Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Entrevista com o italiano Giuseppe Grezzi, conselheiro de mobilidade sustentável que fez com que Valência fosse reconhecida por alcançar metas ambiciosas de sustentabilidade.
1 de julho de 2024“A liberdade não é poder dirigir para todos os lugares, como alguns dizem. A liberdade é poder ir a qualquer lugar sem carro.”
Essas palavras, ditas por Janette Sadik-Khan, uma das principais especialistas em transporte global e transformação urbana, inspiraram Giuseppe Grezzi, o homem que nos últimos oito anos revolucionou a mobilidade em Valência, que foi honrada com o Prêmio Capital Verde Europeia 2024 (European Green Capital Award). Esse prêmio anual da Comissão Europeia reconhece a cidade que teve mais sucesso em conseguir alcançar metas ambiciosas de proteção ambiental. Hoje, 75% de suas ruas têm limite de velocidade de 30 km/h, e há um limite de 50 km/h nas demais vias. Desde a chegada de Giuseppe Grezzi, o uso de ciclovias aumentou mais de 200%.
Nascido em 1973 em Latronico, na Itália, Grezzi foi o conselheiro de mobilidade sustentável de Valência de 2015 até junho de 2023, além de ter atuado como presidente da empresa de transporte local. Confira a entrevista concedida por Grezzi para a revista Domus.
Como Valência era em 2015?
Giuseppe Grezzi: Era uma cidade sem um projeto de mobilidade sustentável. Com os seus 800 mil habitantes e mais de 135 km², é a terceira maior cidade de Espanha depois de Madrid e Barcelona. Ela tem um centro com ruas muito estreitas, e em 2015 essas ruas e o resto da cidade estavam invadidos por carros. Não havia rede de ciclovias, muitos acidentes ocorreram devido ao excesso de trânsito e, para piorar, a empresa de transporte público quase faliu.
Quais foram os primeiros passos para transformar a cidade?
Giuseppe Grezzi: Estabelecemos um limite de 30 km/h em todo o centro histórico. Com o prefeito Joan Ribó Canut, queríamos enviar uma mensagem forte e clara aos cidadãos de que era hora de agir de forma sustentável e segura, mudando hábitos enraizados. Ao introduzir uma mudança tão radical, as ações são importantes, mas as palavras também: essa foi a razão pela qual o Departamento de Trânsito e Transportes foi renomeado como Departamento de Mobilidade Sustentável. Da mesma forma, passamos da Portaria de Circulação de 2010 para a Portaria de Mobilidade de 2019, que regulamentou todas as formas de circulação na cidade para que houvesse equidade espacial e acessibilidade para todos os usuários nas melhores condições de segurança e sustentabilidade, protegendo os mais vulneráveis dando a eles prioridade, tendo em mente que mais de 50% dos deslocamentos dentro da cidade são feitos a pé.
Mas o limite de 30 km/h foi apenas o ponto de partida. Prosseguimos retirando, uma a uma, as vantagens de utilizar o carro ao invés dos outros meios de locomoção. Para mudar o paradigma “eu me desloco mais rápido de carro e, portanto, chego mais cedo ao meu destino”, trabalhamos na sincronização dos semáforos, por exemplo, de modo que dirigir rápido fizesse com que se perdesse a chamada “onda verde”, que normalmente é alcançada pelos motoristas ao aumentarem suas velocidades. Também limitamos as possibilidades de estacionamento no centro da cidade.
Leia mais: Os danos causados pelos automóveis
Hoje, a praça da prefeitura é pedestrianizada…
Giuseppe Grezzi: Nós imediatamente começamos a testar a situação, fechando a praça para carros aos domingos e abrindo para os cidadãos, acolhendo várias atividades (mercado de agricultura local, festival de paella, etc.). Disseram que ninguém viria ao centro sem usar o carro. Após dois meses, começamos a fazer isso todas as semanas, porque as pessoas nos pediram. Então percebemos que a praça poderia se tornar permanentemente pedestrianizada. Esse foi um projeto que concluímos quatro anos depois, um pouco atrasado devido à COVID-19. O principal problema era que 15 linhas de ônibus convergiam naquela praça, então analisamos milhões de dados para identificar as rotas de origem e destino dos usuários, as quais convertemos, então, de rotas radiais para rotas perimetrais.
Todas essas medidas, no entanto, só fazem sentido se os serviços de transporte público forem aumentados…
Giuseppe Grezzi: O horário das 23 linhas foi estendido até tarde da noite. Os ônibus funcionam quase 24 horas por dia e, desde 2016, foram introduzidos mais de 300 novos ônibus, 300 motoristas foram contratados e 900 paradas de ônibus foram construídas. Perto das paradas e estações de ônibus os cidadãos também dispõem de estacionamentos de bicicletas e podem acessar serviços de compartilhamento.
Como vocês garantiram a equidade e acessibilidade?
Giuseppe Grezzi: Criamos um bilhete integrado de ônibus e metrô, um bilhete anual de 20 euros para aposentados e um bilhete bienal de 5 euros para menores de 14 anos. E também um bilhete de 10 euros para cidadãos de baixa renda. Um bilhete de dez viagens, que custava 8,50 euros, agora custa 4 euros. É essencial educar os usuários de amanhã: se fazemos com que os jovens se acostumem a usar o ônibus, teremos cidadãos mais responsáveis no futuro. E a situação financeira da empresa de transporte público melhorou.
As ciclovias incentivaram as pessoas a pararem de usar os carros?
Giuseppe Grezzi: Em 2015, Valência tinha 123 km de ciclovias, e em 2022 chegamos a 190 km. Isso é um aumento de 50%. Mas o número mais interessante foi o aumento no uso de bicicletas: um crescimento de mais de 214%, especialmente no raio de 5 km do centro histórico que foi inaugurado em 2017.
Nas ruas de algumas cidades, como Milão, os ciclistas muitas vezes levam a pior. Como vocês garantem a segurança deles?
Giuseppe Grezzi: Ciclovias precisam ser protegidas do resto da via. Aquelas faixas demarcadas apenas com pintura eu nem considero como ciclovias. São apenas ciclorrotas. Todas as nossas pistas de bicicletas têm pelo menos 2,5 m de largura, são bidirecionais e protegidas. Não é por acaso que o uso da bicicleta aumentou de 30% para 40% nas categorias infantil, feminina e familiar. A sincronização dos semáforos nos permitiu favorecer o trânsito de bicicletas. E foi assim que, em apenas poucos anos, Valência se tornou uma das três melhores cidades para ciclistas na Espanha, indo do final do ranking para o pódio.
Quando essas mudanças são implementadas, os cidadãos são parte do problema ou da solução?
Giuseppe Grezzi: A resistência à mudança é sempre muito forte. Consideremos que em 2015 o prefeito anterior estava no cargo há 24 anos. Quando estávamos na oposição, já tínhamos estudado os distritos para preparar um novo plano de mobilidade. Assim que tomamos posse, criamos imediatamente uma mesa de consulta aberta para os cidadãos, que sempre devem ser consultados, mesmo que as decisões devam ser tomadas por aqueles que estão no cargo. Nesses casos, fazer a população decidir pode ser errado e contraproducente: se você realizar um referendo sobre mobilidade, é quase certo que não conseguirá mudar nada. A resistência à mudança é inerente à natureza humana, sentimentos são facilmente manipulados e é difícil explicar porque a mobilidade deve mudar ou porque os lugares de estacionamento devem ser eliminados.
Além disso, também existem os mitos, como aquele que levou os comerciantes a acreditarem por anos que só poderiam fazer negócios se houvesse carros nas ruas. Isso não é verdade e nós provamos isso. Afinal, nos anos 1970 a cidade de Amsterdã estava cheia de carros e hoje, como sabemos bem, está cheia de bicicletas, talvez até demais (risos), mas é uma cidade muito mais segura e eficiente. Aqueles que estão no poder devem cultivar uma visão de médio a longo prazo e decidir o que é melhor fazer.
Leia mais: Ciclovias prejudicam o comércio?
Por que você chama suas iniciativas de “urbanismo estratégico”?
Giuseppe Grezzi: O “urbanismo estratégico” é uma ferramenta para promover medidas de baixo custo, rápidas e reversíveis para recuperar espaços públicos de qualidade. De 2015 a 2022, recuperamos mais de 150.000 m² de áreas verdes para pedestres, 2.182 m² delas ao redor de 13 escolas (2020-2022). O resultado geral foi uma redução de 10% no tráfego e um aumento de 10% no número de passageiros do transporte público. Todos os indicadores de emissões apresentam uma diminuição notável, entre 15% e 25%. Há ainda o problema da região metropolitana, que tem 45 bairros onde vivem mais de 1,5 milhão de pessoas: 73% das viagens intermunicipais são feitas de carro, enquanto somente 23% dos deslocamentos internos são feitos de carro.
Uma cidade livre de carros é uma esperança ou uma utopia?
Giuseppe Grezzi: Os carros sempre estarão lá, mas um futuro no qual seu uso seja apenas residual é possível. Eles podem ser úteis em certos casos específicos, mas envolvem grandes investimentos e, como sabemos, causam muitos problemas.
Artigo originalmente publicado em Domus, em dezembro de 2023.
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