Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O maior investimento da história de Israel não é um aeroporto ou uma rodovia, mas um muro de centenas de quilômetros de extensão e dezenas de torres de vigilância.
9 de abril de 2019“A arquitetura é essencialmente um gesto de paz. Em tempos de guerra não se faz arquitetura, se destrói”, disse o professor Ciro Pirondi. Em tempo de guerra — longa guerra — se construiu um muro entre os territórios denominados Israel e Cisjordânia, na Palestina. O maior investimento em infraestrutura da história do Estado israelense não é um aeroporto ou uma rodovia, mas uma deselegante parede de até oito metros de altura, centenas de quilômetros de comprimento e dezenas de torres de vigilância. Separa pessoas, negócios, vidas, desde seu início em 2000. Considerado ilegal pelas Nações Unidas.
Belém é onde nasceu Jesus, pregador do amor e símbolo judaico, cristão e muçulmano. Está a dez quilômetros de Jerusalém, mas entre as duas cidades o muro de cólera se levanta. Ninguém entra ou sai sem passar pelos portões de segurança, suas dezenas de detectores de metais e checagens de documentos. Palestinos — a grande maioria dos transeuntes — gastam horas diuturnamente para ir e voltar do trabalho do outro lado, mais do que todos.
Sua justificativa é trazer proteção aos israelenses, povo há muito sofrido e ainda sofrendo. Suspeito, paradoxalmente, que o objetivo é dar mais medo. Aos palestinos, naturalmente, mas também aos judeus. Com medo aceita-se a divisão, uma alternativa simplória frente a um problema complexo. Aceita-se um muro na ilusão de assim solucionar a história. Como coloca Rem Koolhaas ao falar do muro de Berlim, “seus efeitos psicológicos e simbólicos são infinitamente mais poderosos do que sua aparência física. (…) A arquitetura é o instrumento culpado pelo desespero”.
Os relatos dão conta de como era a situação antes da barreira israelense. Ruas cheias de gente, comércio e cultura. Depois mais de 5.000 lojas fechadas, casas abandonadas, calçadas esburacadas. Curiosamente, também se expandiu um tipo de negócio sádico: de cada lado, motoristas que não podem cruzar aguardam passageiros atravessarem a pé. Observar fotos do muro de Berlim antes e depois de sua queda dá ideia deste relato, mas ao contrário.
Sem poder entrar, como quase todos, apenas consegui ver a Faixa de Gaza. Estávamos em Sderot, cidade em Israel a menos de dois quilômetros de lá. Pela proximidade, é o destino mais frequente dos mísseis lançados pelo Hamas desde Gaza — felizmente, em grande maioria interceptados pelo exército israelense. O risco iminente, no entanto, transforma as pessoas e, claro, sua arquitetura e urbanismo.
A cidade tem cerca de 25.000 moradores, em geral minorias israelenses — marroquinos, etíopes, refugiados asiáticos. Segundo pesquisas, quase metade das crianças sofrem com transtornos de estresse pós-traumático. Todos os prédios, em geral muito baixos, têm bunkers de proteção, algo frequente em toda Israel. Há muitas famílias que dormem em um único quarto por temerem que um membro não escute as sirenes alertando sobre os mísseis. As paredes têm até cinquenta centímetros de concreto de largura, e janelas, raras, são sempre gradeadas. Nas ruas — não surpreendentemente muito vazias quando estive lá — chamam atenção os pontos de ônibus, também transformados em bunkers.
Em 2013 inauguraram uma estação de trem para conectar a cidade com o restante do país. O padrão segue: paredes grossíssimas, aberturas só do lado oposto à Faixa de Gaza, uma forma parecida a uma grande pedra, de acordo com Ami Shinar, responsável pelo desenho. Ela acrescenta o desafio: “como criar um espaço à prova de bombas e ainda assim convidativo, atraente para as pessoas?” De fato, como disse Pirondi, em tempos de guerra não se faz arquitetura.
De todas as cidades pelas quais passei, nenhuma expõe mais o conflito que Hebron, também na Cisjordânia, a 30 quilômetros de Jerusalém. A cidade é dividida entre 200.000 palestinos, de um lado, e cerca de mil cidadãos e dois mil soldados israelenses, do outro. Até o mais antigo templo sagrado do mundo é literalmente separado ao meio — a Mesquita de Abraão, chamada assim por muçulmanos, ou Túmulo dos Patriarcas, para judeus e cristãos.
Assim como em toda Palestina, Hebron tem dezenas de checkpoints controlando a entrada e saída de passantes. Como mostram os números de soldados, é uma das regiões mais militarizadas do mundo. Obviamente, o impacto no cotidiano da cidade é nítido.
A antiga grande área comercial é toda fechada aos palestinos, o que destruiu o comércio local e literalmente isolou os poucos que ainda continuam morando por lá. Parece uma cidade fantasma, mas há seres humanos trancados e escondidos dentro. Se a foto abaixo não te convencer, uma rápida procura nas imagens do Google constata (digite “Hebron Haram Street”).
Onde hoje supostamente funciona o escasso comércio local, judeus ortodoxos vivem em prédios logo acima das lojas palestinas. Para conter agressões diretas entre eles, uma horrível grade de metal foi instalada, teoricamente impedindo objetos de serem atirados abaixo. A tensão é nítida e, pior, há um desumano sentimento de caminhar dentro de uma jaula.
São centenas de anos de conflito, e a situação atual é sem dúvida das mais dramáticas em toda a história. Passados anos de frustrações, são cada vez mais difíceis as chances de um acordo de paz, em especial considerando a provável reeleição do premiê israelense, Benjamin Netanyahu. Mas há sonhos dos dois lados, e a arquitetura, o urbanismo e a arte são aspectos centrais na esperança, como sempre. Em Sderot, ao lado da Faixa de Gaza, artistas estão deixando as paredes dos abrigos antibombas mais coloridos. Em Belém, o grupo DAAR organiza residências para debater o futuro com a “descolonização”. Banksy, um dos mais famosos artista de rua do mundo, há pouco inaugurou um hotel-crítica logo ao lado do muro, com nome sugestivo: Walled Off Hotel. Iniciativas simples, mas não simplórias. Bem melhores do que construir muros. A arquitetura, as cidades e as pessoas agradecem.
João Melhado é economista, mestrando em administração pública, com foco em política urbana, pela Universidade Columbia. Em janeiro de 2019, passou dez dias em visita à Cisjordânia, na Palestina.
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