Na semana do dia 03 de outubro passado o sistema de transporte sobre trilhos na região metropolitana de São Paulo teve suas atividades paralisadas por força de uma greve promovida pelos sindicatos de trabalhadores do Metrô e da CPTM. Fazia tempo que os sistemas não eram completamente interrompidos, uma vez que tanto o Metrô como a CPTM lograram desenvolver estratégias operacionais para manutenção de algumas linhas em operação, mesmo com greves decretadas.
A razão da greve foi a anunciada concessão à iniciativa privada das linhas remanescentes sob responsabilidade do Estado, tanto metroviárias como ferroviárias.
Quase todas as linhas de metrô do Brasil já estão sob operação da iniciativa privada: Metrô do Rio de Janeiro, Metrô de Salvador, Metrô de Belo Horizonte, Linhas 4, 5, 6 e 17 do Metrô de São Paulo, além dos VLTs do Rio e da Baixada Santista. Nas ferrovias metropolitanas também é acentuada a presença da gestão privada: Supervia, no Rio de Janeiro, Linhas 8 e 9 dos trens metropolitanos de São Paulo. Restam as linhas da CBTU, os metrôs de Fortaleza e do Distrito Federal, a Trensurb de Porto Alegre, as linhas 1, 2 e 3 do Metrô de São Paulo e as Linhas 7, 11, 12 e 13 da CPTM.
O tema costuma despertar paixões filtradas por um viés ideológico. Há escolas políticas e econômicas, reunidas sob o conjunto de uma ideologia que defendem uma participação mais acentuada do Estado, inclusive na operação dos serviços públicos de transporte. Há outras, que também congregam conjuntos de ideias, que advogam uma redução do espaço estatal, especialmente na operação de infraestrutura e na provisão dos serviços públicos.
Esse embate de visões de mundo é saudável, porque afinal há mesmo bons argumentos dos dois lados da celeuma, e a síntese dos antagonismos costuma ser uma sábia conselheira para tomada de decisões. E há também boas experiências em ambos os campos do pensamento. Existem serviços públicos de transporte que são exemplares em qualidade. Penso que podemos alocar o próprio Metrô de São Paulo e a CPTM como empresas que são referência internacional no setor, além de sistemas como Nova York, Madrid e Paris. Do lado privado também temos soluções e serviços exemplarmente prestados. O VLT do Rio de Janeiro, a Linha 4 de São Paulo e o Metrô de Salvador são bons exemplos de excelentes serviços. Aliás, foi a concessão do Metrô de Salvador que permitiu a retomada e conclusão de uma obra que permaneceu 14 anos paralisada nas mãos do setor público.
Como podem perceber, não sou dos que advogam que apenas uma, entre as duas possibilidades, deve ser adotada em todos os casos. Mas para que não acusem o colunista de um militante da causa do muro, quero trazer algumas ideias que, espero, possam contribuir para um debate construtivo no sentido de estabelecer bons critérios para a decisão da concessão ou não de linhas de transporte sobre trilhos.
A primeira pergunta que deve ser respondida é: para que conceder? O serviço é ruim, e o privado pode fazer melhor? O serviço é bom, mas o Estado não tem recursos para modernizar ou ampliar? O serviço é de qualidade, bem avaliado, mas é caro, e o privado pode fazer melhor? As respostas a este tipo de pergunta são essenciais para se construir o modelo ideal de concessão. Não faz sentido transferir para o setor privado se não for para ampliar ou modernizar a infraestrutura, para o serviço ser mais bem prestado, ou ser mais econômico, reduzindo o custo para o usuário e a sociedade.
A segunda pergunta que deve ser respondida, tão importante quanto a primeira. Eu, Estado, sei operar? Sabendo operar, eu saberei fiscalizar e regular? Quais desafios institucionais tenho que superar para construir uma atividade fiscalizatória e regulatória que assegure a proteção dos usuários, o equilíbrio contratual e o interesse público durante anos seguidos de concessão? Como tratar a assimetria de informações técnicas, altamente diversas e complexas, na gestão de um contrato de concessão de sistema sobre trilhos? Contratos de concessão tem resultados tão bons quanto a qualidade da regulação levada a termo pelo setor público.
Engana-se quem pensa que concessão significa, necessariamente, a diminuição da atividade estatal. É, na verdade, uma mudança de natureza, mas não de intensidade. Deixa-se de operar para regular. E regular exige, especialmente em um setor complexo tecnicamente, alto grau de conhecimento, experiência, independência e atualização permanente.
A terceira pergunta que deve ser respondida: quais os benefícios assegurados à população com a concessão? A tarifa poderá ser reduzida? O serviço será modernizado e/ou ampliado? Os tempos de viagem diminuirão? Em quanto tempo? Por que o Estado não é capaz de fazer o mesmo? Penso que essas reflexões pragmáticas podem nortear bons projetos ou contribuir para impedir ruins projetos de concessão. O tema deve ser encarado, sob a minha perspectiva, de forma pragmática e, especialmente, transparente para os usuários e para a sociedade.
Publicado originalmente em Revista Ferroviária em outubro de 2023.
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