Ruas gratuitas danificam as cidades
Imagem: Fernando Stankuns.

Ruas gratuitas danificam as cidades

Várias cidades como Londres, Milão, Roma e Cingapura já cobram taxa dos motoristas que circulam por áreas centrais a fim de reduzir os congestionamentos, amenizar a poluição e estimular o uso do transporte público.

13 de setembro de 2011

“Vias públicas e gratuitas” são o que maioria dos urbanistas — e das pessoas também — hoje defendem. Esta é a regra vigente no Brasil atualmente, descrita no segundo artigo do Estatuto das Cidades:

“Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.”

Existem várias maneiras de definir o que significa o “direito à rua”, mas neste post estarei me referindo ao que acontece na prática, a socialização à força do custo de construção, manutenção e gerenciamento das ruas, diminuindo enormemente o custo de uso do usuário final, o motorista.

Mas porque elas danificam cidades? Não seriam ruas gratuitas algo bom, permitindo o acesso e o transporte de todos gratuitamente?

No estudo da crescente urbanização do mundo existe praticamente um consenso de que as cidades têm carros demais, e que deve existir incentivos para que mais transporte coletivo, cicloviário e a pé seja usado, tanto por motivos de perda de tempo em engarrafamentos como de poluição do ar, diminuição de qualidade de vida e custos econômicos bilionários.

Também se sabe que esta grande conquista cidades pelos automóveis se deu através do pensamento positivista-modernista desde a década de 40 até o final da década de 70, influenciando governantes de praticamente o mundo inteiro a planejarem cidades voltadas para o automóvel, tendo este ápice no Brasil com a construção de Brasília.

Nos Estados Unidos o planejamento se focou na realização do chamado “Sonho Americano”, onde a ideia era que cada família poderia ter condições de ter sua própria casa em meio à natureza, que deu luz ao subúrbio americano. Para isso, o governo investiu massivamente em auto-estradas, tornando a população cada vez mais rarefeita e dependente do carro.

O problema é que por mais que haja uma mudança de paradigma do urbanismo modernista ao atual New Urbanism, que visa criar políticas para criação de ciclovias e de incentivos ao transporte pública, vejo poucos urbanistas querendo combater a raiz do problema: o fato dos motoristas dividirem o custo das ruas com o resto da sociedade.

As políticas urbanas atuais de “direito à rua” fazem justamente o contrário do que propõe um verdadeiro desincentivo ao automóvel: o estado está sempre correndo atrás do setor de construção civil tentando construir uma infraestrutura que dê conta do aumento da demanda pelo automóvel, os reguladores obrigam os construtores a adicionar prédios inteiros de estacionamentos acompanhando suas obras e novas estradas são um dos maiores focos dos programas de desenvolvimento econômico do estado. Parece até que as prefeituras fazem de tudo para que os motoristas tenham o máximo de conforto, incentivando cada vez mais o uso do automóvel.

O que nos leva às consequências da socialização do custo de um recurso — qualquer que este seja — tornando-o “gratuito” ao usuário final: o preço final dividido com todos acarretará em uma corrida para o seu uso, gerando filas.

No setor público de saúde isso significa salas de espera lotadas, no trânsito isso significa engarrafamentos: leia-se filas de carros. Em economia este fenômeno é chamado de tragédia dos comuns, quando cada indivíduo agindo racionalmente buscando seu interesse próprio levam à super utilização de um determinado recurso.

Para corrigir este problema não existe mecanismo econômico e social mais fantástico para controle de oferta e demanda de um determinado recurso do que o preço. Quando preços são abolidos e os recursos coletivizados, como ocorrido na União Soviética, não há como trocar informação e decidir para onde os recursos devem ser direcionados, como explicado pelo economista vencedor do prêmio Nobel Friedrich Hayek no texto “The Use of Knowledge in Society”.

Na má sucedida experiência soviética, isso gerou com filas e entre 2,4 e 7,5 milhões de pessoas mortas de fome no genocídio de Holodomor. Preços são inerentes a uma economia de mercado, e uma maneira inteligente de precificar as ruas foi descrita pelo Stephen Smith do blog Market Urbanism, onde a maximização da renda leva à maximização do fluxo de tráfego.

ruas gratuitas
Filas de carros e filas para pão na União Soviética

O contra-argumento da precificação das ruas seria de que o pobre então não teria acesso ao automóvel, permitindo somente quem tem dinheiro o luxo do automóvel. Mas o fato é que não existe almoço grátis. Ruas são caras e pagas por pessoas, normalmente através da coerção estatal na arrecadação de impostos da população.

Não há maneira do governo gastar dinheiro às custas de ninguém. Então, o que acontece na prática, segundo estudo do IPEA, é que no Brasil os pobres pagam 50% mais impostos que os ricos quando comparados relativos à sua renda.

Estes impostos pagos pelos mais pobres eventualmente são usados para custear um sistema viário que eles nem sequer usam e que, pior ainda, nem sabem que pagam, segundo estudo da FIESP.

Os ônibus, lotações e táxis, um jeito muito simples de dividir o custo tanto da via como do veículo e comumente uma alternativa escolhida por aqueles que têm menos condições de comprar um carro, ficam presos no trânsito e acabam sendo os maiores prejudicados com os engarrafamentos, que socialmente provocam bilhões de reais e centenas de milhares de horas perdidas.

Estas horas perdidas são, atualmente, o critério de uso do recurso, já que parece ser o maior custo de quem enfrenta engarrafamentos quilométricos. O que não se percebe é que ter mais tempo para gastar também é um critério que está associado a quem tem uma renda superior, já que tempo pode ser convertido em horas de trabalho.

Além disso, trabalhadores de salários mais altos normalmente ocupam um cargo de maior de criação mental do que de esforço físico, necessitando menos deslocamento e permitindo trabalhar à distância ou até mesmo de casa, algo impossível para um operário de fábrica, um obreiro ou faxineiro, que têm renda mais baixa.

Morando longe dos seus empregos — na periferia dos centros urbanos — faz com que os engarrafamentos os prejudiquem ainda mais. Pessoas mais pobres acabam tendo que usar a motocicleta, ora como meio de transporte ora como ferramenta de trabalho — como motoboys — aumentando em quatorze vezes a chance de morrer no trânsito quando comparado com o automóvel.

Também é ingênuo pensar que quem realmente valoriza um transporte mais rápido não o conseguirá de alguma outra forma, que tem como uma das resultantes o crescimento do transporte aéreo em São Paulo, cidade que possui a segunda maior frota de helicópteros do mundo, perdendo apenas para Nova Iorque.

Ainda, pensando na possibilidade de precificação de vias como outros produtos, com certeza existirão vias mais caras e mais baratas. É o mesmo conceito de pagar mais ou menos para uma refeição: existe uma gama imensa de alternativas de restaurantes e de mercados, para todos os bolsos.

Indo mais além, se automóveis em si fossem coletivizados eles provavelmente não existiriam devido à escassez, ou então existiria apenas algo que nem o Lada, que também têm um preço no mercado “negro” cubano, e possuído apenas por cubanos mais ricos.

Hoje a precificação das ruas e o fim da bonança do carro não é algo apenas para especular. Políticas de taxamento de congestão já foram introduzidas em Londres, Estocolmo, Cingapura e Milão, possibilitando o início de sociedades em que motoristas não destroem as cidades às custas do resto da sociedade.

O Streetsblog fez um comentário interessante sobre o sistema implementado em Estocolmo, que fez um teste de 6 meses do sistema antes de ser implementado: antes do teste 80% das pessoas eram contrárias à precificação, mudando para 42% após a implementação.

Isso prova que maioria das pessoas não gosta apenas da ideia da taxa, já que o que antes era escondido nos impostos se torna transparente e direcionado aos próprios usuários, mas que na prática ela resolve grande parte do problema dos incentivos individuais que levam à tragédia dos comuns e aos danos às cidades.

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  • @Eduardo GalvãoObrigado pelo elogio, professor! Fico feliz em saber que também eres um leitor.

    Quanto aos estacionamentos, realmente é a mesma lógica. Não só as ruas mas as vagas de estacionamento também são tornadas gratuitas, provocando o mesmo efeito. Ainda, um sistema ainda superior ao simples tarifamento seria preços diferentes em vias e horários diferentes, ajustando-se à demanda. Mas claro que não passa de teoria aqui pela Brazilândia.

    Grande abraço!

  • Anthony, parabéns pelo blog. Alta qualidade na argumentação e informação.

    Quanto ao assunto, afirmo (um tanto jocosamente, confesso) que a maior realização das administrações petistas em Porto alegre foi a implantação do estacionamento rotativo, que vai ao encontro do conceito de precificação.

    Infelizmente o mesmo não foi expandido para a maioria das vias com vocação comercial, permitindo que o péssimo hábito da ocupação de uma vaga por turno ou dia se mantenha.

    Junto disso, a gestão amadora que a EPTC ‘exerce’ permite o estacionamento (não rotativo…) quase que indiscriminado em ambos os lados das vias, causando a ‘esclerose’ do canal – o congestionamento (ex: Pedro Ivo, rota alternativa sempre congestionada nos horários de fim e início de turno).

    Enfim, muito a evoluir…

    Abraço.