Por que abandonamos a gestão metropolitana?
Fernando Stankuns/Flickr

Por que abandonamos a gestão metropolitana?

No passado, a gestão metropolitana foi amplamente estudada e apoiada por políticas públicas no Brasil devido à sua importância para o desenvolvimento socioeconômico. Porém, mudanças políticas e ideológicas levaram ao seu abandono.

25 de abril de 2024

No século passado, a questão metropolitana e o desenvolvimento econômico foram temas globais do pós-guerra e de políticas do chamado “terceiro mundo”. Na França, o “aménagement du territoire” dos anos 40 associou a questão metropolitana ao desenvolvimento econômico e territorial do país. Nos anos 50, a utopia desenvolvimentista inspirou nações capitalistas e socialistas, incluindo-se aí o regime militar brasileiro, autoritário e desenvolvimentista.

Na época, a questão metropolitana era tema preferencial de estudos acadêmicos e de políticas públicas e o saber da economia e da geografia demonstravam as inter-relações da rede urbana com o desenvolvimento socioeconômico e a migração interna. Além disso, as características das metrópoles exigiam conceitos e procedimentos administrativos próprios. Assim, a gestão metropolitana surgiu como desafio administrativo e as metrópoles se tornaram instrumento de políticas econômicas.

No Brasil, a gestão metropolitana ganhou força a partir da iniciativa de municípios conurbados em Porto Alegre e São Paulo, que associaram-se ao governo estadual para enfrentar problemas comuns e deram origem às primeiras instituições metropolitanas na década de 1960. Em paralelo, geógrafos do IBGE estudaram a rede urbana e criaram o setor de Estudos Metropolitanos. O Ministério do Interior (MINTER) promoveu encontros para debater o tema e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU) criou o Sistema Nacional de Planejamento Local Integrado, apoiando técnica e financeiramente os planos diretores de metrópoles. Em 1967, a Constituição Federal introduziu o direito da União de criar regiões metropolitanas e o Ministério do Planejamento promoveu programas e estudos para integrar as políticas socioeconômicas às questões urbanas. Além disso, o Banco Nacional de Habitação (BNH) financiou programas habitacionais, de saneamento e infraestrutura urbana. 

São Paulo, 1968. Foto: Acervo AHSP

Dessa forma, a gestão metropolitana avançou em cada estado, e após uma década de amadurecimento, o Governo Federal criou nove regiões metropolitanas (RMs), delimitou territórios e definiu serviços de interesse comum. Ainda em 1974, foi criada a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU), para dar apoio técnico e financeiro às RMs e coordenar atividades federais em áreas urbanas. No mesmo ano, foi aprovado o II Plano Nacional de Desenvolvimento e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, com prioridades e funções de cada RM.

Imagem: II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975/1979)

No ano seguinte, quando o país enfrentou a crise mundial do petróleo, surgiu a Empresa Brasileira dos Transportes Urbanos (EBTU) para investir em corredores de ônibus, trens de subúrbio e dar apoio técnico à gestão metropolitana.

No “espaço geográfico” na época, quando falar por telefone de Recife com São Paulo exigia 4h de espera, as metrópoles eram, na feliz imagem de Marco Costa, “hubs” do desenvolvimento regional onde investimentos federais qualificavam os espaços urbanos e alavancavam o desenvolvimento regional para consolidar um “projeto de modernização alinhado a uma perspectiva de desenvolvimento”. Diferente dos dias de hoje, quando a força das metrópoles se dilui e o espaço digital ganha importância.

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A nova democracia que emergiu em 1988 não adotou um “projeto para nação”, a utopia desenvolvimentista desaparece e as lideranças urbanas adotam utopias setoriais que desqualificam práticas do período autoritário e as colocam debaixo do tapete como “entulhos autoritários”. Dentre as novas utopias, vale destacar:

  1. 1) a “reforma urbana”, liderada pelo Movimento da Reforma Urbana (MRU), que buscava vincular-se às Reformas de Base preconizadas pelo Presidente João Goulart e à Reforma Urbana do Seminário de Quitandinha, onde o foco central foi a habitação.
  2. 2) o “direito à cidade”, preconizado por Henri Lefebvre e que o MRU postulava como a utopia para gerar oportunidades iguais para todos.
  3. 3) o “Orçamento Participativo”, implantado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em Porto Alegre (1989), inspirado na democracia participativa e diferente da representativa quanto ao poder dos representantes eleitos na gestão e no uso dos recursos públicos. 

Na época, a forte rejeição ao sistema centralizador e interfederativo do período autoritário levou à aprovação da Constituição Federal, que:

  • – promove a descentralização e atribui aos municípios as políticas de desenvolvimento e de expansão urbana.
  • – atribui aos estados a responsabilidade de instituir regiões metropolitanas para organizar, planejar e executar “funções públicas de interesse comum”.

A partir de então, desaparecem as utopias nacionais. Nada similar ao Programa de Metas de JK na democracia dos anos 50 e ao Estatuto da Cidade de 2001 consolida o modelo municipalista e participativo na elaboração do plano diretor urbano e na “Gestão Democrática da Cidade”, e a gestão metropolitana é ignorada.

A oportunidade para implantar esse conjunto de leis surgiu com a eleição do Presidente Lula da Silva em 2003 e a criação do Ministério das Cidades, que elaborou o Plano de Ação para Metrópoles em Risco e a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU). Em seu abrangente diagnóstico, o texto destaca que metrópoles “concentram” a questão social, “aprofundam o caráter desigual da sociedade brasileira” e que há “crescente constrangimento do nosso desenvolvimento advindo da metropolização”. Para resolver essa ameaçadora orfandade política que a questão metropolitana sofreu durante tantos anos, a PNDU entregou ao Observatório das Metrópoles a tarefa de “construir a política metropolitana nacional, delimitar as RMs e elaborar planos metropolitanos para orientar investimentos públicos, em parceria com o Ministério das Cidades, estados e municípios.” 

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Em contraponto, lideranças do Ministério divergiam e as urbanistas Raquel Rolnik e Nadia Somekh criticaram a PNDU do II PND por conta dos conceitos adotados pelo IBGE e pelo governo federal (população, área do território, etc). Entenderam que o correto seria “adotar dinâmicas de cooperação, de consorciamento e de articulação supramunicipal em curso naquele momento”, conceitos que ignoraram a gestão de áreas conurbadas e o impacto regional de metrópoles. Por último, o Estatuto da Metrópole, de 2015, estimulou os estados a criarem uma governança metropolitana segundo seus interesses e concepções.

Nos dias de hoje, o Observatório das Metrópoles entende que “As metrópoles navegam à deriva na trajetória do nosso desenvolvimento capitalista” devido aos “claros sinais de cegueira de nossas elites econômica e política” e invoca os potenciais do “New Deal Metropolitano” frente à realidade urbana, econômica e social brasileira.

Já o governo federal ignora que a metrópole é uma “cidade maior” que engloba e aglutina cidades de vários municípios, com serviços comuns que ignoram a fronteira municipal e exigem gestão metropolitana. Ignora também que a gestão metropolitana tem melhores condições para apoiar prefeituras e populações pobres na implantação de políticas nacionais de combate às disparidades sociais, ao crime organizado e às milícias, de melhoria das condições ambientais, saúde pública e epidemias, de transportes públicos e saneamento. Ou que Cidades Inteligentes e a Inteligência Artificial têm potenciais para reduzir disparidades que envergonham o país. Por ora, só o IPEA e o Fórum Nacional de Entidades Metropolitanas (FNEM) têm interesse no tema. O que é pouco frente aos potenciais da gestão metropolitana.

Jorge Guilherme Francisconi é arquiteto e urbanista, PhD em Ciências Sociais e autor de “Ciclos políticos e gestão metropolitana no Brasil (1960-2020)”.

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