Por que o uso do transporte público em Curitiba ainda é tão baixo?
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
A convite do Arq.Futuro, Anthony Ling escreve sobre as transformações do IV Distrito de Porto Alegre.
17 de julho de 2017Por ocasião do seminário Avenida Paulista: Novos Projetos, Novos Rumos, o Arq.Futuro convidou alguns autores para escreverem sobre as mudanças nos usos dos centros históricos e eixos culturais das cidades brasileiras. Neste artigo, Anthony Ling trata das transformações nos usos do IV Distrito em Porto Alegre.
A cidade é um processo em constante transformação. Por mais nostálgicos que possamos ser com as virtudes urbanas do passado, ou contentes com a situação urbana atual, cidades respondem às demandas e necessidades do seu tempo, transformando não só a sua forma edificada como o uso das edificações existentes.
William Easterly, Laura Freschi e Steven Pennings do NYU Development Research Institute mostraram essa transformação no Greene Street Project, que mapeou a transformação da quadra em torno da Greene Street em Nova York desde 1830. As primeiras edificações eram residências unifamiliares grandes e espaçosas, distantes umas das outras, difícil de imaginar em uma região central de Manhattan. Os moradores eram ricos suburbanos que, com o passar do tempo e o crescimento da cidade, venderam suas propriedades. Os terrenos foram compartimentados, as casas ficaram mais próximas umas das outras e se transformaram em sobrados. O público mudou: em 1870 a principal atividade econômica da Greene Street era a prostituição. Na virada do século, a revolução industrial tomou força nos Estados Unidos e a quadra mais uma vez se transformou, tornando-se ao centro da maior produção têxtil dos Estados Unidos. A quadra se verticalizou, com a predominância de edifícios em estrutura metálica pré-fabricada, com grandes lajes para permitir a função industrial e fachadas imitando estilos neoclássicos dos séculos anteriores. Um grande incêndio em uma das fábricas, que levou à alteração da legislação construtiva para edifícios industriais, somado à estagnação econômica da Grande Depressão nos Estados Unidos, levou ao declínio da quadra e ao seu eventual abandono. O período coincidiu com as primeiras legislações de zoneamento de usos em Nova York, determinando o uso industrial — já ultrapassado — à quadra.
Após décadas de declínio, os anos a partir de 1960 foram marcados pela ocupação irregular destes edifícios por artistas e galerias de arte, que viam uma beleza escondida por trás do abandono e aproveitavam as grandes lajes, que funcionavam bem para instalações e exposições. Apenas em 1971 os artistas foram legalmente autorizados a morar nestas edificações anteriormente zoneadas para uso industrial. A partir daí, a nova ocupação trouxe interesse e investimentos para a região, permitindo sua transformação mais uma vez. Na década de 1990, as marcas de luxo viram o potencial do local e a presença de um público diferente, com o qual elas gostariam se identificar, e abriram lojas — uso que até hoje é predominante e permanece.
A história do IV Distrito de Porto Alegre, formado pelos bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes, Anchieta, São João, IAPI, Passo D’Areia, Humaitá e Farrapos, segue um padrão semelhante. Sua história se inicia no final do século 19, com desenvolvedores de terras e empresas comprando glebas para construir suas fábricas. Os loteamentos também teriam as construções de apoio para seu funcionamento, desde a habitação para os funcionários até a residência dos proprietários da fábrica e edificações para serviços e comércio. Praticamente todo o IV Distrito, suas ruas, usos e edificações, se desenvolveu sem um planejamento central e sem um objetivo final para o bairro ou seu significado para a cidade. O resultado disso foi, na época, um grande sucesso. As indústrias tornaram o IV Distrito um pujante centro econômico, e a mistura de usos, residentes e visitantes o transformou em um caldeirão de culturas. Muitas das empresas que ali se estabeleciam eram de imigrantes, e uma grande variedade de línguas podia ser ouvida ao passear nas ruas do IV Distrito. O local era considerado um “bairro cidade”, no sentido de ter todas as funções para o seu funcionamento, apresentando os usos mistos hoje considerados prioritários pela grande maioria dos urbanistas.
Semelhante ao caso de Nova York, as indústrias começaram a sair do IV Distrito após uma grande catástrofe, a enchente de 1941, por receio de operar em uma zona de risco. Com o crescimento da cidade, a necessidade de galpões maiores para as grandes indústrias e a transição da cidade de industrial para a nova economia, baseada em conhecimento e serviços, as empresas emigraram para a Região Metropolitana e outras cidades, sobretudo a partir de 1970. Apesar disso, em 1959 Porto Alegre aprovou uma legislação de zoneamento e classificou os bairros do IV Distrito com vocação industrial. A restrição a atividades não-industriais terminou apenas em 1999, quando o Plano foi atualizado, permitindo o uso misto em grande parte dos bairros que compõem o IV Distrito.
Essa restrição impediu a transformação do uso das edificações, muitas permanecendo abandonadas por décadas. Hoje, após 40 anos de baixa atividade, ainda é possível encontrar no IV Distrito um grande número de galpões abandonados, comércios subaproveitados e edifícios residenciais com altas taxas de vacância. A degradação das edificações, somada às exigências da legislação atual, dificultam a adaptação dessas construções para novos usos.
Os índices de aproveitamento no IV Distrito ainda são baixos, em razão do risco dos incorporadores para atuar nos terrenos. Parte importante do problema são as exigências da legislação urbanística, várias delas incompatíveis com a realidade construída e, em certos casos, ultrapassadas do ponto de vista do pensamento urbanístico. Exigem-se, por exemplo, vagas mínimas de estacionamento por construção, o que incentiva o uso dos carros; também são exigidos recuos entre as edificações, reduzindo a densidade da ocupação e prejudicando a caminhabilidade. Seguir tal legislação reproduziria os padrões ineficazes de urbanização das últimas décadas. Essa situação leva à necessidade de um trabalho conjunto entre vários incorporadores e, pela escala da tarefa, surge o interesse em realizar uma Operação Urbana Consorciada, com a participação do poder público e elaboração de legislações específicas para a região, incentivando uma transformação nos seus usos.
Mesmo assim, o IV Distrito hoje conta com uma série de microtransformações, liderada por uma classe cultural assim como ocorreu na Greene Street meio século atrás. Um dos principais exemplos, o Vila Flores, é um antigo casarão de residência operária que ficou abandonado muito tempo, em que a família proprietária viu a oportunidade de reformá-lo de maneira única, reunindo esforços de artistas e da comunidade local. Uma série de pequenos empreendedores culturais seguiu a iniciativa, como o Galpão Makers, um espaço de criação colaborativa, e o Distrito Porto Cervejeiro, um espaço que reúne microcervejarias, ambos ocupando espaços previamente industriais. Um outro grupo, chamado Distrito C, reúne os mais de 80 pontos relacionados à economia criativa na região, chamando atenção para o novo uso predominante no IV Distrito.
Atualmente, há tratativas em andamento para acelerar essa transformação, com a UFRGS liderando um grupo que elabora o masterplan para a região com apoio da Prefeitura. O grupo pode ficar tentado a enquadrar a região num zoneamento que imponha o uso e a densidade característicos da economia criativa — mais usos culturais e mais moradores. No entanto, como mostra o resultado do Greene Street Project, nenhuma região possui uma vocação intrínseca ou permanente. A vocação de um bairro é um resultado inesperado, imprevisível, de uma ação coletiva e colaborativa entre milhares de agentes, e que se transforma a cada dia.
Artigo publicado originalmente no site Arq.Futuro.
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