Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
"Achei relevante fazer algumas críticas em meio ao louvor — e talvez pra não perder mais uma oportunidade de ser do contra." Confira a opinião de Anthony Ling sobre a palestra de Alejandro Aravena.
14 de janeiro de 2016O arquiteto e urbanista chileno Alejandro Aravena acaba de ganhar o Prêmio Pritzker, considerado o “Nobel”da arquitetura”. Como diz a citação do júri que o premiou: “Alejandro Aravena sintetiza o renascimento de um arquiteto mais socialmente engajado[…]. Ele tem um profundo conhecimento tanto da arquitetura como da sociedade civil, algo que se reflete em seus escritos, seu ativismo e seus projetos. O papel do arquiteto está agora sendo desafiado a servir a necessidades sociais e humanitárias maiores, e Alejandro Aravena tem respondido a este desafio de modo claro, generoso e pleno”.
Ele tentou expôr essas características do seu trabalho na sua palestra do TED Global de 2014, entitulada “Minha filosofia arquitetônica? Traga a comunidade ao processo”. Coincidentemente, essa foi a mesma palestra apresentada no programa “TED — Compartilhando Ideias” do Canal Futura, onde fui recentemente entrevistado pela neurocientista e apresentadora do programa Suzana Herculano-Houzel.
Assim, muitos me perguntaram nos últimos dias qual a minha opinião sobre as questões apresentadas pelo Aravena no seu TED Talk, talvez uma das formas mais acessíveis para conhecer o seu trabalho. Preciso deixar claro que, antes de mais nada, acho o Aravena um ótimo arquiteto, merecedor do prêmio. No entanto, achei relevante fazer algumas críticas em meio ao louvor — e talvez pra não perder mais uma oportunidade de ser do contra.
Aravena, na sua apresentação, basicamente mostra três projetos do seu escritório, o Elemental, e como foi o processo criativo por trás das soluções arquitetônicas e urbanísticas encontradas.
No primeiro projeto, ele apresenta a já famosa solução para moradia popular, onde ele basicamente trata a construção como uma infraestrutura para moradia: ele tenta identificar qual parte da residência o moradores teriam maior dificuldade em construir e deixa essa “casca” pronta, com margem para ampliações e adaptações pelo próprio morador — aparentemente uma condição sine qua non feita pelos moradores. Como solução de moradia popular, acho a solução extremamente criativa e válida. Talvez seja a melhor possível, dada a situação que eles enfrentaram onde a verticalização não era uma opção como aumento de oferta.
No entanto, não gosto do conceito de “moradia popular”. Não me leve a mal, o que eu mais quero é que todos tenham acesso à moradia digna. Mas o conceito de existirem pessoas que são enquadradas em uma categoria “popular”, que precisam receber um programa específico para comprar um imóvel está longe de ser, pra mim, uma solução de longo prazo. Como urbanista, prefiro pensar em soluções sistêmicas e sustentáveis para a moradia de forma universal, para que todos sejam incluídos no mercado imobiliário.
Sabemos que no Brasil inteiro existem leis que limitam a oferta de área construída, que determinam recuos obrigatórios, que determinam padrões de qualidade muito acima das favelas, que exigem vagas de garagem independente da construção, que levam anos nas prefeituras para serem aprovados, aumentando muito o risco e o custo do empreendimento. É por isso que, como o Aravena fala, o mercado é obrigado a diminuir o tamanho do apartamento para atender uma necessidade de preço, pois ele é simplesmente proibido de atender a grande demanda de moradia existente, principalmente nas regiões centrais. Uma série de estudos acadêmicos, analisados por Luiz Eduardo Peixoto, comprovam que o impacto dessas regulações tem impactos significativos na acessibilidade dos imóveis em uma cidade.
Não acho que moradia seja diferente de outros bens e, até onde entendo, o objetivo a ser atingido é que todas as pessoas tenham acesso aos bens que elas precisam, e não uma sociedade dividida entre cidadãos “normais”, que tem essa capacidade, e os “populares”, excluídos e dependentes de programas governamentais.
O problema que observo é que a restrição de oferta gerada pela legislação aumenta muito o preço de um imóvel, barrando o acesso de moradores ao mercado formal. Tal situação já foi tratada em diversos artigos do Caos Planejado, inclusive por outros autores. Como cidadãos normais, basicamente não é necessário fazer reivindicações impedindo um melhor aproveitamento do uso do solo e restringindo a opção de verticalização. Moradores normalmente acabam sim optando por morar em apartamentos, sem possibilidade de expansão, mas acabam se mudando para apartamentos maiores caso seja necessário.
Também é preciso fazer a seguinte pergunta: é possível o mercado oferecer um produto semelhante ao projetado pelo Aravena, onde é entregue apenas a infraestrutura da moradia? É permitido a um cidadão comum ampliar a sua residência, mesmo que dentro do seu terreno, sem permissão da prefeitura como ocorrem nos projetos em questão? Normalmente, não. O que me parece é que uma série de regras foram adaptadas ou flexibilizadas para viabilizar tal projeto, se tratando de um projeto público aliado a um arquiteto de alta relevância internacional.
Em seguida, Aravena apresenta um novo conceito de edifício de escritórios, com uma crítica excelente ao modelo atual de como incorporadoras abordam esse problema. Edifícios em climas tropicais são construídos como estufas, totalmente envidraçados, capturando o calor do Sol e, em seguida, gastando fortunas para climatizar os ambientes internamente. É uma solução barata e rápida, mas que foi desenvolvida para países frios, que precisam do Sol para seu conforto térmico, tropicalizada da pior forma possível. Infelizmente muitas pessoas ainda vêem esses prédios como algo positivo, algo que dá status, uma “cara de país desenvolvido”, o que me parece totalmente irrelevante.
A alternativa de projeto apresentada pelo Aravena, o UC Innovation Center, é extremamente interessante. No entanto, o edifício não é exatamente um edifício de escritórios no meio da cidade, mas um centro de inovação de uma universidade, isolado no seu terreno e sem muitas restrições de ocupação do espaço. Isso significa que toda concepção do projeto é diferente, neste caso gerando uma planta mais larga para acomodar o átrio central, talvez inviável em um denso centro urbano. Ou seja, o caso de aplicação mostrado pelo arquiteto não necessariamente é uma alternativa para o problema que ele identificou. O projeto, ainda, custou cerca de U$2,200.00 por m² de área construída, um valor significativamente mais elevado que um edifício corporativo tradicional, o que também o distancia de ser uma alternativa viável para o mercado imobiliário corporativo.
O último exemplo apresentado pelo arquiteto vencedor do Pritzker é uma solução para uma área que é habitada informalmente por muitos moradores, muitos deles pobres pescadores locais, mas sujeita à enchentes. Aravena novamente convoca uma assembléia para resolver os problemas, onde explica que encontra muita resistência à expulsão dos moradores do local. O maior insight que o arquiteto nos dá, aqui, é que o processo participativo da forma democrático não é nada amigável, colaborativo ou fácil. É, na prática, praticamente um campo de batalha onde cada cidadão comparece justamente para defender seu ponto de vista ou interesse. Ele decide, então, fazer um parque público, já que a cidade conta com poucas áreas verdes de qualidade e considerando que o parque teria a capacidade de absorver as enchentes do rio. A solução realmente parece boa, mas a pergunta que fica é: até que ponto essa decisão foi participativa, como defende a máxima do arquiteto, levando em consideração a opinião da população local?
É percebido desde a publicação de “Morte e Vida das Grandes Cidades”, de Jane Jacobs, que processos participativos onde as pessoas são convocadas para reuniões para debates mediados são extremamente custosos, e filtrados pelo mediador sem grandes contrapartidas à população. São processos participativos mas, digamos, pouco eficientes ou eficazes.
Entretanto, se avaliarmos o processo de mercado na sua essência, na sua definição econômica, ele é, por definição, um grande processo participativo, embora sem mediação. São milhares de agentes que desenvolvem e constroem produtos de moradia, constantemente buscando informação sobre quais as tipologias de apartamentos mais demandadas pelos milhares de cidadãos com preferências diferentes, qual o tamanho das suas famílias e quais as regiões mais atraentes. Projetos que erram no desenho de tais produtos tendem a fracassar, e produtos que as pessoas querem tendem a ser produzidos, mas sem um processo participativo “organizado” ou “mediado” como exemplificado pelo Aravena.
O problema que identifico nesse processo é que, abaixo de uma determinada faixa de renda o cidadão está excluído desse processo participativo de mercado, renegado às categorias “populares”, às habitações informais das favelas, às construções irregulares, enfim, às assembleias participativas. Essa é a população prejudicada pois, estando excluída do processo participativo de mercado, mais amplo, efetivamente depende do processo participativo em formato de assembléia, onde tenta defender sua posição mas nem sempre é ouvida. É essa população que devemos trabalhar para entender porque ela foi excluída, e como podemos incluí-la novamente.
Por fim, reitero que minhas críticas são superficiais em relação ao trabalho de Aravena, e não tiram o mérito que atribuo ao seu trabalho, de referência mundial.
Parabéns, Alejandro Aravena, vencedor do Prêmio Pritzker 2016.
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