A cidade contra seus moradores: o congelamento de imóveis em Porto Alegre

A cidade contra seus moradores: o congelamento de imóveis em Porto Alegre

Centenas de imóveis tiveram seus potenciais construtivos desperdiçados pelo fato do terreno estar acima da altitude limite estipulada pelo V COMAR.

16 de setembro de 2014

O desenvolvimento de qualquer cidade está diretamente ligado à forma como ela se relaciona com sua construção civil. Uma lógica simples que nos faz pensar que é o próprio o município o grande interessado em promover boas condições para este ramo crescer, permitindo a entrada de novos moradores e o desenvolvimento da cidade. Entretanto, ultimamente isto não parece estar acontecendo em Porto Alegre. A cidade vem criando, ano após ano, situações que limitam cada vez mais as alternativas de moradia.

Em 2011, o Quinto Comando Aéreo Regional, ou “V COMAR”, definiu restrições relativas a obras que possam afetar a segurança e a regularidade das operações aéreas na capital gaúcha. O problema é que o “cone de aproximação”, que define as alturas limites para cada área da cidade, foi estabelecido em cima de uma norma internacional genérica que desconsiderou tanto a topografia como o próprio ambiente construído da cidade, limitando as construções em até 42 metros acima da pista do Aeroporto Salgado Filho. A área atingida é enorme, indo da Av. Assis Brasil à Av. Protásio Alves, e da Av. Ramiro Barcelos à Rua Ary Tarragô, englobando alguns dos bairros mais tradicionais da cidade, como Moinhos de Vento, Bela Vista e Auxiliadora.

Centenas de imóveis tiveram seus potenciais construtivos desperdiçados devido ao fato do próprio terreno estar acima da altitude limite estipulada pelo V COMAR. Isso faz com que nos terrenos em morro sequer uma casa térrea pode ser autorizada sem que passe por uma análise prévia do Comando Aéreo, independente se há construções adjacentes ainda maiores. Em ruas como a Pedro Ivo, a regra permite iniciar a construção a partir do quarto subsolo… para baixo. Para justificar uma obra simples e contornar essa burocracia leva pelo menos 6 meses, o que inviabiliza maioria dos projetos. Isso fez com que muitas pessoas passaram a evitar a compra de determinados terrenos devido à incerteza do tempo de aprovação ou se será, de fato, aprovado.

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Restrição do V COMAR: apesar da distância do aeroporto, na Rua Pedro Ivo a regra só permite construir do quarto subsolo para baixo. (Imagem: PACGov/Flickr)

Com isso, os moradores de Porto Alegre, que poderiam ser beneficiados com a estruturação de novos empreendimentos acabam sofrendo com a falta de renovação nos seus bairros e com a oferta escassa de moradia. Cria-se uma grande zona congelada na cidade, área onde fica impossível um construtor diluir os custos de um empreendimento nas poucas unidades que poderá consolidar. Diversos proprietários tiveram uma desvalorização dos seus terrenos e têm sua situação agravada pelo fato de que, com o terreno vazio, precisam pagar mais impostos do que se tivesse algo construído sob alegação de que estão “especulando” no terreno, apesar de serem proibidos pela norma de construírem.

A consequência não foi o congelamento da cidade inteira: houve apenas um redirecionamento dos empreendimentos para bairros mais afastados, potencializando diversos outros problemas gerados pelo chamado “espraiamento urbano”, como o aumento da distância dos deslocamentos (gerando trânsito e poluição) e do custo per capita da infraestrutura.

No entanto, os problemas da construção civil em Porto Alegre não estão somente nas limitações do espaço aéreo. Recentemente, o escritório responsável pela viabilização do projeto do metrô definiu pontos estratégicos da cidade onde serão executadas as estações deste equipamento. Para tal, o MetrôPOA bloqueou preventivamente todos os imóveis das quadras em questão, impedindo proprietários de realizar construções mesmo em terrenos não contemplados no projeto atual. Felizmente este quadro já está mudando: como a prefeitura abrirá o edital para as licitações das obras até o final do ano, o MetrôPoa corre contra o tempo para finalizar suas análises e definir quais terrenos serão realmente necessários para a viabilização desta obra. De qualquer forma, é importante questionar se esta análise não deveria ter sido feita anteriormente, evitando o congelamento temporário de terrenos que não tem participação alguma no empreendimento.

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Casas listadas no Inventário do Bairro Petrópolis: baixa densidade normatizada levará ao subaproveitamento do BRT sendo implementado. (Imagem: Google Street View)

Esta mesma análise prévia deveria ter ocorrido no caso recente do Bairro Petrópolis. No início do ano, uma notícia estourou como uma bomba para proprietários de mais de 300 imóveis do bairro: os mesmos foram incluídos no chamado “Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis como de Estruturação”. Alegando uma degradação das características históricas do bairro, a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC), definiu que estas “edificações inventariadas de Estruturação” não podem ser destruídas, “mutiladas” ou demolidas, sendo ainda dever dos proprietários sua preservação e conservação. Ou seja, estes proprietários também tiveram seus bens impedidos de qualquer alteração, despencando o valor dos terrenos e cessando o interesse de investidores: mais de cem moradores prejudicados se uniram para recorrer à decisão.

O Bairro Petrópolis tem uma localização privilegiada na cidade de Porto Alegre, com fácil acesso tanto ao Centro Histórico quanto aos bairros de renda mais alta do novo centro geográfico. Ele também terá acesso ao BRT que está sendo implementado na Av. Protásio Alves, que permitiria um adensamento ainda maior se seguíssemos os parâmetros utilizados na elaboração do novo Plano Diretor de São Paulo, já considerado um marco no urbanismo brasileiro. No entanto, o Inventário criará um bolsão de baixa densidade no meio de Porto Alegre e o subaproveitamento de uma importante infraestrutura de transporte da cidade.

Não estou defendendo o descaso ou a desvalorização da história da cidade, mas os órgãos responsáveis pelo desenvolvimento de Porto Alegre precisam de bom senso para avaliar o impacto de suas decisões no dia a dia dos cidadãos. Se, de fato, duas casas isoladas entre diversas torres realmente representam o patrimônio histórico e cultural da região, deveria haver a sua preservação com aluma forma de compensação para os proprietários prejudicados, pois não se deve pensar apenas no curto prazo. O planejamento também precisa prever que haja interesse da outra parte em manter o imóvel, para que se possa verdadeiramente valorizá-los como patrimônio sem que caiam no abandono, desfecho comum de milhares de imóveis tombados pelo país. Soluções oferecendo isenções de impostos ou troca por potencial construtivo poderiam voltar a atrair interessados nestes imóveis, que os utilizariam como moradia ou para estruturar sedes empresariais ou pequenos comércios. Isto faria com que ambos os lados se voltassem ao mesmo objetivo, buscando a valorização tanto arquitetônica quanto econômica do bairro.

O cenário atual do planejamento em Porto Alegre, no entanto, cada vez mais sufoca as possibilidades de quem quer construir: cerca de 45% das unidades em construção na cidade encontram-se em bairros com algum tipo de limitação. Essa restrição também penaliza fortemente as empresas de pequeno porte, que correspondem a 83% do mercado e concentram seus projetos justamente nesses bairros. Os empreendimentos e os terrenos são menores, mas os custos fixos da burocracia são os mesmos. No fim, quem é penalizado é o cidadão comum, que recebe a transferência do custo de todas essas barreiras regulatórias no preço do seu imóvel. Ainda, com o aumento dessas barreiras, ficam poucas opções de empreendimentos para estes bairros, onde a pressão da demanda por uma boa localização joga os preços para cima.

Cidades que, de forma geral, possuem menos restrições a novas construções tem um equilíbrio maior na relação entre oferta e demanda por imóveis e, assim, um custo de vida mais baixo. O planejamento de Porto Alegre deveria refletir mais sobre os impactos de suas decisões, que afetam não só a escala urbanística da capital gaúcha mas também a vida dos seus cidadãos. Afinal, como você se sentiria se descobrisse que, de um dia para o outro, o valor do seu imóvel despencou?

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