Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O novo Pacto Federativo deve permitir que os municípios tenham maior autonomia financeira, exigindo uma boa gestão urbana para seu crescimento.
7 de outubro de 2019Uma das condições que trouxe a discussão de um novo pacto federativo de volta à pauta política brasileira é a crise fiscal dos estados. A necessidade eminente de recursos tem levado governadores a pressionarem o Governo Federal para aumentar o repasse de recursos às suas entidades federativas. No entanto, o pacto federativo já deveria ser pauta urgente pela demanda dos municípios, e mais radical do que está sendo proposto pelo governo.
Atualmente, de todos os impostos arrecadados no país, municípios ficam com apenas cerca de 18% do total, sendo boa parte desse valor condicionado a repasses da União. Através de arrecadação própria, a fatia não chega a 10%. No entanto, os principais gastos da realidade do dia a dia dos cidadãos são intrinsecamente municipais. Coleta de lixo, segurança pública e prisões, fiscalização de trânsito, iluminação pública, serviços do SUS, creches e escolas, projetos de infraestrutura — como manutenção de vias e praças públicas, obras de drenagem e esgotamento sanitário — são apenas alguns exemplos que devem ser ora custeados pelo próprio município, ora através de pleitos aos governos estadual e federal. Não surpreendentemente, segundo estudo da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) de 2017/2016, 86% dos municípios apresentam situação fiscal difícil ou crítica.
Hoje a escolha dos recursos a serem repassados aos municípios está longe de seguir as melhores práticas em gestão pública. Dependendo de emendas parlamentares, são os prefeitos com melhor capital político em Brasília que têm vantagem na arrecadação de recursos para os seus municípios. Nada representa melhor esse processo do que a famosa Marcha dos Prefeitos, que anualmente reúne milhares de líderes municipais em Brasília para reivindicar suas pautas. É um grande grupo de pressão para suplicar recursos à União. Nesse processo, também é comum uma corrida por projetos que, às vezes, mesmo sem urgência, são elaborados de forma oportunista para entrar em pautas que estejam em voga em Brasília, como foi a ocasião dos recursos para a Copa do Mundo. Até cidades que não eram sede apresentavam justificativas para receber recursos para centros de treinamento, delegações ou simplesmente infraestrutura para turismo, já que estavam “disponíveis” para quem chegasse primeiro.
Por ter grande parte dos repasses atrelados a projetos ou convênios específicos, as despesas correntes necessárias para a administração e o funcionamento do município, muitas vezes, ficam sem recursos suficientes — embora grandes projetos, talvez não tão prioritários, possam mesmo assim acontecer. Pela forma que o sistema de recursos foi desenhado, gestores públicos municipais acabam gastando tempo reforçando sua relação com Brasília enquanto poderiam estar resolvendo problemas reais da sua cidade.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem afirmado que o correto seria inverter a concentração atual de recursos e repassar de 65% a 70% do orçamento aos estados e municípios, deixando os 30% restantes com a União. A lógica está correta: é nas cidades que moram as pessoas, e não em instâncias administrativas abstratas. E é difícil pensar em gastos que, pela sua natureza, não poderiam estar no âmbito municipal. Mesmo programas com caráter redistributivo, que compõem grande parte dos gastos em nível federal, poderiam ser decididos e geridos em nível municipal, instância onde as desigualdades sociais se manifestam na sua forma mais explícita.
Uma possível crítica ao aumento da autonomia financeira municipal é que o Governo Federal teria condições de realizar uma redistribuição em nível nacional, auxiliando municípios ou regiões que não conseguem se sustentar por conta própria. Tal política, no entanto, elimina a tremenda importância da migração populacional na dinâmica econômica territorial. Edward Glaeser, economista de Harvard especialista em desenvolvimento urbano e autor de O triunfo da cidade, recentemente descreveu medidas de auxílio regional como um “suborno para viver em áreas pobres”. Segundo ele, algumas regiões são mais pobres do que outras devido a fatores históricos e circunstanciais que não necessariamente serão resolvidos com mais recursos. Ainda, o subsídio a tais regiões não só beneficiam aqueles que moram nessas regiões e não são pobres como incentivam a perpetuação de possíveis políticas desastrosas que as levaram àquela situação em primeiro lugar, mitigando a migração populacional a áreas mais bem geridas e de maior produtividade. Ou seja, o objetivo final não deve ser enriquecer uma geografia, mas sim as pessoas, mesmo que se mudem de um lugar para outro.
A ideia de que “desigualdades territoriais” deveriam ser equilibradas é contrária à própria existência de cidades. Segundo essa teoria, cidades deveriam redistribuir a população que atraem e a riqueza que geram, perdendo os ganhos de escala da vida urbana e penalizando essa organização social que potencializa as atividades econômicas, ao ponto de serem chamadas de “reatores sociais” por pesquisadores como Luis Bettencourt, do Santa Fe Institute. Deveríamos, assim, permitir que os cidadãos tenham acesso às grandes cidades se assim desejam e descentralizar recursos, para que os municípios possam gerir seu desenvolvimento urbano.
O novo pacto federativo que deve ser discutido vai na direção certa de descentralizar os recursos da União. Mas não apenas isso: deve permitir que os municípios tenham maior autonomia financeira, dependendo menos de repasses para suas finanças e exigindo uma boa gestão urbana para seu crescimento. Não devemos ver a migração como vilã, mas o resultado de um processo de competição de cidades por cidadãos, crescendo a partir do seu sucesso — e não do seu fracasso.
Texto publicado originalmente em Revista VOTO em agosto de 2019.
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Em um país com 80% da população vivendo em cidades, não faz sentido algum manter 55% dos recursos na União e apenas 18% nos prefeituras.
Um novo pacto federativo com a desconcentração dos recursos de Brasília, dando maior autonomia aos estados e municípios, contribuirá certamente para uma gestão mais equilibrada, contendo políticas discricionárias e os impactos de equívocos administrativos federais, tornando os estados e municípios mais resilientes.