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Despoluição, ampliação das ciclovias e criação de espaços públicos e privados nas margens do Rio Pinheiros são avanços importantes. Contudo, o difícil acesso e a falta de integração ao entorno ainda representam enormes desafios para que a população se reaproprie da orla de um dos principais rios de São Paulo.
Conforme já muito bem documentado no obrigatório “Entre rios”, os rios de São Paulo, que em sua origem “eram a razão da existência da cidade (surgida há 470 anos, entre o Rio Tamanduateí e o Ribeirão Anhangabaú), tornaram-se obstáculos ao seu crescimento”.
Com o rápido aumento populacional ao longo do século XX, crescia também o consumo de água e a geração de esgoto, despejado majoritariamente nos rios e córregos que cruzavam a cidade, os quais foram retificados, estreitados e tiveram seus leitos afundados para levar embora mais rapidamente esse esgoto.
A consolidação do automóvel como símbolo de modernidade e meio de transporte prioritário, ainda na primeira metade do século XX, levou as margens dos dois principais rios da cidade, o Tietê e o Pinheiros, a darem lugar a pistas expressas para carros.
Assim como aconteceu com muitas outras grandes cidades pelo mundo, São Paulo nasceu abraçada a seus rios, mas ela virou as costas para eles ao longo de seu desenvolvimento. O Tietê e o Pinheiros tornaram-se, por muito tempo, verdadeiros esgotos a céu aberto. Outros tantos rios e córregos foram canalizados ou escondidos debaixo do asfalto.
Já na segunda metade do século XX, a agenda ambiental e a ideia de cidades para pessoas – e não para carros – começa a ganhar força no debate público e, com elas, a despoluição e a recuperação da orla de rios urbanos pelo mundo.
Em São Paulo, depois de anos de vários investimentos e promessas frustradas, a despoluição do Rio Pinheiros – ainda que bem longe do ideal, segundo especialistas – começou recentemente a virar realidade.
Além da despoluição, em um grande programa batizado inicialmente de “Novo Rio Pinheiros” (hoje incorporado pelo “IntegraTietê”), foi implantado na margem do rio o maior parque linear da cidade (o Parque Linear Bruno Covas), as ciclovias estão sendo ampliadas – inclusive com criação de passarelas flutuantes para travessia do rio – e a Usina São Paulo foi concedida para a iniciativa privada para ser transformada em um centro gastronômico, de compras e lazer, tudo com o objetivo de recuperar a orla criando espaços para as pessoas.
Tanto em vídeos institucionais como nos muitos anúncios realizados ao longo das diferentes fases do programa, o projeto foi comparado ao do Puerto Madero, em Buenos Aires, um dos casos mais famosos e bem sucedidos (ao menos do ponto de vista turístico e econômico) de revitalização de uma área urbana degradada.
E é aqui que percebemos tanto um equívoco na compreensão do projeto do Puerto Madero e sua integração ao restante da cidade como também fica evidente o principal desafio para uma verdadeira reapropriação do Rio Pinheiro por parte da população.
Quem já visitou Buenos Aires sabe como é fácil chegar a pé até o Puerto Madero e como a área ali é caminhável e cheia de gente. Já por aqui, alguém se arriscaria a ir a pé até o Parque Linear Bruno Covas, na margem do Rio Pinheiros?
Artigo publicado aqui mesmo no Caos Planejado pelo Instituto Caminhabilidade, por exemplo, chama atenção para os problemas de acessibilidade para quem chega a pé ao maior parque linear da cidade. Segundo o artigo, há poucos acessos para se chegar lá caminhando com segurança e os percursos levam entre trinta minutos e uma hora mesmo no caso dos moradores de comunidades bem próximas, separadas do parque basicamente pelas pistas da Marginal Pinheiros.
Em artigo publicado no Diário do Comércio, em que falo de problemas urbanos que se revelam quando olhamos São Paulo de cima, trago minhas reflexões ao visitar o Hilton Morumbi, hotel que fica praticamente de frente para a Ponte Estaiada, considerada o novo cartão-postal da cidade.
“A piscina na cobertura do hotel proporciona uma ótima vista da Ponte Estaiada, um dos mais recentes cartões-postais da capital. Com o projeto do Novo Rio Pinheiros, além da despoluição do rio, foi instalado ali um mirante, que permite ver a ponte mais de perto e com calma.
“Do alto do Hilton, bem em frente – a poucos metros do mirante, portanto –, fiquei me perguntando se seria possível chegar ali a pé… Pois é, em um lugar onde predomina até hoje a lógica rodoviarista, os rios sempre foram entendidos mais como obstáculos a serem superados do que como partes integrantes e indispensáveis da cidade.
“Por mais que o Rio Pinheiros esteja sendo revitalizado e tenha ganhado ciclovias e um parque (palmas!), em suas margens ainda está nada mais, nada menos, do que a Marginal Pinheiros, com suas muitas faixas para veículos trafegarem em alta velocidade, o que praticamente inviabiliza o acesso da população a pé ao parque e ao mirante”, escrevi.
Na época, lembro que cheguei a fazer uma pesquisa no Google Maps para verificar quanto tempo levaria para chegar a pé do hotel até o mirante: quase duas horas, pasmem! Pior: apesar de a linha 9-Esmeralda do trem da ViaMobilidade também acompanhar a margem do rio, não havia trajeto possível para acessar diretamente o mirante ou o parque utilizando o trem (curiosamente, tentei fazer novamente a pesquisa e não é mais possível encontrar o mirante pelo aplicativo).
A própria Ponte Estaiada, por sinal, foi classificada pelo Raul Juste Lores em seu Canal São Paulo nas Alturas como um verdadeiro “ícone do atraso”, já que por ela não passam pedestres, bicicletas nem ônibus municipais.
Ponte Estaiada vista da calçada em frente ao Hilton Morumbi: barulho de automóveis e muito menos glamour do que nas muito mais recorrentes imagens aéreas do novo cartão-postal paulistano. Fonte: Google Street View
A despoluição, a ampliação das ciclovias e a criação de espaços públicos e privados nas margens do Rio Pinheiros são, sem dúvida, avanços muito importantes para a revitalização da área, por tantos anos abandonada. O difícil acesso e a falta de integração ao entorno, contudo, ainda são desafios enormes para que a população de fato se aproprie da orla de um dos principais rios de São Paulo.
E esses desafios passam necessariamente por enfrentar a lógica rodoviarista que ainda dita as políticas urbanas da cidade. Entretanto, se demolir o Minhocão, por exemplo, ou ao menos transformá-lo definitivamente em um parque ainda parece um sonho muito distante, o que dizer da ideia de repensar o uso e a velocidade máxima permitida para automóveis na Marginal do Rio Pinheiros?
Pois basta lembrarmos que retomar a velocidade máxima de 90 km/h nas vias expressas da marginal, após a redução para 70 km/h durante a gestão do então prefeito Fernando Haddad, foi uma das principais promessas de campanha de João Dória, candidato vencedor na eleição municipal de 2016 (coincidência ou não, em 2023 o número de mortes no trânsito em São Paulo atingiu o maior valor desde 2015…).
Ainda que pareça um sonho muito distante para nós, paulistanos, há exemplos de cidades que eliminaram autopistas e realmente devolveram espaços públicos para a população. O caso mais emblemático talvez seja o da orla do Rio Sena, em Paris, a “melhor orla do mundo” desde a eliminação da autoestrada Georges Pompidou, segundo artigo de Fred Kent recentemente publicado aqui no Caos Planejado.
Para quem visitou Paris pela primeira vez na última década, como eu, é muito difícil acreditar que carros em alta velocidade – e não pessoas, bicicletas, mobiliário urbano – ocupavam as margens do Sena. Para quem precisar de provas, deixo aqui um link para o vídeo do canal Urbanópolis que traz imagens da antiga Georges Pompidou e também outros exemplos de autopistas que foram eliminadas pelo mundo, como a Harbor Drive, em Portland, e o Elevado Perimetral no Rio de Janeiro.
Abri este artigo mencionando o documentário “Entre Rios”, que também chama atenção para o fato de que o plano de avenidas do Francisco Prestes Maia – que estabeleceu, entre outras avenidas, a criação das Marginais Pinheiros e Tietê – estruturou o modo de expansão da cidade, baseado, desde a primeira metade do século XX, na lógica do automóvel.
Novos contextos, muitas vezes, exigem mudanças radicais de paradigma. Em São Paulo, talvez já tenha passado da hora de enfrentarmos alguns legados de Prestes Maia. Caso contrário, a revitalização de espaços públicos e a reapropriação dos nossos rios parecerão sempre incompletas.
Vitor Meira França é economista pela FEA-USP e mestre em economia pela EESP-FGV.
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