O que a ciência diz sobre a regulação do uso do solo no Brasil?
Imagem: Cecília Bastos/USP Imagens.

O que a ciência diz sobre a regulação do uso do solo no Brasil?

Em países como o Brasil, uma parcela significativa da população não tem acesso ao mercado formal de moradia que está sujeito à implantação de fato das regulações do uso do solo.

6 de julho de 2023

O uso do solo é um dos assuntos mais discutidos no planejamento urbano de um município. Uma das formas mais frequentes de regulação de uso do solo é de separar a cidade em diferentes zonas, o chamado “zoneamento”, cada uma com diferentes permissões sobre o que, como e quanto pode ser construído em cada terreno, assim como quais atividades podem se estabelecer ali.

Entre as regras que fazem parte do zoneamento, é comum encontrar não só limites às alturas das edificações, também conhecido como limitação de gabarito, mas também o Coeficiente de Aproveitamento (CA), chamado de Índice de Aproveitamento em algumas cidades. Ele estabelece o quanto se pode construir em um lote, o que não representa o número de pavimentos do edifício. Por exemplo, se o lote tem 200 m² e o CA é igual a 2, a área construída do edifício deve ser no máximo 400 m² (200 x 2). 

No entanto, existe outro parâmetro frequente para regular o uso do solo chamado de “Taxa de Ocupação”. Ela define a porcentagem do terreno que pode ser ocupada pela projeção da edificação e está intimamente relacionada ao Coeficiente de Aproveitamento. Por exemplo, para um terreno com 200 m² e CA = 2, a área construída do edifício deverá ser no máximo 400 m². Mas se a Taxa de Ocupação for de 50%, apenas 100 m² quadrados do terreno poderão ser edificados, e os 100 m² restantes deverão ser de área livre.

Isso significa, em um cálculo bruto, que a edificação terá 4 pavimentos (térreo mais 3 andares), e cada pavimento terá uma área de piso de 100 m². Há alguma relação, ainda, da Taxa de Ocupação com os “recuos”, ou “afastamentos” obrigatórios, normalmente da edificação até os limites do terreno. As exigências mais comuns são afastar o edifício da calçada (recuo frontal), e das edificações ao redor (afastamento lateral).

Também é comum municípios regularem os locais onde é permitido parcelar a terra em lotes urbanizáveis. Por lei federal, o tamanho mínimo de um lote urbano no Brasil é de 125 m². Os municípios podem estabelecer lotes mínimos ainda maiores, além de exigir que o loteador instale infraestrutura de água, esgoto ou energia elétrica.

Essas regras, embora bem intencionadas para ordenar o crescimento urbano, podem trazer consequências negativas imprevistas. Nesse artigo, trazemos evidências de trabalhos acadêmicos recentes, relevantes para o entendimento do desenvolvimento urbano das cidades brasileiras.

A regulação e a acessibilidade à moradia

Embora muitos se preocupem com a transformação urbana gerada por edifícios maiores e aumentos de potencial construtivo, a restrição ao aumento de área construída (e, consequentemente, da oferta habitacional) frequentemente contribui para tornar a moradia mais cara.

Em artigo de 2017, economistas da UFPE Ricardo Carvalho de Andrade Lima e Raul da Mota Silveira Neto compararam as cidades brasileiras que aprovaram leis de parcelamento, zoneamento e uso do solo. O estudo investiga o impacto dessas regras sobre a média do preço de aluguéis e sobre o crescimento do estoque de casas. Os resultados indicam que a adoção de normas de zoneamento está ligada a um aumento médio nos preços dos aluguéis entre 5,4% e 6,3%.

Outro grupo de economistas da UFPE, Raissa Dantas, Gisleia Duarte, o mesmo Raul da Mota Silveira Neto e Breno Sampaio, analisaram o efeito das restrições de altura máxima edificável nos preços de casas e apartamentos em Recife. A lei aplicou essas restrições somente em alguns bairros, o que proporciona uma boa comparação com o resto da cidade.

Os resultados indicam que as restrições de altura aumentaram o preço dos apartamentos entre 8% e 11%. Já as casas perderam entre 27% e 32% do seu valor de mercado. Isso ocorreu porque boa parte do valor das casas estava na possibilidade de demoli-las e construir um prédio maior no terreno. Raul Neto comentou os resultados desse estudo no episódio #55 do nosso podcast.

Relevante para a discussão recente sobre o Plano Diretor de São Paulo, os pesquisadores Santosh Anagol, Fernando Ferreira, e Jonah Rexer, da Universidade de Wharton, analisaram o efeito do aumento do CA máximo na cidade de São Paulo promovido pela Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, aprovada em 2016. O estudo indica que a mudança levou as incorporadoras a obter 65% mais aprovações de projetos nos quarteirões que aumentaram o potencial construtivo. 

Prédios em São Paulo, capital.
São Paulo/SP. (Imagem: Cecília Bastos/USP Imagens)

As regiões que permitiram este potencial maior registraram aumento na oferta de imóveis e redução dos preços. Uma das críticas mais comuns ao adensamento é que ele provoca a valorização dos imóveis, pois bairros recentemente transformados costumam oferecer mais amenidades. Mas segundo os pesquisadores, o efeito do aumento da oferta (que tende a diminuir os preços) superou os ganhos de amenidades associados ao adensamento, indicando que o aumento ainda maior dos potenciais construtivos levaria a ganhos sociais ainda maiores.

A regulação e a informalidade

Em países como o Brasil, uma parcela significativa da população não tem acesso ao mercado formal de moradia que está sujeito à implantação de fato das regulações do uso do solo. Por este motivo, alguns pesquisadores analisaram não o impacto no preço, mas sim no aumento da informalidade mediante a presença de regulações mais rígidas de uso do solo.

Neste trabalho, o economista Ciro Biderman, da FGV, investiga se o excesso de regulação é um incentivo ao crescimento da cidade informal. Para isso, o autor comparou municípios que implementaram regulações de uso do solo durante a década de 1990 com aqueles que não adotaram nenhuma regulação até o ano 2000. O estudo aponta que as normas de zoneamento e parcelamento do solo estão associadas a maiores índices de informalidade.

A conclusão vai em linha com estudo de Cynthia Goytia e Eric J. Heikkila que, avaliando a relação entre regulação do uso do solo, acesso à moradia e informalidade em 191 regiões metropolitanas ao redor do mundo, indica que, no longo prazo, regulações muito restritivas diminuem as opções de acesso à moradia formal, o que estimula o crescimento da cidade informal. 

Menos densidade é maior ocupação do espaço natural

Neste artigo publicado em 2022, os economistas Ricardo Carvalho e Leonardo Monastério analisam como o Coeficiente de Aproveitamento se relaciona com o crescimento da mancha urbana, ou seja, o espaço ocupado pela área urbanizada da cidade. Para isso, os pesquisadores examinaram o CA máximo nas 325 maiores cidades brasileiras.

Os indícios apontam que as cidades que impõem restrições mais rígidas (menores CA máximos) possuem maiores áreas urbanas. Também mostra que, em média, a redução de um desvio-padrão no CA máximo está associada a uma ampliação da mancha urbana em cerca de 12,4%. Outra observação é que cada cidade perde em média US$ 9,56 milhões por ano com a redução do CA máximo, em decorrência da ampliação dos custos com transporte. Recentemente, o Caos Planejado publicou uma entrevista com Ricardo Carvalho sobre as conclusões do artigo.

Grandes terrenos que nem todos conseguem comprar

Paulo Coelho Avila, urbanista que atua no serviço público federal desde 2008 como Analista de Infraestrutura, analisa os efeitos da Lei Federal 6766/79, que regula o parcelamento do solo urbano. Segundo o autor, regras como o lote mínimo de 125 m² dificultaram a oferta de habitação para baixa renda, empurrando muitas pessoas para o mercado de moradia informal.

Além disso, vários municípios adotaram processos custosos e burocráticos de aprovação de projetos, o que também estimula a informalidade. Há indícios de que, em alguns desses municípios, a restrição à aprovação de projetos, aliada ao baixo investimento em infraestrutura, foi usada para desestimular a migração de pessoas do interior do país para a cidade.

Mais recuos, menos pedestres

Movidos pela hipótese de que quanto maior o afastamento entre os edifícios e entre os edifícios e as calçadas, menor a movimentação de pedestres, os urbanistas Vinicius Netto, Julio Celso Vargas e Renato Saboya analisaram milhares de edifícios e centenas de trechos de rua nas cidades do Rio de Janeiro, Porto Alegre e Florianópolis.

Os pesquisadores analisaram as características arquitetônicas, os usos do solo, e fizeram contagem de pedestres nas ruas cinco ou seis vezes durante um dia normal de trabalho. O resultado, publicado em artigo no Caos Planejado em 2015, foi alinhado com as expectativas, mostrando uma queda do número de pedestres à medida que tanto os afastamentos frontal como lateral aumentam.

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