Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
E se outro Plano Diretor tivesse prevalecido? Paulo Sá Vale imagina a capital paulista sob a visão de Saturnino de Brito.
9 de setembro de 2019São Paulo é a maior metrópole brasileira, a segunda maior da América Latina e uma das mais importantes e influentes megalópoles do mundo. A cidade é apontada diversas vezes como um mau exemplo de urbanismo: uma cidade cinza, feia, sem verde e poluída. Parte destes problemas — que são parcialmente verdadeiros —, se devem por escolhas de planejamento realizadas no passado. Contudo, sempre que um plano é apresentado, há uma voz dissonante, seja em uma larga oposição ou então pouco influente. São Paulo viveu o dilema entre dois planos que moldariam a sua forma durante o início do século XX, e escolheu aquele que deu origens às grandes avenidas e estreitamentos dos rios. Mas afinal, como seria São Paulo, caso um outro plano tivesse prevalecido? Aqui faremos um exercício para imaginar São Paulo sob esta perspectiva. Antes, é importante saber o contexto da cidade de São Paulo no início do século XX e uma breve apresentação de ambos os planos da época: Saturnino de Brito e Prestes Maia.
São Paulo preparava-se para se tornar a grande metrópole que é hoje. Alimentados pelo dinheiro do café, a capital ansiava por se modernizar. Urbanistas e engenheiros sanitaristas, como Prestes Maia e Saturnino de Brito, protagonistas deste texto, eram profundamente influenciados por ideias do urbanismo europeu sanitarista.
Muitos dos programas de paisagismo e urbanização de São Paulo realizados ao longo deste período seguiram as premissas do Urbanismo Sanitarista. Entre os principais modelos de bairros implementados sob esta ótica, temos Campos Elíseos, Higienópolis e Bela Vista, bairros da elite cafeeira e industrial da cidade.
Além disso, a cidade de São Paulo presenciou uma explosão demográfica ao final do século XIX e até a primeira metade do século XX. Tal conjectura pressionou as autoridades a tomar algumas decisões sobre o que fazer para melhorar aquela situação, que se mostrava insustentável para a maioria, incluindo a elite paulistana.
Um dos principais pontos elencados como prioridade foi a questão sanitária, em um momento onde os esgotos da cidade eram jogados diretamente nas várzeas dos rios. Tal ação levava a uma série de transtornos e problemas de saúde pública, com a proliferação de doenças e um desagradável mau cheiro. Mas então, o que fazer com os rios e com o problema sanitário? Para a questão, foram debatidos dois planos: o Plano de Saturnino de Brito e o Plano de Avenidas, de Prestes Maia.
Liderando um lado do debate sobre o que fazer com as margens dos rios da cidade de São Paulo, estava Saturnino de Brito. O engenheiro sanitarista já tinha experiência, pois foi o projetista dos canais da cidade de Santos. Contudo, não teve a força política para vencer a proposta de Prestes Maia. Mas afinal, em que consistia o seu projeto?
Essa pergunta pode ser respondida com uma frase: maior respeito aos movimentos naturais dos rios. Previa, portanto, a retificação das margens do Rio Tietê com 90 a 120 metros de largura, que seria cercado por parques com mais 30 metros de largura.
Além disso, considerava o uso integrado das águas, demandas por transporte, saneamento, energia e recreação. Estações de tratamento de esgoto, áreas de lazer contemplativas nos parques e lagos artificiais, tanto para potencializar o lazer nestas áreas verdes, quanto para servirem como elementos captadores de águas das chuvas, evitando enchentes.
Todavia, Saturnino de Brito não era um ambientalista ou um ecologista — longe disso. O seu plano também previa a criação das marginais e a realocação da ferrovia da cidade para a margem direita do Rio Tietê, circundando os parques planejados. Apesar disso, o projeto de Saturnino de Brito tinha méritos e foi utilizado como base para o Plano de Prestes Maia — que eliminou praticamente seu ponto mais positivo que era o respeito ao movimento dos rios da cidade.
Prestes Maia foi um engenheiro paulista muito influente na primeira metade do século XX. Suas ideias sobre cidade inspiraram várias políticas urbanas, assim como a construção do ideal urbano da época. Entre suas contribuições mais efetivas, tivemos o Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo.
O engenheiro publicou o estudo ainda em 1924 e apresentava a criação de diversas avenidas na cidade de São Paulo, seguindo um desenho radiocêntrico, inspirado em cidades europeias como Paris. Contudo, omitiu a importância dos rios e suprimiu boa parte dos mesmos. Além disso, o plano previu a canalização dos rios, escondendo-os.
Posteriormente, Prestes Maia utilizou o Plano de Saturnino de Brito como base e o alterou consideravelmente. Ao invés dos parques, o elemento central passou a ser as avenidas. Utilizou para isso argumentos como corte de gastos, tanto em infraestrutura, quanto em indenizações.
O Plano de Prestes Maia, ou Plano de Avenidas, com João Florence Ulhôa Cintra como coautor, foi colocado em prática na cidade e orientou grande parte do desenvolvimento da capital nas décadas seguintes, com um legado que permanece até os dias atuais.
Herança tão profunda e enraizada que tornou qualquer medida para revitalização dos rios ou prevenção de alagamentos difícil de ser tomada. A poluição, o mau-cheiro e as doenças agora estavam “controladas” — ao menos aos olhos dos planejadores, mas os problemas se tornaram cada vez maiores.
Como resolver a questão do alagamento em regiões que são naturalmente alagadiças? Que destino merece uma cidade que dá às costas aos seus rios? Exemplos de revitalização de rios canalizados como o arroio sul-coreano e o Tâmisa podem servir de inspiração, embora apresentem dinâmicas e vazão muito diferente dos rios paulistanos.
Não é correto imaginar que o Plano de Saturnino de Brito faria milagres na capital paulista. Seria apenas um elemento dentre incontáveis outros que contribuíram para moldar a cidade de São Paulo. Os rios provavelmente continuariam poluídos e a cidade desenvolvida para o carro — assim como praticamente todas as grandes cidades brasileiras, que adotaram o modelo rodoviário de desenvolvimento.
Em teoria, a cidade apresentaria mais áreas verdes e as várzeas dos rios possivelmente estariam mais preservadas. Na prática, as áreas de várzea são, muitas vezes, ocupadas por assentamentos informais pois, conforme destaca Maricato, estas regiões estão suscetíveis a esse tipo de ocupação, uma vez que elas não podem ser ocupadas legalmente pelo setor imobiliário.
Em busca de terras próximas à “cidade formal”, pessoas de baixa renda buscam por moradias nesses terrenos, ainda que eles sejam insalubres ou mesmo perigosos. Avaliando o custo de oportunidade, muitos julgam ser mais vantajoso morar próximo às regiões de maior infraestrutura, ainda que isso implique riscos — que vão de natureza jurídica até à própria saúde. As palafitas, habitação informal muito comum em áreas alagadas do Norte e Nordeste brasileiro, possivelmente ocupariam boa parte das margens dos rios paulistanos.
Assim sendo, vale reforçar a influência de um plano sobre a cidade, mas a sua fragilidade enquanto elemento isolado. Teríamos uma São Paulo diferente mas, ao mesmo tempo, muito parecida com a que temos atualmente. Um plano, por melhor que seja, não é capaz de resolver os problemas crônicos de habitação e pobreza das nossas cidades. Contudo, pode amenizá-los — ou pelo menos não criar novos problemas.
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COMENTÁRIOS
Muito complicado traçar algo hoje para cidade de São Paulo e outras mais; porém precisamos diminuir déficit habitacional coletar e tratar esgoto assim dimuiriamos gastos com saúde pública e poderiamos investir em mais prevenção mais tudo isso parece que na contra mão dos tão falados investimentos que estão sendo deste os tempos de Saturnino de Brito e Prestes Maia,só especulações Imobiliaria,indo na contra de investimento em transporte em massa como metrô não podemos demorar decadas para entregar trechos com estações inacabadas.Estados deve ouvir mais os Conselhos a população no geral para ai sim tomar decições onde investir mais o que regula hj é Mercado Financeiro fica dificil uma harmonia enter investimento /crescimento ordenadie sustentabilidade mai há como andar juntos
O caos atual é, em grande parte e do que se colhe da História, fruto da omissão dos administradores públicos ao longo de décadas, sabe-se lá se por capricho, por incompetência, ou por interesse eleitoreiro, todos enfim com o traço comum de falta de amor pela Cidade.
Quando surgiu um que se deu conta da necessidade de conter o crescimento desordenado – José Carlos de Figueiredo Ferraz, na década de 70 – este logo foi posto para fora, pois suas ideias conflitavam com os mesquinhos interesses das construtoras.
Assim as áreas necessárias à preservação ambiental e ao respeito à Natureza continuaram a ser invadidas e maltratadas, resultando no que hoje se vê.
Coibir a reincidência e, aos poucos, restabelecer as áreas que dão vida à Cidade parece ser um caminho, porém de muito longo prazo. Haja amor por São Paulo!
Interessante, mas o autor deste artigo não deixou soluções. Na minha opinião de leigo, não me parece tão complicado de se resolver os problemas de Sao Paulo e há quem diga que a mais simples solução apresentada normalmente costuma ser a melhor. O autor comentou o possível problema das pessoas quererem construir palafitas à margem do rio: é só não deixar que isso aconteça. Criar habitações periféricas com acesso fácil às áreas centrais ou de-centralizar o desenvolvimento. Atacar cada possível problema com uma solução. Somos tantas cabeças! Precisamos ser mais pragmáticos e menos intelectuais.
É complicado resolver os problemas de São Paulo porque os problemas da cidade são crônicos. Com a restrição dos índices construtivos e exigência de qualidade mínima para moradias, grande parcela da população foi impedida de ter acesso ao mercado forma de habitação e a moradia informal passou a “valer a pena”, especialmente por estar localizada predominantemente em terras que não podem ser ocupadas legalmente pelo setor imobiliário. Desse modo, mesmo que seja possível não deixar construir em cada margem de rio, isso não acabaria com os problemas da cidade. Poderia ocorrer algo parecido com o que aconteceu em Brasília (cidades-satélites)… e talvez o resultado fosse ainda pior do que a solução apresentada por conta do tamanho populacional da cidade e grande fluxo migratório ao longo do século XX.