Ceticismo em relação à oferta de moradia | Entrevista com Ingrid Gould Ellen
Conversamos com a professora Ingrid Gould Ellen, coautora do artigo "Supply Skepticism Revisted", sobre a relação entre a oferta de moradia e os preços.
A Inglaterra Vitoriana nos dá outro exemplo de rápida expansão urbana sob um governo bastante limitado.
11 de abril de 2014Perguntar “Mas quem vai construir as estradas?” é uma óbvia reação às propostas de um sistema político libertário. Porém, isto nos leva a interessante questão sobre “Quem construiu as estradas em sociedades anárquicas?”. Os Estados Unidos da época colonial fornece alguns exemplos que respondem a esta questão. Talvez o melhor exemplar anarquista na história dos Estados Unidos tenha sido em Rhode Island. Batistas apátridas fugindo de Massachusetts fundaram as cidades de Portsmouth e Warwick.
Diferentemente dos Batistas, William Penn não intencionava a criação de uma colônia anarquista. A Pensilvânia manteve-se, porém, sem um governo de 1684 até 1691, como evidenciado pela falha de Penn em coletar impostos com sucesso durante o período. É difícil saber muito sobre a construção de ruas desta época em parte pelo tempo que já se passou e em parte porque, como Murray Rothbard escreve, “A falta de manutenção de registros em sociedades sem Estados — já que apenas funcionários do governo aparentam ter o tempo, energia e recursos para devotarem-se a estas atividades — produz uma tendência direcionada a um viés governamental nos métodos de trabalho dos historiadores.” Contudo, sabemos que os bairros da Filadélfia próximos ao Rio Delaware estavam crescendo durante esta época.
Uma das mais antigas ruas ocupadas continuadamente do país é o Elfreth’s Alley (Beco de Elfreth) na Filadélfia. Foi inaugurado em 1702, pouco após este período de completa anarquia, e serviu como uma rota de conexão entre as propriedades dos comerciantes locais com a já próspera Second Street. Como a Sociedade dedicada à preservação ao Beco escreve:
“O Elfreth’s Alley — popularmente conhecido como ‘Nossa mais antiga rua residencial’ — data dos primeiros dias do século XVIII. Vinte anos após William Penn fundar a Pensilvânia e estabelecer a Filadélfia como sua capital, a cidade já havia se tornado um bem sucedido e próspero centro comercial nos bancos do Rio Delaware.
Os filadélfios haviam abandonado os planos de Penn de uma ‘vila verde e interiorana’ criando, ao invés, uma paisagem urbana semelhante ao que lembravam da Inglaterra. Cais prolongavam-se pelo rio, acolhendo navios de todo o mundo. Lojas, tavernas e casas abarrotavam a área do curso d’água. Os filadélfios fizeram e venderam itens essenciais à vida no Novo Mundo e o comércio era parte do dia à dia.
Dois destes artesãos coloniais, os ferreiros John Gilbert e Arthur Wells, possuíam as terras onde hoje está o Elfreth’s Alley. Em 1702 cada um deles cedeu uma porção de seu terreno para criar uma passagem ao longo de suas propriedades que conectava suas oficinas próximas ao rio com a Rua Segunda a um quarteirão de distância. Naquela época a Second era uma das principais rodovias norte-sul, conectando a Filadélfia com cidades ao norte e ao oeste da cidade e além.”
Gilbert e Wells doaram suas terras para beneficiar seus negócios e para aperfeiçoar a rede de transportes da cidade mantendo a tradição Quaker de voluntarismo. As ações deles demonstram o poder da cooperação para o ganho mútuo, mas também é digno de nota que ruas construídas em terras doadas são susceptíveis de serem estreitas, como o Elfreth’s Alley. William Penn vislumbrou a Pensilvânia como uma “vila interiorana” mas, sem a capacidade de aumentar os impostos necessários para aplicar sua visão, ele não pode evitar que os residentes desenvolvessem o tipo de expansão denso e de uso misto que sustentou a indústria crescente da Filadélfia.
A Inglaterra Vitoriana nos dá outro exemplo de rápida expansão urbana sob um governo bastante limitado. Décadas após a construção do Elfreth’s Alley, o desenvolvimento urbano absteve-se de qualquer planejamento, infraestrutura governamental ou códigos de construção em Londres e várias outras cidades inglesas. Bairros como West End e Nottingham desenvolveram-se durante este período de política governamental de não interferência, confiando no setor privado para prover toda a infraestrutura desde ruas a iluminação e drenagem.
Em ambos os casos de desenvolvimento urbano laissez-faire vemos ruas bastante estreitas, já que donos das terras devem pesar entre prover acesso e incorporar visando lucro. Ao contrário do período de total anarquia na Filadélfia colonial, Londres tinha um sistema de Atos Privados (Private Acts), que exigiam dos desenvolvedores a permissão do Parlamento para implementar qualquer mudança significativa no uso da terra. Na conclusão do empreendimento alguns bairros se utilizaram de covenants [N.T.: estes semelhantes à normas de loteamento ou condomínio], para obrigar a manutenção de bens comuns como a iluminação e até mesmo exigir normas arquitetônicas para construtores. Em seu capítulo do livro A Cidade Voluntária (The Voluntary City, no original), Stephen Davies explica que os donos das terras não colocaram em prática estes contratos em todos os lotes e que o rigor destes variava largamente. Como estes contratos tendiam a aumentar tanto a qualidade quanto o preço da moradia, esta variação permitia que os construtores prestassem serviços aos residentes de baixa e média renda, dependendo de onde eles construíssem:
“Os incorporadores foram capazes de adaptar a extensão do fornecimento de ‘serviços públicos’ através de contratos de acordo com a natureza e a demanda local, assim como outros fatores como os custos da terra e da construção. Este é um contraste marcante com a rigidez das tentativas do Estado em fornecer estes bens através de planejamento público, leis de zoneamento e semelhantes. A flexibilidade também se estendia a aplicação dos contratos. Os proprietários e os incorporadores muitas vezes não aplicavam as cláusulas de construção em arrendamentos quando a demanda por terras estivesse baixa, desde que o aluguel fosse pago.”
A Filadélfia colonial e a Londres vitoriana construíram suas ruas sob circunstâncias e instituições legais diferentes, mesmo assim, ambos os casos demonstram que a infraestrutura urbana pode ser fornecida sem o governo. Talvez o livre mercado nunca fosse capaz de construir o Interstate Highway System [N.T.: Sistema de Rodovias Interestaduais dos EUA], mas ele provou-se capaz de facilitar a criação de ruas charmosas e funcionais que duram séculos.
Texto publicado originalmente em Market Urbanism em 7 de março de 2014. Traduzido por Alan Klinke, com revisão de Anthony Ling.
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