Como interpretar Jane Jacobs?
Imagem: Phil Stanziola/Wikimedia Commons.

Como interpretar Jane Jacobs?

Sobre o trabalho de Jane Jacobs prevalecem duas interpretação muito diferentes: planejamento da forma e NIMBY. Ambas equivocadas.

8 de agosto de 2018

À primeira vista, a tarefa de interpretar o trabalho de Jane Jacobs parece algo para os orgulhosos e um pouco peculiares ou, sendo menos gentil, àqueles de nós sem nada melhor para fazer. Entretanto, as forças da história militam contra essa apatia: Jane Jacobs emergiu como talvez a figura mais importante do planejamento urbano norte-americano na segunda metade do século XX.

Seu trabalho é agora ensinado em todas as teorias urbanísticas e programas de planejamento urbano dignos dos códigos de acesso da ESRI. Ela é responsável por introduzir centenas de milhares de pessoas ao planejamento e urbanismo (incluindo este autor) e continua a moldar a forma como nós pensamos as cidades.

A construção de seu trabalho é uma profunda apreciação da importância do conhecimento local, do planejamento descentralizado e das ordens espontâneas que estruturam a vida urbana. Desnecessário dizer que essa não é a interpretação predominante sobre a importância e significado do trabalho de Jacobs. Prevalecem duas alternativas de interpretação muito diferentes. Neste post, argumento que ambas as interpretações estão equivocadas.

Planejamento da forma

Muitos aceitaram as críticas de Jacobs ao zoneamento convencional dos EUA, muitas vezes chamado de “zoneamento euclidiano”, como estímulo a uma nova forma de zoneamento que leva em conta observações de design.

Em contraste com os mandatos de zoneamento euclidiano, que determina a segregação dos usos do solo e a tentativa de controle das baixas densidades, Jacobs celebrou as misturas de uso da terra e densidades urbanas.

Jacobs passa grande parte de “Morte e Vida” discutindo em detalhes designs urbanos que ela vê como essenciais para a promoção da vida urbana. Muito da primeira parte de seu livro se concentra no design dos parques, ruas e quadras, e o restante do livro contém vários pensamentos sobre elementos do design que dão origem a grandes ruas e bairros.

Uma das resposta a esse trabalho tem sido o desenvolvimento de códigos baseados na forma, ou “zoneamento de transecto”. Diferente dos códigos tradicionais de zoneamento euclidiano que focam no uso da terra e nas densidades, os códigos baseados na forma tratam da escala e relação com a rua como assuntos de regulamentação estrita.

O conceito de “transecto” se refere à teoria de que a densidade urbana deve cair gradualmente ao se distanciar dos centros urbanos. Elementos dos códigos baseados na forma têm sido implementados nas principais cidades americanas, como Buffalo, Cincinnati e Miami, embora quase sempre mantenham algumas regulamentações convencionais sobre o uso da terra e densidades.

Há evidências de que Jacobs poderia ter sido simpática a alguns elementos de regulamentação baseada na forma. Na verdade, ela tem profundo interesse em como o novo desenvolvimento afeta ruas e bairros do ponto de vista dos pedestres.

Wickersham observa corretamente que Jacobs, em vários pontos, sugere que um aprimoramento do código de zoneamento deveria promover a diversidade de usos e ter como objetivo a preservação de edifícios antigos.

Jacobs advoga por um novo sistema de regulação abrangente baseado na forma, no entanto, isso conflita tanto com a abordagem teórica de tanto seu trabalho inicial como com textos posteriores sobre planejamento urbano.

Jacobs retrata ruas vivas e de uso misto não como algo a ser projetado e desenvolvido, mas como um fenômeno natural emergente que o zoneamento convencional impede. Note que alguns desses pensamentos se parecem com ideias de ativistas pelo planejamento baseado na forma: correndo o risco de simplificar demais o pensamento de seus defensores, há uma clara implicação de que o zoneamento de transecto está correto por representar um ordenamento urbano natural.

No entanto, se esse tipo de forma emerge naturalmente, por que planejadores urbanos devem implementá-la? Como Garnett aponta, os códigos baseados na forma e o zoneamento de transecto só servem para substituir uma visão imposta e particular de desenvolvimento urbano, adicionando uma nova camada de jargões complicados e revisões burocráticas. As repetidas críticas de Jacobs à padronização e ao planejamento central sugerem que isso não é o que ela tinha em mente.

Mais evidências de que a contribuição essencial de Jacobs é teórica e amplamente aplicável, ao invés de estética e limitada a cidades, podem ser vistas nos seus trabalhos posteriores. Enquanto seu trabalho posterior voltou-se para a economia e a criação do “novo trabalho”, Jacobs claramente reforça os fundamentos teóricos do “Morte e Vida”.

No início da Earth Week Teach-In, na Milwaukee Technical College, em 1970, um pouco depois da publicação de seu segundo livro de temática semelhante, Jacobs continua a reiterar seu argumento sobre planos de descentralização tanto na cidade quanto na economia. Ela critica a política econômica de seu tempo:

“O padrão que eu vejo é que as pessoas que estão mais próximas dos problemas práticos ficam impotentes para resolvê-los. As decisões são impostas de cima. Não é permitido que o desenvolvimento emerja de baixo, o que leva a poucas coisas de real valor emergindo em qualquer lugar.”

A importância contínua do conhecimento local, planejamento descentralizado e ordenamento espontâneo para o trabalho de Jacobs é constantemente reiterada. Em uma palestra no Palácio Real em Amsterdã, em 1984, Jacobs novamente lamenta a escassez dos planos descentralizados — descrevendo uma cidade em bom funcionamento “[como] um lugar com alta e constante taxa de nascimentos de pequenos empreendimentos diversos” e o poder constante da “expertise centralizada” na formação de economias e de cidades.

Felizmente, para nossos propósitos, Jacobs regularmente partiu desses princípios para discutir suas visões específicas sobre zoneamento. Entre a publicação de “Morte e Vida” em 1961 e seu falecimento em 2006, Jacobs defendeu constantemente o zoneamento de performance, uma forma de zoneamento que foca exclusivamente nas externalidades negativas de novos projetos.

Em um evento em 1970, Jacobs articulou as principais questões que esse código de zoneamento de performance deveria focar, incluindo ruído, poluição, escala, sinais, geração de tráfego e demolições. “Sob zoneamento de performance, poderia-se permitir muito mais liberdade no uso do solo do que agora, com resultados superiores para o meio ambiente“.

Dado que a sua teoria de crescimento e mudança urbana milita contra controles estritos do uso da terra de cima para baixo, e sua defesa do zoneamento de performance sugere uma alternativa viável ao status quo, há poucos motivos para que as observações de Jacobs sobre desenho urbano devam ser tomadas como base para qualquer tipo de código baseado na forma ou zoneamento de transecto.

Jane Jacobs e NIMBY

Outros têm considerado a principal contribuição de Jacobs ao planejamento sua ênfase na participação do cidadão no planejamento convencional e no poder de grupos comunitários para barrar projetos. Ao contrário dos defensores dos códigos baseados na forma, há evidências razoavelmente fortes na vida de Jacobs de que ela sentiu que muitas mudanças ocorreram sem a participação dos cidadãos.

Como observa Flint, as agora famosas batalhas entre Jacobs e Robert Moses criaram uma base para os posteriores esforços do NIMBY (“Not In My Back Yard”, ou “Não No Meu Jardim”), incluindo, mas certamente sem se limitar, a sua luta em 1952 para impedir uma estrada que atravessaria o Washington Square Park.

Além dessa batalha, Jacobs ajudou a organizar a comunidade para resistir a uma série de projetos de larga escala em Greenwich Village usando as táticas de usar as intermináveis audiências de revisão pública e pressão sobre os representantes eleitos para suspenderem os projetos.

Um observador antipático da vida e obra de Jacobs pode interpretar isso como a base para o NIMBYismo que varreria as cidades americanas durante a “Quiet Revolution” e impediria a construção de novas moradias. Por outro lado, um observador simpático à Jacobs pode interpretar isso como um modelo democrático de como todo desenvolvimento urbano deve ocorrer.

Para a primeira leitura — a Jane Jacobs NIMBY — é útil interpretar o ativismo de Jacobs à luz das circunstâncias de seu tempo e de sua escrita mais ampla. O NIMBYismo de Jacobs em Nova York era, principalmente — mas não exclusivamente -, em oposição a projetos desenhados e implementados de cima para baixo por planejadores urbanos convencionais como Moses.

Em muitos casos eram projetos de infraestrutura pública, como a Lower Manhattan Expressway, que quebrariam o tecido urbano e desalojariam milhares de moradores. No entanto, mesmo quando se tratavam de projetos residenciais públicos, refletiam uma grande teoria modernista de como revitalizar um bairro, consumindo blocos inteiros e refazendo dramaticamente a vizinhança de uma maneira que projetos estritamente privados raramente poderiam.

Perceba que na única passagem de “Morte e Vida” onde Jane Jacobs faz um claro apelo para alguma forma de regulação do uso do solo — ela defende alturas limites —, ela imediatamente volta a celebrar o desenvolvimento urbano relativamente desregulado: “O propósito do zoneamento para a diversidade não deveria congelar as condições e os usos como eles se apresentam. Isso seria a morte“.

Embora semelhante em termos, isso foi bastante diferente do NIMBYismo de hoje, cujos fins são praticamente a estagnação urbana. Lutar contra um redesenvolvimento público, como a superquadrada Washington Square Village, é um problema bem diferente da luta contra um novo edifício de quatro andares em Downtown.

Uma celebração da mudança desenfreada e do empreendedorismo permeia o trabalho de Jacobs; interpretá-la como a mãe de todos os NIMBYs por sua oposição aos projetos modernistas de seu tempo perde esse ponto.

Para a última leitura — Jacobs como modelo para uma substancial contribuição dos cidadãos nas mudanças — é novamente valioso fazer uma distinção entre os desafios enfrentados por Jacobs em seu tempo e os desafios que as cidades enfrentam hoje.

Ao empreender seu trabalho no auge do modernismo autoritário no planejamento, fica claro por que Jacobs achava que a organização comunitária de baixo para cima e a contribuição pública eram necessárias para frear seus piores excessos.

Algum nível de participação pública em projetos que irão refazer completamente o tecido urbano faz sentido — certamente para projetos públicos, mas mesmo para projetos privados, dada sua propensão a externalidades negativas, é eminentemente razoável.

O que não procede é que esse tipo de processo público deva ser necessário para qualquer mudança que vá ocorrer na cidade, como os NIMBYs sugerem hoje. Conscientes de que o conhecimento local é importante, consequência do trabalho de Jacobs e outros, as agências de planejamento hoje coordenam com frequência audiências públicas e pesquisas para coletar conhecimento local.

O problema é que os planejadores e os formuladores de políticas muitas vezes não conseguem distinguir entre o conhecimento local genuíno e o que Harry Frankfurt descreve como “conversa fiada”, que serve a outro propósito, não o compartilhamento do conhecimento.

Como qualquer observador regular de reuniões públicas pode atestar, os comentários públicos muitas vezes podem mascarar motivos nefastos, como racismo e classismo, e mesmo quando bem intencionados, podem atrasar e muitas vezes matar projetos.

A atual transferência de conhecimento não é dos cidadãos para os planejadores, mas da ira de grupos de interesse para representantes eleitos, e a mensagem é: “se você não matar essa coisa, nós vamos votar para você sair”.

Assim, enquanto mascarado por uma retórica Jacobsiana interessada pelo conhecimento local, a imposição de uma extensa revisão pública para cada projeto urbano tem o efeito de restringir verdadeiramente o planejamento descentralizado e inibir as ordens espontâneas que Jacobs passou sua carreira de cinquenta anos defendendo e comemorando.

Jane Jacobs, teste de Rorschach?

Pode muito bem ser verdade que Jane Jacobs seja simplesmente o teste urbanístico de Rorschach, alguém sobre o qual cada um de nós pode projetar nossos próprios valores e objetivos. Ela é vaga o suficiente para ser reivindicada por muitos grupos conflitantes, uma característica que eu suspeito ser compartilhada entre grandes pensadores e escritores.

De fato, os rótulos “Jacobs como uma linha dura do Novo Urbanismo” e “Jacobs como NIMBY” não são completamente sem base; Jacobs parecia ter sentimentos fortes sobre limites de altura, desejava fortes restrições de densidade para Greenwich Village, e ocasionalmente lutou contra propostas de desenvolvimento privado.

A questão chave permanece: como pesamos essas evidências distintas? Contra essas curiosas exceções em seus pontos de vista e ativismo, encontramos uma crítica de planejamento urbano baseada numa apreciação de ordem espontânea (estabelecido explicitamente na abertura e fechamento de capítulos de “Morte e Vida”), uma atitude implacável e crítica sobre muitos empreendimentos de zoneamento, e uma longa apreciação dos mercados — é preciso ler de perto Systems of Survival para perceber que ela preferia a “síndrome do Comércio” do que a “síndrome do Guardião”. Assim, chegamos a Jane Jacobs, teórica do ordenamento espontâneo.

Texto publicado originalmente no site Market Urbanism em 30 de julho de 2018. Traduzido para o português por Gabriel Lohmann, com revisão de Anthony Ling.

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