbano de 2019 analisou dados de satélite em 478 cidades com mais de um milhão de habitantes. O gráfico abaixo mostra as tendências de verticalização e expansão da mancha urbana ao redor do mundo.
Podemos inferir que há uma forte tendência de expansão horizontal em todas as regiões do globo, com destaque para África, China e Índia. A tendência de verticalização é bem menor, e se concentra nos países asiáticos e no Oriente Médio. A América Latina apresenta um equilíbrio entre as duas tendências, com predominância da expansão horizontal.
Na África e na Índia, onde se prevê que ocorrerá a maior parte do crescimento urbano, há uma diferença brutal em favor da expansão da mancha urbana. Qual seria a razão desse desequilíbrio? Parte da explicação está na própria natureza dos edifícios em altura.
Por envolver projetos em larga escala, a verticalização requer um mercado de capitais maduro o suficiente para financiar a construção civil. Outra imposição é a existência de empresas que dominem técnicas de construção vertical. Também são necessárias instituições que garantam o registro de propriedade, condição imprescindível para projetos desse vulto. Caso um desses fatores esteja ausente, a cidade estará limitada ao crescimento horizontal.
O crescimento “para dentro”, com a ocupação de vazios urbanos, também é limitado por uma série de fatores. Muitas vezes os donos dos terrenos não possuem capital para edificar seus lotes. Há casos em que o registro do imóvel é impreciso, ou está em disputa entre herdeiros.
Também devemos levar em conta que a legislação de muitos países limita o aproveitamento dos terrenos, o que prejudica a viabilidade financeira dos empreendimentos. Nos países mais pobres, porém, a explicação costuma ser mais simples: os lotes urbanizados são caros demais para o orçamento das famílias.
Em seu artigo, Watson explica a persistência do crescimento periférico no Sul global. Há países onde a urbanização é conduzida principalmente pela ocupação de terrenos baratos e distantes dos centros urbanos. Nesses locais, quase não há infraestrutura, e não há capacidade de pagar por ela, seja individualmente ou por meio do poder público.
Na verdade, a própria falta de infraestrutura torna esses locais atraentes, por possibilitar que as famílias evitem os custos associados ao mercado formal e aos serviços urbanos. Nos países em desenvolvimento, muitas cidades não têm opção a não ser crescer “para fora”.
A expansão de assentamentos no entorno dos grandes centros gera uma nova configuração urbana, que Watson chama de “ruralopolitana”. Conforme as áreas rurais se urbanizam, as cidades se espalham e incorporam vilas e povoados vizinhos, formando cinturões que ocupam um vasto território.
Um exemplo é o corredor de favelas que vai de Abidjã, na Costa do Marfim, até Ibadan, na Nigéria, passando pela megacidade de Lagos. Essa aglomeração abriga hoje 70 milhões de pessoas, mais do que a população da Itália.
A tendência de expansão é tão forte que algumas cidades optaram por torná-la ilegal, criando barreiras de crescimento urbano. Alguns exemplos são Seul, na Coreia do Sul, e Portland, nos EUA.
Nesses casos, a população da cidade continua a crescer, sem que isso seja acompanhado por um aumento equivalente na área construída. Como explica Shlomo Angel em seu livro Planet of Cities, essa medida leva a população a se espremer em imóveis cada vez menores e mais caros.
Há alguns anos, as correntes teóricas do urbanismo têm convergido para o modelo de cidade compacta, baseado em verticalização e preenchimento de vazios urbanos. Adensar os centros urbanos é necessário, mas não será suficiente para acomodar o crescimento dos próximos anos.
A crença no modelo de cidade compacta como solução universal impõe medidas difíceis de aplicar em países de baixa renda. Pior, a dominância desse paradigma restringe a criatividade.
É cada vez mais claro que o discurso atual do planejamento urbano está aquém dos desafios que o mundo em desenvolvimento realmente enfrenta: regularização fundiária, saneamento básico, expansão da malha viária e urbanização de assentamentos informais.
É possível planejar uma expansão urbana mais saudável, mas isso não acontecerá se os urbanistas insistirem em impor conceitos teóricos à realidade. O desafio é grande, e o futuro chega cada vez mais rápido.
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