Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Visitamos Tamansourt, no Marrocos, uma cidade com investimento de mais de 2 bilhões, com planejamento urbano teoricamente perfeito — mas que fracassou.
10 de novembro de 2017Imagine uma cidade com edifícios de uso misto baixos, juntos às calçadas e com fachadas contínuas. Entre esses edifícios, espaços públicos amplos e arborizados, com um largo boulevard em seu centro para desafogar o trânsito. Isso tudo próximo a um grande centro urbano e com uma vista incrível de algumas das maiores montanhas do continente. Um planejamento urbano teoricamente perfeito — contudo, uma cidade fracassada. Tamansourt é uma nova cidade planejada situada 20 km ao norte da região central da Medina de Marrakesh, no Marrocos.
Lançada ao final de 2004 por uma vontade do rei, Mohammed VI, ela deveria ter mais de 450 mil habitantes ocupando cerca de 2.000 hectares em um período de 10 anos. Hoje, 13 anos depois, o número não passa de 70 mil. A cidade é resultado de um plano maior do rei para criar uma série de cidades satélites e, originalmente, Tamansourt deveria se tornar a maior cidade do continente africano. Para se ter uma ideia, a maior cidade da África atualmente — e a que cresce mais rápido — é Lagos, capital da Nigéria, que tem cerca de 16 milhões de pessoas, e com previsão de dobrar esse número nos próximos 30 anos. O que faz Lagos ser atraente são as pessoas, e não seu espaço construído: Lagos cresce em meio a um desenvolvimento urbano caótico que pouco respeita as tentativas locais de planejamento.
Tive a oportunidade de visitar Tamansourt algumas semanas atrás. A cidade é dividida em dois lados, leste e oeste. O lado oeste é um pouco mais habitado, mas é possível ver inúmeros imóveis abandonados. O lado leste é praticamente todo abandonado, com muito menos construções que o lado oeste — e muitas delas vazias.
É difícil representar a sensação do local através de uma imagem dado que, apesar de ter muitas construções terminadas, o silêncio é quase absoluto: um cenário quase “pós-apocalíptico”, em linguagem cinematográfica.
Os motivos para o fracasso são evidentes para quem acompanha o Caos Planejado. Tamansourt mostra que o espaço físico de uma cidade importa muito menos do que as pessoas que nela vivem. Uma cidade tem sucesso por causa de suas pessoas, e não por causa de seus prédios.
A tentativa de criar uma cidade inteira do zero foge da própria natureza do que uma cidade significa: uma aglomeração de pessoas que nasce e cresce organicamente. A nova cidade marroquina também está relativamente longe do centro de empregos, e há ainda menos acesso de transporte público que no restante da cidade, que já é limitado.
Atualmente apenas uma linha de ônibus liga Tamansourt a Marrakesh. Marrakesh tem um crescimento urbano espraiado e cortado por grandes avenidas e que, com a baixa renda média per capita da população, incentivou a adoção de motocicletas como um dos principais meios de transporte.
Cidades completamente planejadas se mostraram extremamente ineficientes por diversas vezes. Um caso trazido à tona recentemente foi o de Fordlândia, cidade construída no interior do Pará por Henry Ford em 1928, planejada especialmente para a produção de borracha, e que foi abandonada em 1934.
A Arábia Saudita também tem sua Tamansourt: The King Abdullah Economic City (KAEC) é uma das 4 mega-cidades futurísticas construídas pelo falecido rei da Jordânia — e que, assim como Tamansourt e Fordlândia, se encontra praticamente deserta.
Caofeidian, uma iniciativa do governo de Singapura em parceria com o governo chinês, foi construída em 2003 e esperava abrigar mais de 1 milhão de de habitantes, mas acabou se tornando apenas mais uma na lista de cidades fantasmas, como as já citadas aqui no Caos Planejado por Luiz Eduardo Peixoto.
No entanto, nem toda cidade extremamente planejada vira uma cidade fantasma, e nós temos um exemplo bem próximo: Brasília, que concentra uma das maiores rendas do país, tem seu transporte totalmente baseado no carro, e vê sua população de classe mais baixa completamente afastada do seu centro urbano.
Em uma situação parecida está Chandigarh, na Índia, construída na mesma época e com base nos mesmos princípios modernistas, e que vive com os problemas de um planejamento que, 50 anos depois, não corresponde com a realidade da cidade — o plano original não suporta a população, duas vezes maior do que a prevista, nos 14 tipos de moradias estipulados.
O plano também não previa espaço para comércio de rua, tão essencial para a cultura indiana, e era baseado no uso do carro que, por sua vez, não se popularizou na cidade até hoje.
Qual foi a reação do rei Mohammed VI frente ao fracasso da cidade de Tamansourt? Apesar de cerca de 2,2 bilhões de euros de recursos públicos perdidos, o monarca recentemente “relançou a cidade” em mais uma tentativa de reativar o interesse, sendo possível encontrar projetos de 2013 no site dos escritórios de arquitetura e urbanismo Oualalou + Choi e Mik.S. Infelizmente, sabemos que dificilmente chegará perto do resultado esperado.
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