O que o Parque Ibirapuera em São Paulo tem a ver com o Nobel de Economia?
Na perspectiva do desenvolvimento econômico, vemos que alguns aspectos da configuração urbana de São Paulo são excludentes.
Em tempos de smart cities, será que o futuro das nossas grandes cidades não passaria, na verdade, pela retomada de modelos de cidade... do passado?
31 de julho de 2023“A arquitetura do futuro é a volta às nossas origens?”, nos questiona recente reportagem do Canal DW Brasil.
De fato, diante das mudanças climáticas, parece bem razoável voltarmos a valorizar nas construções aspectos como ventilação e iluminação naturais, por exemplo, tal qual se fazia no passado — e, com isto, reduzir o consumo de energia e a produção de gases de efeito estufa.
Para se ter uma ideia, apenas o resfriamento por aparelhos convencionais de ar condicionado responderia por 10% do consumo energético mundial e 4% das emissões anuais de gases de efeito estufa, segundo a mesma reportagem.
Será que o mesmo questionamento não valeria para o urbanismo? Será que o futuro das nossas grandes cidades, que a construção de metrópoles verdadeiramente sustentáveis, também não passaria pela retomada de modelos de cidade do passado? Pois eu tendo a acreditar que sim.
Contudo, diante da ascensão do conceito de smart cities; da ideia de que a evolução tecnológica nos alçou a um novo patamar na gestão das cidades; de que o uso inteligente da tecnologia da informação parece ser o principal caminho para o enfrentamento dos problemas urbanos; enfim, diante do atual cenário de repente me pareceu até meio estranho falar em volta ao passado…
Estaria eu passando pelo que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de “retrotopia”, uma espécie de busca de um passado idealizado em detrimento do sonho de um futuro melhor que caracterizou as décadas anteriores? Pois estou convencido de que não.
Longe de querer esgotar o tema, trago aqui exemplos de discussões recentes para ilustrar por que as nossas cidades do passado (São Paulo, em particular) parecem exemplo para as cidades que desejamos — e de que precisamos — para o futuro.
Em um dos episódios mais assistidos do São Paulo nas Alturas, o jornalista Raul Juste Lores destacou que muitos dos edifícios icônicos de São Paulo, verdadeiras obras primas da arquitetura, como o Copan, não poderiam ser construídos pela legislação atual, que, entre outras características, limita o potencial construtivo.
Não é preciso ter estudado muito economia para entender que restrições à oferta afetam diretamente o preço: diante de limitações para se construir e da alta demanda por moradia no centro expandido, os imóveis ficam mais caros, empurrando a população cada vez mais para as periferias e agravando problemas como os longos deslocamentos para acessar serviços e empregos, concentrados na região central. Espraiamento urbano e longos deslocamentos, por sua vez, também estão associados a maiores emissões de carbono e consumo de energia, o que tende a agravar a crise climática.
“São Paulo construiu o equivalente a um edifício Copan a cada cinco dias entre 1995 e 2023″, mostrou estudo desenvolvido pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM). Um problema, porém, é que, além de construções muito espalhadas pela cidade, não foi construído no centro expandido nenhum novo edifício equivalente ao Copan, onde vivem mais de cinco mil pessoas em um terreno de apenas seis mil metros quadrados.
Em artigo recente publicado aqui no Caos Planejado, o arquiteto e urbanista Luís Henrique Bueno Villanova classifica o Edifício Itália como “um arranha-céu do século XXI”. “Paradoxalmente, no Brasil, uma edificação da metade do século XX possui as três características que pesquisadores, hoje, acreditam ser o futuro da tipologia de edifícios altos”, ele escreve.
“Ou seja, há 60 anos atrás já se produzia, aqui, o que viria a ser o ideal de uma edificação em altura nos dias de hoje. Um arranha-céu ligado a questões de contexto, cultura e meio ambiente relacionados e pertencendo à história do local, com caráter e identidade”, completa.
Muita gente simplesmente se opõe à verticalização em distritos como Pinheiros e Perdizes, que é, contudo, um caminho necessário para compactar São Paulo. O problema, é preciso entender, não é a verticalização em si; e o Edifício Itália parece ser um ótimo exemplo de como a altura das edificações pode ser adaptada de modo a integrá-las à cidade sem agredir a paisagem urbana.
Que me corrijam os arquitetos leitores do Caos Planejado, mas nada semelhante ao Edifício Itália parece ter sido construído na cidade nos últimos 50 anos…
Em outro episódio do São Paulo nas Alturas, Raul Juste Lores chamou atenção para a falta de um “meio-termo” nas discussões a respeito do crescimento da cidade e do adensamento populacional de áreas estratégicas, ricas em infraestrutura, como se as possibilidades de ocupação de São Paulo se limitassem ao embate entre a construção de prédios altos versus a manutenção das antigas casas.
É engraçado como esse crescimento com “meio-termo” parecia ser exatamente o padrão da expansão de São Paulo até a década de 60. Afinal, paralelamente à construção de edifícios como o Copan, o Itália, o Conjunto Nacional e muitos outros na região central, foram erguidos no período muitos predinhos de uso misto nos bairros, especialmente no centro expandido, com três ou quatro andares, sem elevador, sem vaga de garagem, com fachada ativa e sem recuo em relação à calçada — que, ainda por cima, demandavam menos recursos, facilitando a participação de pequenos investidores no mercado imobiliário.
Hoje, com raríssimas exceções, quase não vemos predinhos desse tipo sendo construídos no centro expandido; e continua enorme, é claro, a resistência em bairros centrais como Pacaembu, Jardins e Alto de Pinheiros, caracterizados por grandes imóveis onde vivem pouca gente, contra qualquer flexibilização das regras de uso e ocupação do solo.
Em outro artigo recente também publicado aqui no Caos Planejado, o arquiteto e urbanista Leon Myssior argumenta que “as zonas centrais [de Belo Horizonte, até a década de 1970, antes dos planos diretores] eram bem equipadas e tinham densidade, fachada ativa, residências, escritórios, consultórios, equipamentos de arte e cultura e muita, muita vitalidade.
“A cidade era acessível, caminhável e agradável, com suas alamedas, praças e um comércio amplo e, ao mesmo tempo, diversificado. As zonas centrais da cidade, repletas de pessoas transitando o tempo todo eram, além de charmosas, seguras”.
Já o arquiteto e urbanista Anthony Ling, ao analisar a revisão do Plano Diretor de São Paulo em artigo para o Brazil Journal, argumenta que “paulistanos devem notar que alguns dos bairros que se desenvolveram recentemente e que ainda possuem certa caminhabilidade, como Pinheiros, Itaim Bibi e a Vila Olímpia, mantiveram seu comércio de rua devido a pequenas casas que ainda não se transformaram em edifícios, dado que maioria dos novos edifícios foram recuados das calçadas e, muitas vezes, cercados”.
Tenho exatamente a mesma impressão quando ando por São Paulo: as áreas mais interessantes e agradáveis da cidade ainda me parecem aquelas que se desenvolveram até a década de 60 e contam com edifícios, predinhos e sobradinhos geminados daquela época (muitos transformados em comércio), a despeito da verticalização posterior caracterizada por prédios altos, recuados e protegidos por grades e muros.
Por cerca de pelo menos 40 anos, portanto, parecemos ter sofrido uma espécie de apagão em relação aos princípios que deveriam orientar o planejamento urbano e as construções nas grandes cidades, em particular na Região Metropolitana de São Paulo.
É claro, porém, que fatores objetivos, especialmente a dependência do automóvel e a crescente sensação de insegurança, também explicam em grande medida a dinâmica do desenvolvimento urbano desde a década de 1970, dos shoppings centers no estilo bunker, que mencionei em artigo recente aqui no Caos Planejado, aos condomínios murados, que critiquei em outro artigo.
Longe de enfrentar os problemas, contudo, esta nova dinâmica do desenvolvimento da cidade parece apenas tê-los agravado, criando um verdadeiro círculo vicioso em que muros e grades aumentam a sensação de insegurança, o que aumenta, por sua vez, o uso do automóvel, tirando mais pessoas das ruas, que se tornam ainda mais inseguras e sem vitalidade.
É muito difícil atualmente falar em cidade do futuro sem falar em smart cities. Fica a sensação, no entanto, de que a tecnologia sequestrou a ideia de inteligência nas cidades, sendo que a solução de muitos problemas, antes da inovação tecnológica, parece passar, na verdade, pelo bom e velho planejamento urbano.
Há uma espécie de senso comum de que o conhecimento “científico” é algo cumulativo, que as novas ideias representam necessariamente aperfeiçoamento ou superação das antigas. Mas se há um campo em que parecemos ter desaprendido, “emburrecido” mesmo, foi o do planejamento urbano.
De nada adiantarão os altos investimentos em tecnologia da informação se não formos capazes, por exemplo, de construir cidades mais compactas, seguras e sustentáveis, com vida na rua e predomínio da mobilidade ativa e do transporte público de massa — também o futuro da mobilidade, por sinal, parece estar, ao menos em parte, na volta ao passado.
Para isso, mais do que de utopias tecnológicas, talvez precisemos urgentemente é retomar certos modelos de cidade do passado — e, é claro, aproveitar melhor tudo o que já foi construído no passado, em especial na região central, no caso de São Paulo (“o edifício mais sustentável é aquele que já está construído”, afirmação do arquiteto Carl Elefante que merece ser sempre lembrada).
A São Paulo do futuro talvez seja a cidade que se expandia rapidamente até a década de 1960, antes dos nossos (desastrados?) planos diretores.
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