Muitos planejadores de transportes em cidades brasileiras atualmente acreditam que a solução para os problemas de mobilidade urbana está na construção de um supersistema: uma solução que seja diferente do ônibus comum, que crie um “cartão postal” para a cidade e seja totalmente planejada e controlada pelas secretarias municipais. Um dos motivos amplamente utilizados para a construção de tais sistemas é o suposto “desenvolvimento econômico”, como o próprio PAC de Mobilidade liderado pelo governo federal que orçou, junto ao Pacto da Mobilidade, um valor de investimento de 143 bilhões para novos sistemas de transporte. Os proponentes dessa estratégia acreditam que, além dos empregos diretos gerados na construção e operação desses sistemas, são criados empregos e benefícios indiretos para a economia local. No entanto, em nenhuma ocasião há o trabalho de quantificar efetivamente esses possíveis benefícios. Muitas decisões de construção acabam se baseando em supostos crescimentos econômicos que nem sequer foram estimados, muito menos comprovados posteriormente. Bent Flyvbjerg, Mette Skamris Holm e Søren Buhl, da Universidade de Oxford, examinaram o custo estimado de 258 grandes projetos de transporte público, totalizando 90 bilhões de dólares em países ao redor do mundo. Concluíram que as propostas sistematicamente subestimam os custos e superestimam o uso. A média de superfaturamento chega a quase 28%. Projetos ferroviários se saíram ainda pior, com cerca de 45% acima do custo original.
Enormes quantias de recursos públicos são gastas em megaprojetos que acabam, inclusive, gerando resultados opostos aos pretendidos, ou seja, incentivando cidadãos a preferir o automóvel individual ou gerando prejuízo ao usuário do transporte coletivo. A construção de viadutos, trincheiras ou outras grandes intervenções viárias segue exatamente essa lógica. Tais obras, visíveis para grande parte da população, são geralmente propagandeadas como grandes feitos das gestões municipais. No entanto, em projetos de viadutos ou outras infraestruturas rodoviárias urbanas, via de regra, estima-se a demanda de tráfego levando em consideração o crescimento do PIB e a taxa de motorização. Ao atender à demanda crescente do tráfego, essas obram induzem uma mudança nos padrões de viagem em favor do automóvel individual: motoristas mudam o seu trajeto para aproveitar o viaduto, e pessoas que não dirigiam passam a dirigir devido à melhoria na oferta da infraestrutura trazida pelo viaduto. Além disso, a barreira urbana criada pela própria dimensão de um viaduto prejudica a caminhabilidade do seu entorno, desincentivando, assim, também o uso do transporte coletivo e do transporte a pé ou cicloviário. É por esse motivo que novos viadutos e trincheiras intraurbanas costumam tornar-se novamente congestionados pouco tempo após a sua inauguração, transmitindo à população a falsa impressão de que a obra foi subdimensionada.
Além de não solucionar os problemas de congestionamento que pretende resolver, a ampliação da infraestrutura viária tem custos extremamente elevados e transtornos periódicos muitas vezes longos por causa das obras. Por se basear na lógica da alta velocidade nos deslocamentos por automóveis, acaba por ligar um engarrafamento a outro. Grandes obras viárias também são frequentemente acompanhadas por desapropriações em massa, dilacerando a estrutura urbana consolidada, gerando insegurança jurídica em relação às instituições de propriedade e criando espaços sem vitalidade urbana, que inibem outras formas de deslocamento não motorizados.
Propostas de grandes obras também não levam em consideração a grande possibilidade de que, caso não sejam entregues ou atrasem-se substancialmente, causarão transtornos que poderão resultar em sérios problemas para a cidade e para a mobilidade urbana.
As pequenas intervenções, por outro lado, mais focadas em quarteirões específicos de vias locais, tendem a prezar pela redução da velocidade máxima e a criação de espaços compartilhados entre automóveis, pedestres e ciclistas. Há diversos estudos que indicam que essas intervenções são mais eficientes em melhorar a fluidez do tráfego do que grandes obras de infraestrutura viária. As obras estritamente focadas em melhorar a fluidez do tráfego de automóveis beneficiam pouquíssimas pessoas: numa faixa de tráfego de 3,5 metros, durante uma hora, só passam 2 mil pessoas de carro, enquanto de ônibus, bicicleta e a pé passam 9 mil, 14 mil e 19 mil pessoas, respectivamente.
Propostas de grandes obras também não levam em consideração a grande possibilidade de que, caso não sejam entregues ou atrasem-se substancialmente, causarão transtornos que poderão resultar em sérios problemas para a cidade e para a mobilidade urbana. É o caso do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) de Cuiabá e da trincheira da Terceira Perimetral de Porto Alegre, cujos atrasos significativos na sua inauguração resultaram em custos não monetários na estrutura urbana da cidade. Outro fator importante frequentemente desconsiderado pelas grandes obras são seus custos e exigências de manutenção e operação, que podem rapidamente sair do controle, tanto no caso de desajustes fiscais municipais como sob gestões municipais pouco qualificadas.
Entendemos, portanto, que pequenas intervenções devem ser priorizadas no lugar de grandes obras, obtendo-se assim maior eficiência no uso dos recursos e maior controle dos impactos sobre a cidade, a fim de que os benefícios urbanos sejam mais bem distribuídos na cidade. Tais gastos geram menos manchetes individualmente, mas provocam mais impacto por real gasto do que os grandes sistemas, que não devem ser construídos sem sólidos estudos de demanda e viabilidade econômica e financeira.
Para facilitar o acesso ao conteúdo do Guia de Gestão Urbana, publicamos todas as propostas apresentadas no livro na sua ordem original. Você as encontra em https://caosplanejado.com/guia, junto do link para download gratuito do livro.
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COMENTÁRIOS
pelo que entendi, deve-se evitar as grandes obras dentro do perímetro urbano. e quanto a obras na periferia, como um anel viário: seria uma “obra do bem”, já que retiraria um grande fluxo de veículos do centro da cidade?
Obrigado pelo comentário Marcelo. Uma anel viário é sim uma obra muito útil para as cidades pois, como você disse, ajuda a retirar o tráfego do centro urbano e das ruas mais antigas e de baixa capacidade, Devemos deixar essas para pedestres e ciclcistas, de preferência. No entanto, um anel viário, como a maioria das obras grandes de infrastrutura, corre o risco de ser superfaturado (pesquise sobre o projeto Big Dig em Boston) e de causar um impacto negativo principalmente nas perifierias: a segregação especial dos bairros antigos, algo que aonteceu em muitas cidades americanas aquando da implantação das autoestradas. Mais ainda, esses grandes projetos acabam por segregar bairros sem os servi-los, ou seja, só trazem transtorno e marginalização para esses lugares sem trazer mobilidade ou acessibilidade.
Oi Marcelo!
A postagem se baseia em um estudo que mostra que uma parcela significativa de megaprojetos são superfaturados e tem retornos muito abaixo dos prometidos. Isto, por si só, acende um sinal amarelo para qualquer projeto de grande escala, e por esta razão levando a priorização de projetos menores.
Isso dito, há sim projetos que são menos prejudiciais à malha urbana, mas não tenho experiência na análise de projetos de infraestrutura interurbanos, que não são o foco do Guia. Vou perguntar à outros colaboradores do Caos Planejado para ver se conseguem te dar uma resposta mais precisa para esta questão.
Obrigado pelo comentário!
Anthony