Transporte coletivo e transmissão da Covid-19: o que dizem os estudos
Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil.

Transporte coletivo e transmissão da Covid-19: o que dizem os estudos

Essenciais para a mobilidade dos brasileiros, estudos indicam que os ônibus e o metrô não são os vilões do contágio pela Covid-19.

16 de novembro de 2020

Evitar o transporte coletivo é recomendação um tanto comum em listas de medidas para reduzir as chances de contaminação pela Covid-19. Mas muita gente nas cidades brasileiras precisa se deslocar e não dispõe de outros meios. Como proporcionar o máximo de segurança para passageiros e tripulação? Após mais de seis meses de pandemia, estudos e experiências de sucesso permitem abordar a questão com mais embasamento, e países, cidades e academia indicam abordagens de prevenção que têm se mostrado efetivas.

Movimentação na rodoviária do Plano Piloto, em Brasília. (Imagem: Marcelo Camargo/Agência Nacional)

Pesquisas do Programa QualiÔnibus conduzidas em municípios brasileiros apontam que cerca de metade das pessoas que usam o ônibus não têm outro modo de transporte para se deslocar. Em tempos de pandemia, fica mais evidente a importância dos modos coletivos. Trata-se de serviço essencial que atende profissionais de outros serviços essenciais, além de ser indispensável para as pessoas de menor renda: um estudo chileno identificou que a redução no uso de transporte coletivo durante a pandemia foi de cerca de 40% para pessoas de renda mais baixa, enquanto para rendas mais altas chegou a quase 80%.

A população precisa dos serviços de ônibus e metrô, mas 93% dos brasileiros dizem temer contrair o vírus nesses espaços. Que medidas adotar, com base na ciência e em experiências bem-sucedidas, para que as pessoas viajem (e se sintam) seguras no transporte coletivo?

Estimando riscos para planejar medidas

Diversos estudos e pesquisas buscam esclarecer se o transporte coletivo é ou não propagador da Covid-19. Não é uma pergunta simples de responder: há diversos fatores envolvidos, muitos deles correlacionados, o que dificulta apontar a incidência dos fatores na transmissão. Grande parte dos estudos busca uma correlação entre a população infectada e os respectivos perfis e comportamentos. Há um lema na academia que diz que correlação não implica em causalidade. A prevalência de alguma característica entre os infectados muitas vezes não é suficiente para concluir sobre a causa ou o local do contágio.

Um exemplo: relacionar de forma direta a quantidade de infectados em uma cidade à demanda transportada pode mascarar a incidência de possíveis fatores causais, como o grau de abertura das atividades econômicas e a aderência da sociedade local às medidas de prevenção. A população cativa do transporte coletivo tende a passar mais tempo embarcada devido a deslocamentos mais longos entre casa e trabalho, e é exposta a mais poluição do ar, associada a um aumento no índice de mortalidade pela Covid-19. Além disso, pessoas de menor renda têm menor possibilidade de fazer home office, vivem em residências menores e mais densamente ocupadas, entre outros tantos fatores que podem aumentar a exposição ao vírus.

Para definir as chances de contágio é preciso considerar dois fatores determinantes. O primeiro é a probabilidade de que haja um passageiro infectado dentro de um veículo. Quando não há infectados, não há chance de contágio e qualquer distância é segura. Em Medellín, cidade de 2,5 milhões de habitantes, um estudo tomou por base o número de mortes e infectados por Covid-19 e um percentual de assintomáticos e estimou que a probabilidade de haver um passageiro infectado no metrô é de um a cada 1.080 passageiros. Isso significa menos de um infectado por vagão no metrô lotado. Por isso é importante considerar os números de infectados na cidade e de trabalhadores do transporte coletivo.

Então chegamos ao segundo fator: quando há algum passageiro ou funcionário infectado, qual a probabilidade de transmissão? Estudos sugerem que o risco varia de acordo com algumas condições, como duração da viagem, ocupação dos veículos, renovação do ar e respeito a orientações de prevenção. A seguir, elencamos alguns desses fatores de risco e medidas que vêm sendo adotadas para mitigá-los.

Melhorar a circulação de ar

Em julho deste ano, a OMS reconheceu a possibilidade de transmissão por Covid-19 por meio de aerossóis (micropartículas capazes de se deslocar no ar), o que significaria que apenas o distanciamento pode não ser suficiente. A conclusão deu mais importância à qualidade da renovação do ar em espaços fechados, como o de ônibus, para o controle de transmissão. A recomendação é priorizar a ventilação natural, mantendo as janelas sempre abertas, mesmo em dias chuvosos ou de baixas temperaturas. Sistemas de recirculação de ar no interior do veículo não devem ser utilizados.

A forma como o ar circula no interior dos veículos também é importante. O metrô de Medellín, por exemplo, possui um sistema de circulação de ar na direção vertical, em que o ar é injetado na parte superior do vagão e extraído na parte inferior. Esse mecanismo apresenta maior segurança, uma vez que as gotículas expelidas pelos passageiros rapidamente se depositam no piso dos vagões, o que evita a transmissão aérea. O sistema proporciona uma renovação rápida do ar, de 50% em 43 segundos, 80% em 2 minutos e 100% em 3 minutos e 30 segundos.

Na capital colombiana, Bogotá, os ônibus convencionais têm tempo de renovação de 10 a 15 minutos, e os micro-ônibus, de até 20 minutos. Os micro-ônibus da cidade não têm sistema de ventilação forçada, e a quantidade de ar que entra no veículo é determinada pela sua velocidade. Além disso, por ser um sistema de ventilação na direção horizontal, a circulação de ar é turbulenta e dissipa as partículas pelo interior do veículo.

No Brasil, a norma técnica NBR 15570 exige taxa de renovação do ar de pelo menos 20 vezes o volume interno útil do ônibus por hora, desconsiderando poltronas e demais componentes internos — ou seja, o ar deve ser renovado a cada 3 minutos. No entanto, são poucos os estudos que apontam qual é a taxa nos ônibus em operação nas cidades brasileiras. A realização de pesquisas do tipo permitiria identificar problemas e a implementar as modificações necessárias nos veículos para melhorar as condições de segurança.

A eficácia do uso de máscaras

Máscaras se consolidaram como uma das principais recomendações para proteção — recomendadas por governos e OMS para quem precisa utilizar o transporte coletivo. Um dos primeiros estudos a indicar sua eficácia foi realizado a partir do mapeamento da trajetória de transmissão de um passageiro infectado em Chongqing, China. O passageiro realizou uma viagem de ônibus em que ele e a maior parte dos passageiros não estavam utilizando máscaras. No trajeto de 2 horas e 10 minutos, cinco dos 39 passageiros também foram contaminados. Ao final da viagem, o indivíduo comprou uma máscara e embarcou em um micro-ônibus. Na nova viagem, de 50 minutos de duração, nenhum dos outros 14 passageiros foi contaminado.

Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais apontou a eficácia de máscaras em reduzir a carga viral à qual as pessoas estão expostas, principalmente em situações em que todos os envolvidos fazem uso adequado. A exposição a menor carga viral reduz as chances de contrair a Covid-19 e, caso ocorra a contaminação, pode levar a quadros mais leves da doença.

Aviso sobre o uso de máscara para conter o COVID-19 em letreiros de ônibus de transporte coletivo em Uberlândia.
Aviso sobre o uso de máscara em letreiros de ônibus em Uberlândia. (Imagem: Secom/PMU)

O impacto da fala na transmissão

Em vários países, o mapeamento de clusters — grupos com três ou mais pessoas infectadas por Covid-19 que tiveram contato em algum momento — tem demonstrado uma baixa correlação entre o aparecimento de casos e o transporte coletivo. São experiências que indicam que utilizar máscara e evitar conversar no transporte coletivo podem ser medidas poderosas contra o contágio do Covid-19.

Há evidências de que a concentração de aerossol liberada pela combinação de fala e respiração por mais de 4 minutos equivale a 30 segundos de canto ou tosse. Isso ajuda a explicar por que países como Japão não verificaram no transporte coletivo um vetor de contágio do Covid-19. O país asiático não adotou a abordagem de isolamento social como principal medida de controle de transmissão, mas realizou campanhas de saúde pública e comunicação que enfatizaram a importância de se evitar os “três Cs”: espaços fechados, lugares lotados e situações de contato próximo, como conversas (closed spaces, crowded places e close-contact settings). A população foi orientada a não conversar ou atender telefonemas no transporte coletivo, reduzindo de três para dois os “Cs” do ambiente.

Foto do metrô de Tóquio em 2012. Hábito de usar máscaras por conta da poluição pode ter contribuído para adesão de japoneses ao uso no transporte coletivo para conter o COVID-19.
Hábito de usar máscaras por conta da poluição pode ter contribuído para adesão de japoneses a medida preventiva. Acima, metrô de Tóquio em 2012. (Imagem: Maya-Anaïs Y./Flickr)

Os japoneses, que já tinham o hábito de usar máscaras devido à poluição, apresentaram bom comprometimento com as orientações de etiqueta, o que pode ter contribuído para o bom resultado. Esse comportamento foi o mesmo observado na França que, entre os dias 9 de maio e 3 de junho, contabilizou 150 clusters e nenhum vinculado ao transporte coletivo. Estudos na Áustria e em Nova York chegaram a conclusões semelhantes.

Quando passageiros do transporte coletivo viajam em relativo silêncio e utilizando máscaras, liberam menos aerossóis no ambiente e contribuem para a segurança de todos. Conscientizar a população para evitar conversar e atender telefonemas durante as viagens é um desafio no Brasil. As experiências dos demais países apontam caminhos, como campanhas de comunicação e fiscalização do cumprimento das medidas preventivas.

Desinfecção dos veículos

A higienização minuciosa de ônibus e metrôs é importante para desinfectar veículos entre viagens, mas é um processo demorado e custoso para cidades e operadores. Felizmente, novos métodos têm surgido como alternativa. Um deles é o uso de raios UV-C, tecnologia consolidada em ambientes hospitalares e no tratamento de águas. Uma empresa de ônibus de Xangai montou uma zona de desinfecção por UV-C em um túnel de lavagem convencional. A inovação reduz a duração do processo de 40 para 5 minutos e garante a desinfecção de cantos de difícil acesso. A tecnologia também foi aplicada no metrô de Nova York e está disponível no Brasil para transporte rodoviário e urbano. Sistemas como o metrô de São Paulo e os ônibus urbanos de Contagem (MG) realizam testes com a radiação. A desinfecção deve ser realizada por pessoa especializada e em ambiente controlado, já que a exposição cumulativa de raios ultravioleta pode ser cancerígena.

Medidas de prevenção que ficam como legado

Em algumas cidades brasileiras, a diminuição da demanda de passageiros e da circulação de pessoas nas ruas está sendo vista como uma oportunidade para se apostar em melhorias de qualidade para o transporte coletivo que também têm potencial de aumentar a segurança. O escalonamento de horários por atividade comercial, além de reduzir congestionamentos em hora-pico, é uma ferramenta útil no período pandêmico para evitar aglomerações no transporte coletivo.

Movimentação em ponto de ônibus na avenida paulista. Efeitos da COVID-19 no transporte coletivo.
Movimentação em ponto de ônibus na avenida paulista. (Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil)

A implantação de faixas dedicadas para ônibus reduz o tempo de viagem e, por consequência, o tempo de exposição dos passageiros. Formas alternativas de pagamento das passagens, eliminando o pagamento em dinheiro, são passo importante para que cidades avancem na integração tarifária — e evitam o manuseio de cédulas e moedas e o contato desnecessário entre passageiro e cobrador.

Combinar medidas para mais segurança

O transporte coletivo é um serviço essencial à população e, para muitos cidadãos brasileiros, é o único meio de transporte possível. Experiências e estudos como os mencionados indicam que ônibus e metrô não são vilões do contágio pela Covid-19. Como outros espaços coletivos, porém, requerem cuidados. Oferecer um serviço seguro passa por adotar uma combinação de medidas: ventilação adequada para atender à norma de renovação de ar; fiscalização para que haja respeito ao uso de máscaras e às orientações de higiene e cuidados como evitar conversas e telefonemas; viagens mais rápidas, por meio de faixas dedicadas; escalonamento de horários para diluir a demanda; monitoramento do contágio na população e entre os funcionários do transporte coletivo.

O contexto financeiro dificulta a implantação de algumas medidas, e foi agravado pela pandemia, que acentuou a já histórica queda na demanda por ônibus e metrô. O momento é de diálogo e cooperação para superar os desafios. O transporte coletivo é essencial para o funcionamento, a prosperidade e a sustentabilidade das cidades. Passageiros ou não, todos dependemos dele. A hora de construir um presente — e um futuro — seguro e sustentável é agora.

Artigo publicado originalmente em WRI Brasil em 1 de outubro de 2020.

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