Cadê a indignação com a emergência habitacional?
Paraisópolis. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Cadê a indignação com a emergência habitacional?

Enquanto brasileiros se indignam com poluição visual e prédios altos, milhões vivem sem infraestrutura básica e sob domínio do crime organizado.

4 de dezembro de 2025

Certos problemas urbanos deixam brasileiros indignados. Edifícios altos que mudam a paisagem do bairro. Fios elétricos aéreos e outdoors que geram poluição visual. A proliferação de Oxxos e farmácias. São posts que viralizam e temas focais de discussões urbanas em jornais e planos diretores. A indignação, no entanto, parece ignorar um problema mais grave.

No Brasil, 16 milhões de pessoas, equivalente à população da Holanda, moram em favelas. Isso significa, via de regra, precariedade habitacional e ausência de titularidade de terra e, portanto, de infraestrutura básica e serviços públicos. Cerca de 500 mil desses domicílios não possuem sequer acesso à rede de distribuição de água. Perante o vácuo institucional, esses territórios também se tornam reféns do crime organizado. Há uma relação íntima entre (a falta de) urbanismo e segurança pública.

Esgoto a céu aberto no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Essas favelas estão na periferia de Teresina, onde centenas de casas de taipa (construídas com técnica rudimentar de madeira e barro) não surgiram no século passado, mas em 2020, durante a pandemia. Estão também no Morumbi, em São Paulo, onde apenas em Paraisópolis moram mais de 50 mil pessoas. Ou no centro do Rio de Janeiro, onde a favela do Morro da Providência, considerada a primeira do país, é solenemente ignorada há nada menos que 130 anos. A pobreza, aparentemente, não atrapalha a paisagem urbana, tampouco gera indignação.

Nossa política habitacional tem focado, desde a criação do BNH (Banco Nacional da Habitação) em 1964, no financiamento de novos conjuntos habitacionais. “Moradia Digna”, dizia o painel mostrando o recém-inaugurado empreendimento do Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) na periferia de Imperatriz, no interior do Maranhão. A imagem que acompanhava era de casas idênticas e repetidas, com acesso precário a empregos, serviços ou redes de transporte.

Residencial Canto da Serra, do PMCMV, em Imperatriz. Foto: Ricardo Stuckert/Secom-PR

O estudo “Morar Longe”, do Instituto Escolhas em parceria com o Cepesp/FGV, avalia o resultado do PMCMV mostrando que a solução tem incentivado a ocupação de áreas mais distantes do centro das cidades. Com o financiamento, esses moradores também ficam “presos” ao seu endereço por uma década, dificultando uma troca de emprego que poderia levar à mobilidade social. Mesmo com milhões de unidades entregues, entre o Censo de 2010 e 2022 o Brasil apresentou um crescimento de 43,5% na sua população morando em favelas, evidenciando não apenas a insuficiência do PMCMV como a necessidade de atuar sobre territórios já consolidados.

O Brasil já soube fazer melhor. O programa Favela Bairro, no Rio de Janeiro, investiu em melhorias urbanísticas e habitacionais em favelas. O êxito do programa, no início dos anos 2000, levou técnicos colombianos a estudarem o caso e inspirou os atuais programas de urbanismo social de Bogotá e Medellín. Depois de 15 anos atuando em 16 favelas, o Favela Bairro foi descontinuado, jogando fora a capacidade institucional construída pelos cariocas para incorporar as suas favelas ao “asfalto”. Hoje, brasileiros vão à Colômbia tentar reaprender o que deixaram para trás.

O custo do Favela Bairro foi em torno de R$ 20 mil por família em valores atuais. Como comparação, o valor teto para um imóvel da faixa 1 do PMCMV é de R$ 294 mil. Ou seja, apenas para a unidade habitacional existe um custo dez vezes maior, sem contar o custo de levar infraestrutura e serviços às áreas periféricas onde os empreendimentos são construídos.

Leia mais: O legado esquecido do programa Favela-Bairro

Essa diferença na ordem de grandeza também se manifesta nos valores absolutos entre as duas estratégias. O Programa de Aceleração e Crescimento (PAC) incluiu programas para urbanização de assentamentos precários com um montante, no seu auge, de R$ 2 bilhões por ano entre 2007 e 2014. Enquanto isso, o orçamento do PMCMV no ano de 2025 é de R$ 138 bilhões.

Ao tomar a decisão de não fazer nada, perpetuamos as desigualdades e deixamos as portas abertas para os territórios do crime.

Temos um incêndio habitacional todo dia nas cidades brasileiras, que tragicamente aprendemos a ignorar. Ao tomar a decisão de não fazer nada, perpetuamos as desigualdades e deixamos as portas abertas para os territórios do crime. É urgente uma reflexão profunda sobre o alvo da nossa indignação urbana.

Texto publicado originalmente na coluna do Caos Planejado na Folha de S. Paulo, em dezembro de 2025.

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