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Maria Luisa compartilha suas experiências com pesquisas digitais na favela Vila Missionária, em São Paulo, e explica como essas experiências a levaram a desenvolver o Neibz, uma ferramenta para coleta de dados urbanos.
9 de janeiro de 2025O estudo de favelas tem sido tradicionalmente caracterizado por métodos convencionais, geralmente consistindo em entrevistas com papel e caneta e pesquisa de campo. Estudos recentes sugerem que plataformas digitais são uma maneira conveniente de acessar populações marginalizadas.
A Vila Missionária está localizada na cidade de São Paulo. Caminhando pelo bairro, é comum ver moradores sentados nas portas de suas casas, observando com curiosidade ao perceberem que você é um forasteiro. É fácil se perder dentro da Vila Missionária; a maioria das construções são muito semelhantes, e as ruas não seguem nenhuma estrutura planejada. Parece que você está dentro de um labirinto. A morfologia irregular, típica das favelas, pode atuar como uma barreira para formas tradicionais de mapeamento e estudo dos espaços urbanos; a coleta de dados aéreos, por exemplo, tende a sofrer com obstruções e não consegue capturar a heterogeneidade típica em materiais e designs.
Nossa guia na favela tinha 12 anos. Ela começou o tour nos mostrando sua escola. O campo de esportes da escola é o único de seu tipo em todo o bairro, e algumas crianças que frequentam outras escolas vão até lá para jogar. A definição de espaço público dentro de favelas é frequentemente atípica e difícil de mapear.
Esse tipo de conhecimento local é capaz de preencher lacunas nas informações sobre as favelas. Como é a experiência dos jovens nos assentamentos urbanos irregulares? O que eles podem observar que talvez nunca tenha sido mapeado antes? Citando Michael F. Goodchild, “os cidadãos são sensores”, e suas observações locais são extremamente valiosas ao estudar cidades, especialmente onde o acesso ao espaço é limitado.
Às vezes, a nossa guia participava de festas perto da Vila Missionária nos fins de semana. Quando perguntamos se as festas eram abertas a pessoas de fora, ela apenas balançou a cabeça negativamente. Existem lugares dentro das favelas que são inacessíveis a pessoas de fora e, muitas vezes, perigosos para pesquisadores. Janice Perlman, a renomada autora de “O Mito da Marginalidade”, comentou sobre como evitar os riscos ao estudar favelas: “A ubiquidade dos telefones celulares deveria tornar isso muito mais fácil hoje.” Esse conselho reflete o potencial dos dispositivos portáteis para acessar essas comunidades. Nossos celulares podem ser uma maneira de estudar esses espaços de difícil acesso?
Na Vila Missionária, tópicos como trends do TikTok e canais de maquiagem no YouTube são frequentemente ouvidos nas conversas de meninas jovens. Um estudo realizado em 2012 revelou que nove em cada dez moradores com menos de trinta anos nas favelas do Rio de Janeiro tinham acesso à internet. Em uma entrevista de um estudo de 2019 no Morro dos Prazeres, uma favela no Rio de Janeiro, um morador afirmou: “… todo mundo tem um smartphone, o cara mais pobre tem um smartphone”.
Dos moradores que têm acesso à internet, 85% possuem uma conta no Facebook, de acordo com o Instituto Data Favela. A proporção significativa da população das favelas com acesso à internet aumenta o potencial das ferramentas digitais para conectar pesquisadores e moradores. O conhecimento local pode se tornar visível e o estudo das cidades pode se tornar mais participativo.
Para explorar essa hipótese de forma mais aprofundada, foi realizada uma série de entrevistas online. As entrevistadas, meninas de nove a doze anos, moravam na Vila Missionária ou em áreas próximas. Elas foram convidadas a descrever como percebiam o bairro onde vivem. As meninas compartilharam fotos e mensagens de voz descrevendo suas rotinas na favela. Essa pesquisa digital tornou-se uma janela para como uma pessoa jovem vivencia a Vila Missionária.
Um dos achados do estudo foi que os espaços considerados benéficos eram, geralmente, quadras esportivas escolares que também ficavam abertas nos fins de semana e espaços religiosos. Esses locais, sob a perspectiva de alguém de fora, talvez não fossem mapeados como frequentemente utilizados por meninas jovens, se não fosse pelo conhecimento local das voluntárias. Para tornar os resultados da pesquisa acessíveis às entrevistadas, foi produzida uma história em quadrinhos baseada nos achados.
A experiência bem-sucedida de usar pesquisas digitais no estudo da Vila Missionária levou ao desenvolvimento do Neibz, uma ferramenta de software projetada para coletar os dados necessários ao estudar um bairro. A pesquisa pode ser acessada por meio de um site e está disponível em dispositivos móveis. A interface é semelhante à de um aplicativo, mas não requer download nos celulares. Com base em seis categorias diferentes — serviços primários e secundários, segurança, saúde, mobilidade e sustentabilidade — os resultados são apresentados como uma teia com diferentes pontuações para cada categoria, facilitando a interpretação dos resultados. Tanto as categorias quanto as perguntas podem ser modificadas pelos pesquisadores, e diferentes estudos podem ser conduzidos simultaneamente. Além disso, os resultados de estudos distintos podem ser comparados com facilidade.
Os resultados são armazenados e o banco de dados é organizado por anos, o que permite comparar pontuações ao longo do tempo. Isso facilita, por exemplo, o acompanhamento de uma intervenção urbana. Em 2020, o Neibz venceu o Future Cities Challenge, promovido pela ONU-Habitat e pela Fundação Botnar. O software faz parte de um projeto de pesquisa em andamento conduzido pela autora sobre a aplicabilidade do Neibz e outras formas de visualização de geodados.
A experiência na Vila Missionária deixou claro que os moradores com acesso à internet podem agregar informações valiosas à pesquisa urbana. As pesquisas digitais se mostraram não apenas uma maneira de facilitar o processo de levantamento de dados em si, mas, no caso de populações marginalizadas, o acesso à internet pode abrir uma janela para realidades que nunca foram mapeadas antes.
Artigo originalmente publicado em Urbanet, em agosto de 2022.
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