Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Já ouviu falar de "Smart Cities"? Aquele conceito de cidade inteligente onde, através da tecnologia, um grupo técnico consegue controlar tudo, tipo uma utopia do Zeitgeist ou uma distopia do Heinlein?
15 de julho de 2015A visão de uma Smart City (Cidade Inteligente, tradução livre) pode soar futurística, mas é baseada em ultrapassados (porém populares) ideais de planejamento urbano. Novas tecnologias são meramente sobrepostas ao status quo de sistema de governança urbana que foi desenvolvido durante o último século.
As versões anteriores de conceitos para a “cidade inteligente” propõe uma infraestrutura centralizada governada por autoridades locais. É basicamente a manifestação de uma forma de governança municipal de cima para baixo.
A internet, particularmente o uso de dispositivos móveis conectados, criou um ambiente que desafia a premissa básica de governança municipal de cima para baixo. A possibilidade de conectar diretamente pessoas ou dispositivos estimulou novos comportamentos que não necessitam mais do governo como o único coordenador.
Conforme os novos comportamentos e sistemas de distribuição ganham força e escala, o conceito original de Smart Cities pode logo ser encarado como um exercício equivocado de futurismo.
Para entender a gênese das “cidades inteligentes”, precisamos primeiro examinar as origens do conceito e os principais atores envolvidos.
A visão original para uma Smart City era baseada em infraestrutura. Ela propunha a instalação de uma gama de dispositivos espalhados pela cidade que iriam ser conectados a uma sala central de controle.
Era de se esperar que grandes empresas de tecnologia da informação e hardware promoviam essa visão. Elas esperavam vender, instalar e manter essa infraestrutura. Houve um tempo em que não havia consenso sobre o termo Smart City. Era comum ouvir sobre “cidades mais inteligentes”, “cidades conectadas”, “cidades digitais” — a maioria dessas expressões foi registrada por corporações como HP, CISCO e IBM. O que foi divulgado como uma visão científica do futuro foi, na verdade, só uma jogada de marketing.
“O que foi divulgado como uma visão científica do futuro foi, na verdade, só uma jogada de marketing.”
Para essa infraestrutura centralizada funcionar, era necessário destinar grandes partes dos orçamentos municipais. Essa visão só era atingível através de uma governança municipal de cima para baixo.
Havia um interesse extremamente alto de grandes corporações. Um único contrato tinha o potencial de incorporar uma cidade inteira dentro de uma solução de hardware proprietário para sempre.
A visão de uma sala central de controle foi aderida por muitos burocratas das cidades. O sistema prometia a expansão dos seus poderes. É tentador preservar um monopólio sobre a intermediação entre habitantes.
Por padrão, estamos acostumados com um planejamento de infraestrutura urbana de cima para baixo. Esse é o legado do século XX, mas nem sempre foi assim.
Antes da industrialização, a população da maioria das cidades americanas e europeias dificilmente excedia 30.000 pessoas. O território urbano era facilmente cruzado numa caminhada de 30 minutos ou a cavalo. Todos os residentes podiam literalmente caber numa praça central. No sentido mais amplo, era uma cidade de vizinhos.
A escala das cidades viabilizava iniciativas de infraestrutura privada. A maioria dos projetos de infraestrutura era iniciada por empresas e cooperativas. A Ponte do Brooklyn, o metrô de Nova York, as redes de eletricidade – tudo financiado pela iniciativa privada.
Ondas de industrialização levaram a um crescimento populacional sem precedentes e à expansão de áreas urbanas. Esse boom alterou a cultura urbana de uma cidade de vizinhos para uma cidade de estranhos.
Quanto maior a população, mais fracos os laços de comunicação entre os habitantes. A ausência de meios diretos de comunicação criou a necessidade de um coordenador. Autoridades municipais preencheram esse vácuo de comunicação e se intitularam intermediários entre os cidadãos.
Com o tempo, o poder da administração municipal e o escopo de suas ações cresceram desproporcionalmente. Como resultado, por gerações as cidades foram governadas como sistemas de cima para baixo.
“Autoridades locais não possuem mais o monopólio na mediação entre residentes.“
A popularização da internet, particularmente em dispositivos móveis, providenciou a infraestrutura para o vácuo de comunicação entre os habitantes de uma metrópole. Isso é exatamente o que a visão de “cidade inteligente” tinha de errado. Nunca foi previsto que a internet iria contestar o papel padrão das autoridades locais como um intermediário entre os residentes.
A internet torna possível criar plataformas independentes para coordenação entre habitantes independentemente do tamanho de uma cidade. Autoridades locais não possuem mais o monopólio na mediação entre residentes.
A internet móvel é particularmente importante. É a primeira tecnologia que ao mesmo tempo continuamente liga os usuários (ou objetos) em movimento e permite a comunicação direta com qualquer um (ou qualquer coisa) na cidade de qualquer lugar.
De repente, indivíduos, empresas, ONGs e universidades têm as ferramentas para criar plataformas de coordenação entre qualquer número de habitantes das cidades.
A tecnologia móvel está mudando a distribuição de poder nas cidades modernas. Quem pode gerar maior impacto numa cidade? Costumava ser o prefeito e seus secretários. Hoje, organizações tecnológicas cada vez mais se tornam novos agentes de mudança.
Novas possibilidades tecnológicas levaram a uma nova onda de experimentos urbanos (também chamados de startups).
Até agora, a maior parte dos experimentos bem-sucedidos vem da indústria de transportes. Governos locais agiram como os intermediários regulando a oferta na indústria do táxi. Várias startups desafiam essa abordagem ao fornecer plataformas privadas que ligam diretamente agentes de transporte com consumidores. Partindo além do serviço comum de táxi, essas plataformas permitem a divisão de corridas, algo previamente impossível de se coordenar entre os usuários. As corridas coletivas da empresa Lyft de San Francisco são atualmente responsáveis por 50% de todas as suas chamadas.
Outros experimentos desafiam o planejamento de cima para baixo de rotas de transporte público: Chariot está levantando fundos para rotas personalizadas através de crowdfunding; Bridj não tem rotas fixas.
Estacionamento é outro exemplo da ação intermediadora das autoridades públicas. A prefeitura calcula a demanda para estacionamento e o número de vagas existente e então define um preço médio. Na teoria, isso ajuda a estabelecer um equilíbrio, mas na prática a demanda por estacionamento é altamente volátil tanto no tempo quanto no espaço. A internet móvel permite a criação de plataformas similares para refletir dinamicamente a demanda real de estacionamento. Muitas startups estão tentando fazer exatamente isso: MonkeyParking (banida em San Francisco) e JustPark (alugue sua própria garagem de casa).
A diferença crucial é o poder de escalabilidade. Autoridades locais são limitadas pela geografia de uma cidade em particular. As plataformas online são escaláveis através dezenas de cidades. Esse é um fator explosivo que ainda não foi totalmente compreendido pela academia e por estudantes de planejamento urbano. Você quer melhorar uma cidade ou centenas delas?
A visão original de “cidade inteligente” necessitava da instalação centralizada de uma gama de sensores, câmeras e transmissores para coletar dados sobre uma cidade.
No entanto, hoje percebe-se que é possível coletar a maior parte dos dados necessários sem grandes gastos numa infraestrutura centralizada de cidade inteligente. Uma crescente quantidade de dados é agregada por empresas e organizações não-governamentais como um subproduto das suas operações principais.
Operadoras de celular, bancos, empresas de entrega e logística têm grande quantidade de dados que poderia ser reciclada para análises e planejamento urbano. Muitos desses dados são proprietários ou difíceis de agregar, mas isso é um desafio que pode ser resolvido sem o governo ser o único integrador.
Análise da empresa Moscow Mobility baseada em informação sobre o uso de internet móvel agregada pela Habidatum International em parceria com Mathrioshka, MegaFon e Thomson Reuters para MUF.
A visão inicial de Smart City propunha a governança municipal de cima para baixo. Essa visão era promovida por empresas de tecnologia de informação e hardware. Elas poderiam se beneficiar de uma infraestrutura centralizada que manteria cidades sob seu padrão de tecnologia para sempre.
A internet, especialmente a móvel, é o provocador de mudanças nas cidades modernas. Ela proporciona infraestrutura para o vácuo de comunicação entre habitantes de uma região metropolitana. Isso, portanto, desafia a governança municipal de cima para baixo. A prefeitura não mais detém o monopólio sobre a mediação entre os cidadãos. Intermediadores privados e plataformas de conexão entre indivíduos cada vez mais se tornam os novos mediadores do poder.
Estamos presenciando o mero começo na mudança de governança nas cidades para a crescente coordenação direta entre cidadãos.
Fedor Novikov é co-fundador da DOM Architectural Robotics e mestre em planejamento urbano pela NYU
Publicado originalmente no blog da DOM Architectural Robotics em 8 de abril de 2015. Foi traduzido por Eduardo Ransolin, revisado por Anthony Ling e publicado neste site com autorização do autor.
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