Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Cidade do México e São Paulo: os desafios urbanos das gigantes latinas. Confira nesse artigo quais são os desafios a serem superados nas grandes metrópoles.
15 de janeiro de 2018Algumas semanas atrás estive pela primeira vez no México, quando passei alguns dias na Cidade do México. As semelhanças entre a capital mexicana e São Paulo são muitas: o tamanho da população, a cultura, o PIB per capita, os problemas de trânsito, a qualidade do ar e a habitação. O urbanista João Sette Whitaker chamou as cidades de “irmãs”, em seu relato de 2013, com o qual concordo em grande parte após ter visitado a cidade.
Este artigo tem o objetivo de acrescentar alguns dados a essa discussão, além de mostrar algumas diferenças significativas que não foram mencionadas.
Embora também dominada pelo automóvel individual, a Cidade do México possui diferenças significativas em relação a São Paulo no tema transporte. Assim como São Paulo, os principais investimentos em infraestrutura de transporte nos últimos anos da capital mexicana foram na infraestrutura para automóveis.
Talvez ainda mais agressivamente que São Paulo, a Cidade do México construiu, nos últimos anos, diversos elevados no meio urbano, alguns deles ainda maiores que os de São Paulo, com o Viaducto Bicentenário, ainda em construção e que terá no total 32 km — aproximadamente dez vezes o tamanho do Minhocão.
Como já mostramos em outros artigos, tal investimento resulta em um incentivo significativo ao transporte individual, por inviabilizar o acesso a modos de transporte coletivo e ativo (como bicicleta ou simplesmente andar a pé) ao redor dos elevados. O percentual de uso do automóvel individual é ainda um pouco inferior ao de São Paulo (26% versus 30%), mas o valor tem crescido nos últimos anos, enquanto São Paulo tem conseguido diminuir essa dependência.
A grande diferença da Cidade do México está no seu transporte coletivo: ao invés de concentrar sua rede principalmente em ônibus, como é o caso de São Paulo, a capital mexicana possui uma rede de metrô três vezes mais extensa, uma rede de BRT e, ainda, um número significativo de microbuses, equivalentes às peruas paulistanas, que tiveram atuação gradualmente diminuída a partir da sua regularização durante a gestão da Marta Suplicy.
Fato impressionante é que a passagem de metrô custa somente 5 pesos, e a de ônibus 7 pesos — valores próximos a R$ 1 na cotação atual. Como mencionou o urbanista João Sette, tal política auxilia na distribuição social do sistema de transporte e da qualidade dos bairros, ao evitar que apenas uma pequena fração da região central seja atendida pelo sistema de transporte. Altamente subsidiado e com poucos recursos, o metrô se deteriorado ao longo dos anos.
Já os microbuses continuam sendo opção essencial na vida de muitos “chilangos”, como são chamados os moradores da Cidade do México. Atualmente são cerca de 14 mil desses veículos em circulação, e em 2007 eles representavam mais ou menos 30% das viagens percorridas na cidade. Infelizmente o sistema está sendo gradualmente eliminado, sem um substituto equivalente. As críticas ao microbuses — de que são veículos velhos e poluentes, além de terem motoristas conduzindo perigosamente “competindo” por passageiros pelas vias — são válidas.
No entanto, como recomendado pelo especialista em transporte alternativo Robert Cervero e em nosso Guia de Gestão Urbana, o ideal seria incorporá-los à rede de transportes, exigindo mínimas regulações para manter níveis adequados de poluição e segurança, sem eliminar um meio de transporte eficiente e difícil de substituir, dada a flexibilidade de suas rotas.
Tais rotas, embora desconhecidas em detalhe como rede, normalmente apresentam uma lógica emergente, como foi mapeado no caso dos matatus em Nairóbi. Hoje a Cidade do México tem um projeto semelhante para mapear as rotas de seus microbuses.
A Cidade do México também implementou recentemente um sistema de BRT chamado Metrobus. O projeto, aclamado por uma série de instituições, apresentou resultados que, no meu entendimento, não são suficientes. Entre as conquistas do BRT estão a medida subjetiva de uma “aparência mais limpa e organizada” e a melhoria da qualidade do ar, que poderia ser atingida com medidas regulatórias aos microbuses.
A diminuição do tempo de viagem na rota do BRT, apesar de pontualmente positiva, é pouco relevante no contexto urbano, dado que é preciso analisar os efeitos secundários referentes aos tempos de viagem das rotas que foram prejudicadas ou eliminadas com a implementação do BRT. Em Bogotá, o aclamado sistema de BRT Transmilenio não atingiu esse resultado.
O sistema de transporte coletivo da Cidade do México é mais diverso e, possivelmente, um dos principais motivos pelo qual praticamente não se vê motocicletas andando pela cidade, já que as alternativas são consideravelmente mais seguras.
Mesmo assim, os chilangos gastam praticamente o mesmo tempo por dia no trânsito que paulistanos: em torno de duas horas e meia versus três horas na capital paulista. Onde ela acerta, assim como São Paulo, é na recente eliminação das vagas obrigatórias de garagem, percebendo o impacto que tal política tem no incentivo ao uso do automóvel individual.
Muitos que visitam a Cidade do México a elogiam por dois motivos: tem um número consideravelmente maior de árvores e parques que São Paulo e quase não apresenta pichações, evidência diária na vida do paulistano. No entanto, a qualidade do ar da cidade é, de acordo com estudo recente, de três a quatro vezes pior que São Paulo, sendo a pior do mundo ocidental.
Uma das razões está na sua altitude: por estar a uma altura elevada e ter menor concentração de oxigênio no ar, parte significativa da poluição é resultado da combustão incompleta de emissões de diesel. Outro motivo, ainda, é o fato de que os veículos são mais velhos que os normalmente vistos em São Paulo, o que leva a mais poluentes.
Além da frota de milhares de microbuses antigos, o México importa milhares de carros usados dos EUA, situação que não ocorre no Brasil não só pela distância do transporte dos carros mas pelo mercado automobilístico protecionista que inviabiliza tais importações. Mesmo assim, não está claro o efeito de tais carros usados na poluição dado que a idade média da frota mexicana é ainda mais antiga que a frota importada.
Embora a Cidade do México tenha um sistema de transporte mais acessível, não é possível dizer o mesmo do seu mercado habitacional. Enquanto a Região Metropolitana de São Paulo possui cerca de dois milhões de “assentamentos subnormais” (classificação do IBGE para moradias em condições precárias), que equivale a cerca de 10% da população, é estimado que 50% da população da região metropolitana da Cidade do México viva em assentamentos precários nas periferias.
Imagens marcantes são as da comunidade de Ecatepec de Morelos, ao norte da Cidade do México, compondo a sua zona metropolitana, e considerada uma das cidades mais pobres e violentas do país, e da comunidade Neza, um dos maiores assentamentos informais do mundo, com cerca de 1,2 milhões de pessoas.
No entanto, alguns autores já apontaram as diferenças entre as “colonias proletarias” ou “colonias populares” das favelas brasileiras, sendo difícil uma comparação direta entre os problemas habitacionais das duas cidades.
Tal efeito pode ser resultado do fato de São Paulo permitir mais adensamento construtivo (e populacional) que a Cidade do México. Sobrevoando a capital mexicana é raro ver edificações de mais de três andares, enquanto o visual da capital paulista é a “selva de pedra” — feia para alguns, mas que permite moradia mais ampla para muitos outros.
Tal escassez de oferta se reflete no preço dos imóveis das regiões centrais: um imóvel na região de Polanco, bairro mais caro da cidade, custa cerca de $3,5 milhões. O Plano Diretor da capital mexicana é certamente mais restritivo, com índices de aproveitamento baixos e medidas restritivas que são raras em São Paulo: na delegação de Miguel Hidalgo, onde Polanco está localizada, é proibido construir apartamentos menores que 180 metros quadrados.
Com déficits habitacionais igualmente desesperadores em ambas as cidades, o desafio maior é construir mais, tanto moradias populares como moradias a preços de mercado, para pelo menos aliviar a demanda por unidades. Os esforços das cidades são semelhantes, com aproximadamente 16 mil e 18 mil unidades lançadas a preços de mercado por ano.
Os projetos de habitação social mexicanos também adotaram um padrão mais adensado nos últimos anos — no entanto, muitos desses entre dúvidas legais. O recente lançamento da Torre Bora, um edifício de 50 andares projetado por Zaha Hadid Architects, teria licença apenas para 12 andares, de acordo com a publicação Excelsior.
O Centro Histórico da Cidade do México passou por ampla revitalização e investimento nos últimos anos. Iniciativas públicas foram colocadas em prática, como o estabelecimento de patrimônio histórico, tombado pela UNESCO em 1987, e a melhora da segurança da área.
O magnata mexicano Carlos Slim também participou ativamente deste processo, comprando 78 imóveis no centro renovando a grande maioria deles. Slim ainda tem o controle da rede de cafés Sanborns que, na prática, ajuda a dar uso a espaços na região central que anteriormente estavam desocupados.
Os problemas sociais extremos visíveis na região do Centro de São Paulo, como a existência da Cracolândia, não aparecem na Cidade do México, embora a presença de ambulantes de comércio informal seja ampla e semelhante à da capital paulista.
Assim como São Paulo, com a gradual reforma de edificações na região central, os preços dos imóveis têm subido rapidamente, abrindo espaço para espaços de cultura alternativa como o Malaquita Rooftop. Os motivos são os mesmos: a presença de ampla infraestrutura urbana e localização privilegiada, com grandes investimentos públicos e privados para reformar não apenas edificações privadas mas também os espaços públicos.
A partir da apresentação de todos esses fatores, é difícil concluir qual cidade está à frente no que tange ao seu desenvolvimento urbano. Pessoalmente, coloco um peso significativo na acessibilidade à moradia de uma cidade, o que colocaria São Paulo à frente.
Já sobre mobilidade urbana, a Cidade do México possui uma estrutura mais desenvolvida, enquanto não há horizonte visível onde a cidade de São Paulo amplie significativamente o seu sistema de metrô, nem que volte a aceitar perueiros, além de contar com um déficit de R$3 bilhões por ano para sustentar o seu sistema de ônibus com as atuais tarifas aplicadas.
Esses desafios urbanos são extremamente complexos e mostram como políticas urbanas são decisivas para o desenvolvimento de uma cidade e, por consequência, da vida de mais de vinte milhões de pessoas em cada uma delas.
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Oi Matheus, obrigado pelo comentário! Realmente não foquei na zona metropolitana. Eu não tinha essa informação sobre os trens suburbanos das duas cidades, e teria sido uma boa adição ao artigo. Minha intenção era fazer uma avaliação geral considerando os temas sobre os quais normalmente escrevemos aqui no site, e não fazer um comparativo exaustivo de todos os pontos entre as duas metrópoles. Abraço!
Ótimo artigo, obrigada !
Só um comentário, acho que falta aqui o apontamento de uma característica fundamental da Cidade de México que impede a construção de prédios altos que nem em São Paulo. Quero falar aqui da alta incidência de terremotos que não pode ser esquecida para explicar o seu desenvolvimento menos denso e as normas de construção mais rígidas. Acho que é um fato bem importante para entender as diferenças entre as duas cidades.
Oi Melina! Obrigado pelo comentário. Entendo a preocupação, mas como você comentou, as normas de construção são mais rígidas, o que desincentiva mas não necessariamente impede a construção de tais edifícios. Aliás, como comentado no texto, a cidade ganhou muitos edifícios bastante altos nos últimos anos, inclusive mais altos que São Paulo. É tudo uma questão se o custo de investir nas tecnologias necessárias é inferior ao potencial ganho decorrente da necessidade de área construída em uma determinada região. Tudo indica que há tal necessidade de área suficiente para que isso aconteça, mas que o grande impeditivo é a regulação, e não uma necessidade técnica. Abraços, Anthony
Há um erro factual na parte “transportes”: o metrô da cidade do México é 3 e não 5 vezes maior do que o de São Paulo. Fora isso, no mérito da questão, há um problema da definição do metrô como categoria – como se sabe, é um termo que era dado a uma companhia e ainda hoje é muito difícil de defini-lo como uma categoria com características próprias e não um termo que pode ser usado por algumas operadoras (vide o “metrô” de Porto Alegre, uma antiga linha ferroviária como as dos “trens urbanos” de outras cidades brasileiras). Meu ponto é que não se compara “metrô” com “metrô”, pois as definições podem ser diferentes ou, ainda criar distinções pouco úteis, mas sim as redes de mesma capacidade. Esse tipo de visão em geral é de “turista”, que usa pouco do sistema de transporte e de forma um pouco mais impressionista. No caso de SP, o transporte de alta capacidade é feito pelo metro e pela CPTM (a distância entre as estações, o intervalo entre os trens, a densidade da área coberta e a capacidade de transporte coloca a CPTM dentro dos transportes de massa, mais ou menos como o Ubahn ou como qualquer linha de metro que fique na superfície, inclusive com capacidade maior que grande parte daquelas localizadas nos sistemas mais famosos, como o de NY), numa rede de 340 km, enquanto a Cidade do Mexico tem seu metro e mais um trem suburbano, somando mais ou menos 260 km. O sistema paulistano também é de capacidade muito maior, transportando 7 milhões de pessoas, enquanto o da cidade do méxico leva 4,5 milhões (o mesmo que o metro de SP sozinho). Sao duas cidades com capacidade bastante limitada de transporte de massa, um nada se comparado ao sistema extremamente complexo, com milhares de quilômetros e operadores, de cidades como NY, Tóquio e mesmo Londres. Ainda quanto aos BRTs, pelo menos em termos de capacidade de transporte, os corredores de SP também não ficam atrás em termos de capacidade, não sendo BRTs por questões formais, mas possuem uma rede também considerável.
Tomas, muito obrigado pelo comentário! Fizemos algumas edições no texto original a partir dele. Só uma consideração: a Cidade do México tem muito mais km de metrô enterrado, principalmente no centro. Nesse sentido, ela tem mais quilômetros de metrô “tradicional”, mas menos capacidade de transporte.
Bom, a diferença de relevo entre as duas cidades explica algumas coisas. Inclusive porque o metrô de SP, strictu sensu, têm grande parte de sua malha sobre a superfície. Mas essa é uma das questões sobre a categorização de algo enquanto metrô. O senso comum diz que é o que fica debaixo da terra, como o “underground” de Londres (apesar de mesmo este não ser totalmente subterrâneo). Mas as exceções são muitas. Uma parte considerável do metrô de nova york é acima da terra (e ele era muito mais em sua origem); praticamente todo o de Chicago é elevado… Em Tóquio e São Francisco essa definição é frágil, pois apesar de uma parte ser tipicamente o que entendemos como metrô, as mesmas linhas possuem grandes trechos que não. Enfim, o ponto não é bem sobre isso, é mais o mérito da questão, de que a Cidade do México não têm uma capacidade de transporte de massas maior do que a de São Paulo e esse meio tem uma importância menor para a cidade (como eu disse, transporta o mesmo número de passageiros que a Companhia do Metrô de SP sozinha).
Na parte dos transportes porque não falou dos trens suburbanos? a CPTM é muito mais ampla e funciona complementando o metrô, muito melhor que o “Ferrocarril Suburbano de la Zona Metropolitana del Valle de México”, a CPTM possui 273 km e transporta 2,5 milhões por dia, enquanto o sistema mexicano possui apenas 27 km e transporta meros 150 mil, o metrô de SP mesmo pequeno transporta 4,5 milhões e o Metrô do México 5,5 milhões.