Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
As cidades que exigem que construtores forneçam vagas de estacionamento geram mais tráfego, expansão e preços inacessíveis para moradias. Mas nós podemos quebrar esse ciclo vicioso.
22 de julho de 2021No início da era do automóvel, suponha que Henry Ford e John D. Rockefeller tivessem perguntado como os planejadores urbanos poderiam aumentar a demanda por carros e gasolina. Considere três opções. Primeiro, divida a cidade em zonas separadas (moradia aqui, empregos ali, compras acolá) para criar viagens entre as zonas. Depois, limite a densidade para espalhar tudo e aumentar ainda mais as viagens. Terceiro, exija amplo estacionamento fora das vias em todos os lugares, para que os carros sejam a maneira mais fácil e barata de viajar.
As cidades americanas adotaram imprudentemente essas três políticas favoráveis aos carros. Usos de terra separados, baixa densidade e amplo estacionamento gratuito criam cidades dirigíveis e evitam bairros onde se pode caminhar.
Embora os planejadores urbanos não pretendessem enriquecer as indústrias automobilística e petrolífera, seus planos moldaram nossas cidades para se adequarem aos nossos carros. Como John Keats escreveu em The Insolent Chariots: “O automóvel mudou nossas roupas, maneiras, costumes sociais, hábitos de férias, a forma de nossas cidades, padrões de compra do consumidor e posições nas relações”. Sendo que alguns de nós foram até mesmo concebidos em um carro estacionado.
As exigências de estacionamento são desaconselhadas porque subsidiam de forma direta os carros. Nós dirigimos a um lugar para fazer alguma coisa, a outro para fazer outra e então percorremos um longo caminho de volta para casa, estacionando gratuitamente em todos os lugares.
Uma enxurrada de pesquisas recentes mostrou que as exigências de estacionamento envenenam nossas cidades, aumentando o congestionamento, poluindo o ar, incentivando o espraiamento, aumentando os custos de habitação, degradando o design urbano, impedindo a caminhada, prejudicando a economia e penalizando todos que não podem comprar um carro.
Apesar de todos os danos causados, essa exigência é quase uma religião estabelecida no planejamento da cidade. Sem teoria ou dados para apoiá-los, os planejadores definem exigências de vagas para centenas de usos do solo em centenas de cidades — os dez mil mandamentos do planejamento para estacionamento.
Os urbanistas adotaram um verniz de linguagem profissional para justificar a prática, mas o planejamento do estacionamento é aprendido apenas no trabalho e é mais uma atividade política do que habilidade profissional.
Não se deve criticar a religião de ninguém, mas sou protestante quando se trata de exigências de estacionamento — e acredito que o planejamento urbano precisa de uma reforma.
Os EUA são um país livre e muitas pessoas pensam que isso significa que o estacionamento não deve ter custos. O que acontece, porém, é que exigências por vagas permitem que todos estacionem gratuitamente, mas sem saberem que alguém está pagando. O estacionamento é gratuito apenas porque todo o resto é mais caro.
Um estudo recente descobriu que as vagas exigidas para shoppings em Los Angeles aumentam o custo de construção em 67% se a estrutura do estacionamento for acima do solo e em 93% se for subterrânea.
Os varejistas repassam esse alto custo a todos os compradores, independentemente de como eles viajam. Pessoas que não podem comprar um carro pagam mais por suas compras, assim as pessoas mais ricas podem estacionar de forma gratuita quando dirigem até a loja.
Isso também se aplica à habitação. Apartamentos pequenos e espartanos custam menos para construir do que os grandes e luxuosos, mas suas vagas de estacionamento custam o mesmo. Como muitas cidades exigem o mesmo número de vagas para todas as unidades, independente de seu tamanho ou qualidade, o estacionamento necessário aumenta desproporcionalmente o custo de moradias de baixa renda. Um estudo descobriu que os requisitos mínimos elevam os preços em 13% para famílias sem carros.
Na verdade, uma única vaga pode custar mais do que o patrimônio líquido de muitas residências nos Estados Unidos. Um estudo descobriu que, em 2015, o custo médio de construção (excluindo o custo do terreno) para estacionamentos foi de cerca de US$ 24.000 por vaga na superfície e US$ 34.000 no subterrâneo.
Para comparação, o Censo dos EUA de Riqueza e Propriedade de Ativos descobriu que em 2015 o patrimônio líquido médio (o valor dos ativos menos dívidas) era de US$ 110.500 para famílias brancas, US$ 19.990 para famílias hispânicas e US$ 12.780 para famílias afro-americanas. Uma vaga, portanto, custa mais do que todo o patrimônio líquido de mais da metade de todas as famílias hispânicas e negras no país.
Esta exigência de fornecer casas para automóveis devorou vastas extensões de terra. Os estacionamentos costumam ter cerca de 30 m² por vaga. Como há pelo menos três vagas fora da via por carro nos EUA, há no mínimo 90 metros quadrados de vagas fora da via por carro.
Em comparação, existem cerca de 74 m² de espaço habitacional por pessoa nos Estados Unidos. Logo, a área de estacionamento fora da via por carro é maior que a área de habitação por pessoa.
Na astronomia, a energia escura é uma força que permeia o espaço e faz com que o universo se expanda. Da mesma forma, no planejamento urbano, os requisitos de estacionamento são uma força que faz com que as cidades se expandam. Quanto maiores os requisitos de estacionamento, mais forte é a energia escura que espalha as cidades e as separa.
Poucos estão interessados de fato nos estacionamentos, mas isso afeta muito questões com as quais as pessoas realmente se preocupam, como habitação a preços acessíveis, mudança climática, desenvolvimento econômico, transporte público, congestionamento de tráfego e desenho urbano.
As exigências reduzem a oferta e aumentam o preço da habitação. Os subsídios para atraem as pessoas para os carros, deixando o transporte público, bicicletas ou mesmo de se deslocar com seus próprios pés. Cruzar a rua para estacionar no meio-fio congestiona estradas, polui o ar e adiciona gases de efeito estufa. Será que as pessoas realmente desejam uma distopia drive-in mais do que uma moradia acessível, ar puro, bairros onde se pode caminhar, um bom projeto urbano e um planeta sustentável?
Mas a maioria das pessoas considera o estacionamento um problema pessoal, não um problema de política. Eles seguem a observação axiomática de George Costanza em Seinfeld, que disse que pagar para estacionar era como ir a uma prostituta: “Por que eu deveria pagar quando, se eu me candidatar, talvez eu consiga de graça”.
O estacionamento turva a mente das pessoas, mudando as faculdades analíticas para um nível inferior. Pessoas racionais rapidamente se tornam emocionais; conservadores ferrenhos se transformam em comunistas fervorosos. Pensar em estacionar parece ocorrer no córtex reptiliano, a parte primitiva do cérebro que governa comportamentos como agressão, territorialidade e exibição de rituais — todos fatores presentes no estacionamento.
Alguns apoiam fortemente os preços de mercado — exceto para estacionamento. Alguns se opõem aos subsídios — exceto para estacionamento. Alguns abominam os regulamentos de planejamento — exceto para estacionamento. Alguns insistem em coleta de dados e testes estatísticos rigorosos — exceto para estacionamento.
Esse excepcionalismo empobreceu o pensamento sobre as políticas de estacionamento. Se os motoristas pagassem o custo total, pareceria muito caro, então que outra pessoa pague por isso. Mas uma cidade onde todos pagam alegremente pelo estacionamento gratuito de todos os outros é um paraíso de tolos.
A exigência de vagas fora da via são o que os engenheiros chamam de “kludge” — uma solução estranha, mas temporariamente eficaz para um problema. Nesse caso, o problema que eles resolvem é a falta de estacionamento gratuito na rua. Mas cortar a ligação entre o custo e o preço aumenta a demanda por carros e, quando os cidadãos se opõem ao congestionamento resultante, as cidades respondem restringindo o desenvolvimento para reduzir o tráfego.
Em outras palavras: as cidades estão limitando a densidade de pessoas para limitar a concentração de carros. O estacionamento gratuito se tornou o árbitro da forma urbana, e os carros substituíram os humanos como a verdadeira preocupação com a densidade do zoneamento.
Os planejadores normalmente presumem que cada novo residente virá com um carro, então eles exigem que os incorporadores forneçam vagas suficientes fora da rua para abrigá-los. Um amplo estacionamento gratuito garante que a maioria dos residentes queira um carro. Assim, as exigências resultam de uma profecia que se autorrealiza.
Os planejadores costumam usar “raciocínio motivado” para justificar os requisitos de estacionamento exigidos por funcionários eleitos, que desejam estacionamento suficiente para garantir que os cidadãos não gritem sobre a falta de estacionamento gratuito. Em seguida, eles devem elaborar argumentos para as conclusões já alcançadas. As suposições são o início da maioria das regulações de estacionamento, e a pessoa que as faz determina o resultado.
Em vez de raciocinar sobre as regulações de estacionamento, os urbanistas devem fingir que não possuem um conhecimento especializado. Nunca encontrei um planejador de cidade que pudesse explicar por que uma exigência deveria ser maior ou menor. Para defini-los, os urbanistas geralmente recebem instruções de funcionários eleitos, copiam as regulações de outras cidades ou contam com pesquisas não confiáveis. As exigências de estacionamento estão mais próximas da feitiçaria do que da ciência.
Remover as exigências de estacionamento pode desencadear uma cascata de benefícios: viagens mais curtas, menos tráfego, uma economia mais saudável, um ambiente mais limpo e moradias mais acessíveis.
Vastos estacionamentos podem evoluir para comunidades reais. Há uma reserva de terreno acidental disponível para moradias adjacentes a empregos. Se as cidades eliminarem as exigências, será possível recuperar terrenos em uma escala que rivalizará com a Holanda. Os objetivos econômicos frequentemente entram em conflito com os objetivos ambientais, mas as reformas nos estacionamentos podem servir a ambos.
Para destilar as 800 páginas do meu livro de 2005, The High Cost of Free Parking em três pontos, recomendei três reformas de estacionamento que podem melhorar as cidades, a economia e o meio ambiente:
Remova os requisitos de estacionamento fora da rua. Incorporadores e empresas podem então decidir quantas vagas de estacionamento fornecer para seus clientes.
Cobrar os preços certos para estacionamento na rua: os mais baixos capazes de deixar uma ou duas vagas abertas em cada quarteirão, para que não haja escassez de estacionamento. Os preços equilibrarão a demanda e a oferta de espaços nas ruas.
Gaste a receita do estacionamento para melhorar os serviços públicos nas ruas com pedágio. Se todos virem o dinheiro do medidor em funcionamento, os novos serviços públicos podem tornar politicamente populares a cobrança pelo estacionamento nas ruas.
Cada uma dessas três políticas oferece suporte às outras duas. Gastar a receita do parquímetro para melhorar os serviços públicos da vizinhança pode criar o apoio político necessário para cobrar os preços corretos pelo estacionamento no meio-fio.
Se as cidades cobrarem os preços corretos para produzir uma ou duas vagas abertas em cada quarteirão, ninguém pode dizer que há falta de estacionamento na rua. Se não houver falta de vagas, as cidades podem remover a exigência de estacionamento fora da via.
Finalmente, a remoção dessas exigências aumentará a demanda por estacionamento na via, aumentando a receita para pagar pelos serviços públicos.
Montar o suporte para a reforma do estacionamento é como abrir um cadeado de combinação: cada pequena volta do botão parece não levar a nada, mas quando tudo está no lugar, ela se abre. Essas três reformas podem destrancar a fechadura do estacionamento.
Artigo publicado originalmente em Bloomberg CityLab em 20 de setembro de 2019. Traduzido por Gabriel Lohmann.
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarAs mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Com o objetivo de impulsionar a revitalização do centro, o governo de São Paulo anunciou a transferência da sua sede do Morumbi para Campos Elíseos. Apesar de ter pontos positivos, a ideia apresenta equívocos.
Confira nossa conversa com Diogo Lemos sobre segurança viária e motocicletas.
Ricky Ribeiro, fundador do Mobilize Brasil, descreve sua aventura para percorrer 1 km e chegar até a seção eleitoral: postes, falta de rampas, calçadas estreitas, entulhos...
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
No programa Street for Kids, várias cidades ao redor do mundo implementaram projetos de intervenção para tornar ruas mais seguras e convidativas para as crianças.
Algumas medidas que têm como objetivo a “proteção” do pedestre na verdade desincentivam esse modal e o torna mais hostil na cidade.
A Roma Antiga já possuía maneiras de combater o efeito de ilha de calor urbana. Com a mudança climática elevando as temperaturas globais, será que urbanistas podem aplicar alguma dessas lições às cidades hoje?
Joinville tem se destacado, há décadas, por um alto uso das bicicletas nos deslocamentos da população.
COMENTÁRIOS