Os limites do modelo habitacional de Singapura
Imagem: Choo Yut Shing/Flickr.

Os limites do modelo habitacional de Singapura

A forma como Singapura desenvolve suas terras garante acessibilidade a habitação apenas para as pessoas atendidas pelo seu programa.

19 de outubro de 2020

Em 2015, a professora de estudos urbanos Anne Haila publicou um livro sobre a propriedade de terras e o sistema habitacional de Singapura chamado Urban Land Rent: Singapore as a Property State. O modelo habitacional de Singapura, recentemente, tem recebido atenção por sua proposta muito difundida de habitações sociais em comparação às cidades costeiras de alto custo dos Estados Unidos.

Tanto Haila quanto, recentemente, escritores da Bloomberg e do CityLab abordam Singapura sem críticas relevantes e pontuam como o mercado imobiliário de Singapura oferece algumas lições importantes para os Estados Unidos.

No entanto, ao contrário da história que Haila e alguns outros comentaristas americanos contaram, há também as desvantagens desse sistema. O mercado imobiliário de Singapura funciona muito melhor para as famílias de classe média comparado com as regiões de custo mais elevado dos Estados Unidos. Porém, oferece moradia extremamente inadequada para seus trabalhadores imigrantes de baixa renda.

A mecânica da habitação pública de Singapura

Em Singapura, 90% das terras são de propriedade do governo e cerca de 80% dos cidadãos e residentes legais vivem em residências públicas ocupadas pelo proprietário em terras arrendadas. Extensas propriedades de terra do governo e um sistema de arrendamento datam da era colonial do país.

Após a independência de Singapura em 1965, o Partido de Ação do Povo, que está no poder desde então, expandiu a posse de terras do estado. Na época da independência, cerca de 50% de Singapura era propriedade do governo, atingindo seu nível atual de propriedades em 2002. A propriedade de terras do governo foi conquistada por meio de desapropriações junto com a criação de aterros, que aumentou o tamanho da ilha em 25%.

Terrenos do governo são leiloados para habitação e outros tipos de desenvolvimento, principalmente como arrendamentos de 99 anos. O Housing and Development Board (HDB), uma agência governamental, constrói a maioria das novas moradias, mas algumas residências de alto padrão são desenvolvidas de forma privada.

O HDB e os incorporadores privados competem por terrenos em leilões e ambos pagam preços de mercado por eles. Ao contrário do sistema de moradias públicas dos Estados Unidos, segundo o qual as unidades permanecem como propriedade do governo e são alugadas para inquilinos de baixa renda, as moradias públicas de Singapura são vendidas, principalmente, para compradores de renda média.

Os compradores têm, então, o direito de morar em seu apartamento, vendê-lo a preço de mercado ou alugá-lo a um inquilino, até que o arrendamento de 99 anos expire.

Conjuntos habitacionais do HBD, Singapura
Conjuntos habitacionais do HBD. (Imagem: Shermanhojw/Pixabay)

Embora Haila não tenha encontrado evidências de que os legisladores de Singapura estudaram Henry George, ela e outros apontaram que seu sistema oferece alguns dos benefícios de reduzir as rendas para os proprietários de terras. Em seu clássico Progress and Poverty, George argumenta que as rendas sobre a terra causam pobreza porque o monopólio dos proprietários sobre suas propriedades lhes permite aumentar os aluguéis quando há aumento na procura.

Ele postula que as rendas sobre a terra impedem que os salários de muitos trabalhadores subam acima do nível de subsistência. Em Singapura, onde a propriedade de terras do governo impede a captura de rendas sobre a terra por indivíduos, os formuladores de políticas tinham uma hipótese contraditória: a de que manter habitação a preços acessíveis também teria o efeito de manter os salários baixos, com a mão de obra acessível tornando Singapura uma oportunidade de investimento atraente para empresas estrangeiras.

Singapura tem sucesso na acessibilidade à moradia?

Sim e não. O apartamento médio em Singapura custa U$ 408.000, 4,6 vezes a renda mediana. Isso o coloca no mesmo nível de Salt Lake City, um nível de acessibilidade que Demographia categoriza como “seriamente inacessível,” mas mais acessível do que muitas cidades costeiras nos EUA, onde a proporção chega a 8,5, como em San Jose.

O financiamento habitacional em Singapura torna a habitação acessível a muitas famílias a preços ainda mais baixos. A HDB, fornecedora da maior parte das moradias da cidade-estado, desenvolve moradias em uma faixa de preço acessível a famílias de diferentes níveis de renda, desde estúdios para idosos a apartamentos de três quartos e apartamentos “executivos” de alto padrão. A HDB oferece novos apartamentos aos compradores a taxas subsidiadas, com limites de receita para várias novas unidades.

Singapura exige contribuições para contas de poupança individuais, exigindo que os trabalhadores contribuam com 20% de seu pagamento para contas individuais no Fundo de Previdência Central (CPF). Os empregadores são obrigados a contribuir com um adicional de 17% dos salários. As pessoas físicas podem usar os fundos de suas contas do CPF para ajudar a financiar um adiantamento e o pagamento mensal da hipoteca.

Política habitacional em Singapura

A abordagem do governo da cidade-estado de Singapura para desenvolvimento urbano contrasta fortemente com a maneira como as localidades em regiões muito mais caras usaram o zoneamento para restringir a oferta de moradias. A Singapore Land Authority (SLA) lida com o planejamento do uso da terra e administra as terras do estado. Haila escreve:

“Em 2011, a SLA revelou uma nova visão, Limited Land, Unlimited Space, incorporando ‘a noção de que a escassez de terras em Singapura não deve ser uma restrição. Em vez disso, é uma oportunidade para maior inovação e criatividade no uso da terra.’”

Depois de os residentes terem vivido no apartamento subsidiado que adquiriram por pelo menos cinco anos, eles têm o direito de vender o apartamento pelo valor de mercado. Ao longo de sua vida, os residentes podem comprar duas unidades subsidiadas da HDB, podendo revender a preços de mercado, muitas vezes refletindo uma valorização substancial.

Assim, como em países que não dependem tanto de habitação pública, os constituintes dos formuladores de políticas de Singapura têm interesses conflitantes. Os compradores de casas querem que os preços permaneçam mais baixos, enquanto os proprietários querem ver maior valorização.

A SLA e a HDB trabalham para garantir oportunidades consistentes de desenvolvimento e reconstrução na ilha para evitar que as restrições habitacionais resultem em preços inacessíveis. Em relação às cidades dos EUA hoje, o modelo de Singapura é mais parecido com o desenvolvimento urbano de cidades americanas de rápido crescimento anterior às leis de zoneamento.

Vista aérea de Singapura
Vista aérea de Singapura. (Imagem: William Cho/Flickr)

Antes que as leis de zoneamento locais limitassem o desenvolvimento, as cidades americanas, que cresceram rapidamente, eram caracterizadas tanto pelo desenvolvimento acelerado de novas áreas periféricas quanto pelo rápido desenvolvimento de locais centrais. De forma surpreendente, Haila nega que o zoneamento desempenhe um papel nos altos custos de habitação:

“Os altos preços dos terrenos e as autoridades de zoneamento costumam ser responsabilizados por moradias de preços elevados. No entanto, os preços das casas não são altos porque os terrenos são caros, mas o oposto: os preços das casas determinam os preços dos terrenos, como explica a teoria do aluguel.

A razão para a oferta insuficiente de terrenos e os altos preços das casas não é porque as autoridades de planejamento zoneiem muito pouco terreno residencial, mas que o monopólio torna a terra escassa e convida à especulação.”

Haila está certa ao afirmar que a demanda por moradias é um fator determinante dos preços dos terrenos, mas o zoneamento também é um fator determinante tanto dos preços dos terrenos quanto dos preços das casas.

Haila argumenta que antes dela, os cientistas sociais não conseguiram estudar a importância dos direitos de desenvolvimento da terra, contudo, economistas urbanos e outros cientistas sociais estudaram extensivamente os efeitos dos direitos de desenvolvimento sob o zoneamento. Em nível regional, há uma ampla evidência que indica que os regulamentos de uso da terra reduzem a elasticidade da oferta de habitação e levam a preços elevados quando atendidos com alta demanda de habitação.

Ao contrário dos EUA, onde muitas localidades usam o zoneamento como uma ferramenta para limitar severamente a construção e inflar os preços das casas, um ponto chave para o sucesso do modelo de Singapura é permitir um fluxo constante de novos empreendimentos para manter o acesso à habitação.

Chinatown
Chinatown, Singapura. (Imagem: Choo Yut Shing/Flickr)

Segundo Haila, é a especulação imobiliária que causa os altos preços das casas, incentivando os proprietários a subutilizar a terra antecipando futuros aumentos de preços. Ela culpa os aumentos especulativos no preço das casas sobre aqueles que compram terras ou casas que mantêm vagas. No entanto, as taxas de vacância em cidades de alto custo, incluindo Singapura, são geralmente muito baixas.

Especulação significa, simplesmente, comprar um ativo com a expectativa de que valha mais no futuro. Os proprietários-ocupantes estão especulando quando compram casas em cidades com altas taxas de preço de aluguel, em vez de alugar, quando os preços atuais fazem o aluguel parecer o melhor negócio.

Os singapurianos certamente compram apartamentos HDB com o aumento do preço dos ativos em mente. Como disse o primeiro-ministro Lee Hsien Loong, “o apartamento HDB não é apenas um abrigo, mas também um ativo de investimento importante […] a longo prazo, o valor dos apartamentos HDB depende da força da economia de Singapura. Desde que Singapura continue indo bem, nossos apartamentos manterão seu valor, e os singapurianos podem desfrutar de um ativo em valorização.”

No entanto, a política projetada para garantir o desenvolvimento e a oferta de novas moradias em Singapura limitou os ganhos à especulação em relação aos ganhos inesperados que os proprietários de casas nas caras regiões costeiras dos Estados Unidos receberam. Em comparação com os EUA, em Singapura, o acesso de novos compradores desempenha um aspecto mais importante na política de habitação.

Noah Smith argumenta que Singapura “fez um trabalho melhor do que os Estados Unidos no uso de moradias para construir e transferir riqueza entre gerações. […] Como o governo administra o fornecimento de novas casas, pode garantir que os jovens tenham um retorno decente quando se aposentarem.”

E esta é a linha que o SLA e o HDB têm tentado trilhar. Haila explica que os legisladores de Singapura têm como meta uma taxa de arrendamento do banco de terrenos do país para manter uma taxa de valorização do preço da casa que ofereça ganhos aos compradores de apartamentos HDB subsidiados, mas para evitar um nível de valorização que colocaria novas compras fora do alcance de muitos cidadãos.

Quem perde nesse sistema?

A linha que separa a promoção de acessibilidade econômica e a construção de riqueza é difícil. Embora o modelo de Singapura atenda bem a muitas famílias, ao equilibrar o acesso aos apartamentos HDB subsidiados com uma valorização constante, o sistema não atende bem a todos.

Crucialmente, dos 5,6 milhões de habitantes de Singapura, cerca de um quinto não é de cidadãos ou residentes. Esses trabalhadores estrangeiros geralmente são excluídos do sistema HDB, embora Haila indique que algumas exceções foram feitas em um esforço para atrair trabalhadores estrangeiros qualificados.

Mais de 300.000 trabalhadores imigrantes sem acesso a apartamentos HDB vivem em dormitórios lotados e sujos com até 80 pessoas compartilhando um único banheiro. As condições de moradia para esses trabalhadores de baixa renda em Singapura são muito piores do que para o trabalhador de baixa renda típico nas cidades dos EUA, com níveis comparáveis ​​de acessibilidade para pessoas com renda média. Singapura está enfrentando atualmente um surto de COVID-19 de dez milhares de casos, quase todos entre trabalhadores estrangeiros que vivem em dormitórios.

A disponibilidade de moradias de baixa qualidade para habitantes de baixa renda é essencial para comunidades oferecerem oportunidades econômicas para todos. Mas no sistema de Singapura, onde o SLA determina quantos e onde trabalhadores estrangeiros podem viver, nenhum processo de mercado disciplina a provisão de habitação que equilibra o custo-benefício com o desejo, em termos de localização ou qualidade.

Conjunto habitacional do HDB
Conjunto habitacional do HDB. (Imagem: Ken, Ying Xu/Flickr)

Em um sistema em que a terra vai para aqueles que desejam pagar mais, aqueles que desejam viver em moradias mais densas podem superar os que desejam casas maiores e mais luxuosas. Mas esta não é uma opção em Singapura e, em vez disso, a política de habitação para trabalhadores estrangeiros foi amplamente moldada pelo NIMBYismo (“Not In My Back Yard”) dos cidadãos e residentes em relação aos trabalhadores estrangeiros.

O sistema de Singapura também é projetado para encorajar o casamento heterossexual, a criação de filhos e a moradia junto à família extensa. Para aqueles que desejam viver em arranjos alternativos, o HDB oferece muito menos benefícios.

Embora os singapurianos casados ​​se tornem elegíveis para comprar apartamentos HDB aos 21 anos, os solteiros não podem comprar até os 35 anos e o casamento gay não é permitido. Notavelmente, a política de habitação de Singapura até agora não aumentou a fertilidade com sucesso, a taxa de fertilidade total de Singapura está abaixo de 1,2, uma das mais baixas do mundo.

As preocupações com os valores dos apartamentos antigos também estão aumentando dado que os idosos contam com o valor da casa para ajudar a financiar sua aposentadoria, e ainda assim os preços dos apartamentos mais antigos inevitavelmente caem à medida que o prazo de arrendamento se aproxima. No final de um contrato de 99 anos, o terreno e suas benfeitorias voltam à propriedade de SLA sem compensação para os proprietários dos apartamentos.

Em 1995, o governo de Singapura estabeleceu um programa chamado Selective En bloc Redevelopment Scheme (SERS), ou “Esquema de Reestruturação em Bloco Seletivo” sob o qual o governo assume prédios para reforma antes do vencimento de seu aluguel de 99 anos, compensando os residentes de apartamentos adquiridos através da HDB e oferecendo-lhes uma chance de compra no novo empreendimento que vai ocupar o seu lugar.

O ministro do Desenvolvimento Nacional, Lawrence Wong, contudo, pediu aos proprietários de apartamentos HDB não contarem com esta opção, já que a SERS só funcionou para 4% dos proprietários de apartamentos até agora.

Haila argumenta que “Singapura resolveu o problema da habitação”, mas isso certamente não é verdade para aqueles excluídos do sistema HDB, ainda que o sistema permita à maioria dos cidadãos a oportunidade de entrar no mercado imobiliário e vender seu imóvel com retorno razoável. Singapura desenvolve (e redesenvolve) suas terras para garantir a disponibilidade e a acessibilidade a apartamentos para as pessoas que o sistema foi projetado para servir.

Artigo publicado originalmente em Market Urbanism em 2 de agosto de 2020. Traduzido por Marcella Cutrim Fernandes de Souza.

Sua ajuda é importante para nossas cidades.
Seja um apoiador do Caos Planejado.

Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.

Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.

Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.

Quero apoiar

LEIA TAMBÉM

O “Novo” Velho Rio Pinheiros

Despoluição, ampliação das ciclovias e criação de espaços públicos e privados nas margens do Rio Pinheiros são avanços importantes. Contudo, o difícil acesso e a falta de integração ao entorno ainda representam enormes desafios para que a população se reaproprie da orla de um dos principais rios de São Paulo.

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.