Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Com frequência arquitetos e urbanistas acusam o impacto que cada tipo de edificações pode ter na cidade. No entanto, até o momento esse impacto não tinha sido medido, sendo apenas um "achismo" de arquitetos sonhadores.
23 de novembro de 2015Alguns dos maiores desafios enfrentados em nossas cidades envolvem as consequências silenciosas que decorrem das ações individuais dos agentes e intervenções locais. Um estudo que realizamos em capitais brasileiras tem revelado a cadeia de implicações da implantação generalizada do edifício isolado no lote e fechado para rua, associado à redução do movimento de pedestres, ao estímulo à dependência do carro, à padronização e fragmentação de paisagens e ao surgimento de patologias urbanas. Esse estudo traz uma espécie de raio-x da condição atual das nossas cidades como resultado da sua arquitetura – e da influência da arquitetura no uso do espaço público e na dinâmica de bairros e cidades.
Sobretudo em áreas urbanizadas mais recentemente, vemos uma associação entre um tipo de arquitetura e de vida urbana – ou, com a falta dela. Esse tipo de arquitetura é caracterizado por afastamentos e muros, uma implantação “rarefeita” que determina a forma de relação com a rua que, por sua vez, “dilui” as atividades na rua. Essa característica reduz o acesso das atividades disponíveis para o pedestre, prejudicando a caminhabilidade, induzindo à dependência do carro, levando à micro-segregação e à insegurança no espaço público.
Suspeitamos que essas relações envolvem aspectos-chave do edifício, sua implantação e a forma urbana. Fachadas contínuas formando quarteirões compactos levariam à efeitos locais positivos: uma boa interface do edifício com o espaço público, a redução das distâncias entre as atividades, o suporte à apropriação do pedestre e à atividade econômica local, levando a uma ampla diversidade urbana. Já fachadas isoladas formando quarteirões fragmentados levariam a efeitos locais negativos e inversos ao quarteirão compacto, afastando e isolando as atividades e reduzindo a diversidade urbana.
Os efeitos urbanos positivos podem acontecer onde quer que haja potencial de densidade capaz de gerar movimento de pedestres e demanda (e oferta) de atividades locais, como comércios e serviços. Essa condição de densificação que gera o edifício em altura define boa parte da paisagem em cidades de porte: por exemplo, no Rio de Janeiro, 37,62% dos domicílios são multi-familiares. Em Florianópolis, 37.77%; e em Porto Alegre, 46.66% [1].
Com a colaboração de estudantes e o apoio do CNPq, decidimos analisar essas três cidades. Estudamos, literalmente, milhares de edifícios e centenas de trechos de ruas. No Rio, sorteamos 24 áreas, com 250 trechos entre esquinas e 3.800 edifícios; em Florianópolis, foram 169 segmentos de rua e 1036 edifícios; em Porto Alegre, foram 330 segmentos e cerca de 4.000 edificações [2]. Levantamos as características arquitetônicas, os usos do solo, contamos pedestres nas ruas cinco ou seis vezes durante um dia normal de trabalho. Monitoramos ainda a acessibilidade: analisamos ruas com níveis parecidos de acessibilidade, considerada em termos de menores caminhos (as ruas que mais encurtam caminhos entre quaisquer pontos da cidade são as mais acessíveis). Observamos diversos fatores arquitetônicos (como a densidade de portas e janelas, altura, densidade, tipo, implantação, afastamentos) e sociais (como a presença de pedestres passando ou parados na rua, a presença de atividades nos térreos e nos pavimentos das edificações, e seus graus de diversidade). Em seguida, confrontamos as características arquitetônicas com as sociais. Nossas achados nas três cidades mostram interessantes diferenças contextuais e fortes similaridades:
Nas três cidades, vimos que o tipo de arquitetura importa: encontramos duas vezes mais pedestres em ruas com predominância do tipo contínuo (> 50%). Nas áreas de baixa acessibilidade examinadas no Rio, por exemplo, a média de pedestres chega a ser quase três vezes maior quando o tipo contínuo ocupa mais da metade dos lotes. E olhando as características dos edifícios mais de perto, vimos com mais precisão o quanto a arquitetura importa:
Os tipos têm a ver com a continuidade entre fachadas de edifícios vizinhos e a distância entre eles, assim como com a rua. No Rio de Janeiro, vimos que, quanto mais ‘contínuas’ forem as fachadas no quarteirão, mais pedestres tendemos a encontrar.
Vimos uma queda do número de pedestres para cada metro de aumento no afastamento lateral entre edifícios: 15 pedestres por minuto em ruas com afastamentos médios menores do que 2,5m, e 3 pedestres por minuto em ruas com afastamentos médios entre 15 e 20m. Também encontramos uma queda do número de pedestres para cada metro de aumento nas distâncias entre o edifício e a rua: de 11,5 pedestres por minuto em trechos de ruas com afastamentos frontais menores de 1m; e 2,3 pedestres por minuto em ruas com afastamentos médios iguais ou maiores que 5m. O grande problema aqui é que o tipo isolado, favorito dos escritórios e incorporadores hoje no Brasil, e muitas vezes até mesmo exigido pela legislação municipal, tem alta correlação com afastamentos laterais e frontais.
Todos sentimos que as atividades comerciais atraem pedestres. Nossos achados confirmam isso. Mas qual é o tipo de arquitetura que dá mais suporte a essas atividades, como parte das relações entre demanda e oferta local? Lembrando que correlações estatísticas variam entre zero e -1 ou +1 (correlação perfeita negativa ou positiva) [3], o tipo contínuo tem correlação positiva com a diversidade (+0.23; em ruas de baixa acessibilidade, +0,42), contra -0.28 do tipo isolado (-0,46 em baixa acessibilidade). O tipo contínuo parece ter sido criado para permitir térreos permeáveis e ativos, e para dar suporte à troca e à vida cotidiana.
Vimos ainda o impacto negativo de muros em correlações com pedestres no Rio (-0.433), e que muros estão mais associados com o tipo isolado. Mais grave é a tendência de aumento da presença de muros: de acordo com os dados do Rio, quanto mais novas as áreas, mais muradas elas tendem a ser.
Esses achados são muito preocupantes. Mas não queremos culpar aqui a arquitetura, como se ela fosse sozinha a responsável: achamos que o problema é também social. Há uma sociedade que está produzindo essa arquitetura, de forma a reproduzir valores como a busca por segurança (e estudos mostram que, ao contrário, essa arquitetura não deixa o morador mais seguro nas ruas), status e estilos de vida baseados no uso do carro. [4]
Nossa preocupação é com um modelo arquitetônico hoje onipresente e a substituição (sem a preocupação com efeitos colaterais negativos) de um tecido historicamente produzido, com uma sabedoria acumulada e testada em séculos. Essa substituição e a fixação na torre têm levado à fragmentação das nossas paisagens urbanas, resultado de uma lógica fixada no objeto, e a patologias como a queda da caminhabilidade, o esvaziamento do espaço público, a diluição da diversidade urbana, da segurança natural, da urbanidade.
O problema é que essas “consequências não intencionadas” de escolhas arquitetônicas costumam se revelar somente adiante, quando elas já estão fixadas e nos resignamos à ideia de que estão aqui para ficar.
A arquitetura importa: ela expressa as forças da acessibilidade, da atividade, da demanda por densificação; ela estimula (ou não) a presença do pedestre. Precisamos romper com o foco exclusivo no objeto para ver mais implicações do edifício na vida e funcionamento das cidades quando consideramos o conjunto de relações em jogo.
[1] 90.61% dos endereços no Rio são domiciliares; em Florianópolis, 90,79%; em Porto Alegre, 91.14%.
[2] Veja http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.180/5554; Vargas (no livro “Efeitos da Arquitetura” a ser publicado no começo de 2016).
[3] Correlações baseadas no coeficiente de Pearson, com intervalo de confiança acima de 95% (probabilidade da média verdadeira das observações ocorrer).
[4] Veja http://urbanidades.arq.br/2012/09/arquitetura-espaco-urbano-e-criminalidade/; Vargas (livro “Efeitos da Arquitetura”).
A cidade como resultado: Consequências de escolhas arquitetônicas
Fatores morfológicos da vitalidade urbana
Os efeitos sociais da morfologia arquitetônica
Livro “Efeitos da Arquitetura”.
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COMENTÁRIOS
Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?
Não pararam pra pensar que nesse modelo de “torre” residencial “alto padrão”, o foco é mesmo ter certa distância em relação aos eventuais pedestres? O foco é se distanciar ao máximo do “caos” urbano, vendendo uma imagem “bucólica” a quem pode pagar.
Ai se pesa a influência de Corbusier e Lucio Costa na veia.