Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Confira a análise de Anthony Ling sobre os argumentos do vídeo "How tto Make an Attractive City", publicado pela School of Life de Londres.
26 de março de 2015Recentemente circulou pelas redes sociais o vídeo “How to Make an Attractive City” (“Como fazer uma cidade atraente”, tradução livre) publicado pela School of Life de Londres. Muito bem apresentado e com uma mensagem relativamente alinhada com grande parte mainstream do planejamento urbano atual, o vídeo recebeu muitos compartilhamentos e praticamente nenhuma crítica. Uma oportunidade perfeita para o texto que segue abaixo.
O vídeo é dividido em seis partes, premissas que o autor do vídeo sugere serem indispensáveis para tornar uma cidade atraente. Vamos tratar cada uma delas de forma independente e depois analisar a conclusão do autor em uma seção final.
O autor argumenta que uma cidade deve estabelecer regras simples que possam ordenar esteticamente uma cidade sem produzir uma uniformidade excessiva. Partindo dos argumentos de Alain Bertaud ou Paul Romer, pode fazer sentido manutenção de uma certa ordem de planejamento de infraestruturas básicas para deixar livre a construção em terrenos privados. No entanto, o video não se refere a isso, propondo legislar sobre a forma arquitetônica das edificações.
Este primeiro princípio é justificado a partir da premissa de que “é o que humanos adoram”. No entanto, embora o autor do vídeo certamente adore esse resultado, é impossível afirmar que todos os humanos possam adorar um determinado tipo de estética urbana gerada por uma regra criada por um urbanista. Isto é ainda menos convincente quando esta regra restringe a densidade demográfica ao limitar a área construída de um determinado terreno e aumenta os custos de moradia, pois são alguns dos resultados negativos deste tipo de política: a suposta beleza não é gratuita.
Neste mesmo item, o vídeo também erra ao falar que os arrannha-céus de Londres são planejados de forma organizada. Na realidade, eles são baseados na conservação de visuais estabelecidas quase 200 anos atrás e que hoje não tem relação nenhuma com a cidade, como reportou a revista The Economist no ano passado.
O vídeo quando argumenta que cidades cheias de vida nas ruas são mais atraentes. É claro pois, literalmente, há pessoas andando nas ruas da cidade, mostrando sua preferência por estarem vivendo o espaço público. No entanto, o vídeo se contradiz quando primeiro fala que Hong Kong é um exemplo de cidade com vida de rua visível, e depois contrasta essa característica com cidades com arranha céus, que aparentemente não teriam condições de ter vida na rua. Ou seja, não necessariamente uma cidade com “torres comerciais anônimas” gera uma cidade com pouca vida de rua. Nova York, Hong Kong, Tóquio e City of London são apenas alguns exemplos que possuem ambas características.
Muito se incentivou a suburbanização, principalmente nos Estados Unidos, via políticas públicas. Foram subsídios de grandes rodovias e de escolas públicas de qualidade nos subúrbios; financiamentos especiais para a compra de residências unifamiliares; restrições de tamanhos mínimos de lote e de recuos de jardim e apoio estatal à indústria automobilística e do petróleo. Isso gerou uma forma de urbanização extremamente ineficiente e única no planeta. Cidades compactas, que normalmente surgem de forma espontânea como os antigos centros urbanos brasileiros, tem deslocamentos menores, diminuindo a dependência do automóvel individual e aumentando a vida na rua.
É verdade que pessoas tem preferências por formas urbanas diferentes, e uma cidade atraente é aquela que consegue atender um grande espectro de preferências por forma urbana. No entanto, é perigoso determinar qualquer tipo de forma urbana específica para a cidade como um todo, mesmo que se a proposta seja uma mescla entre modelos diferentes. Apesar de podermos controlar tais diretrizes na escala de empreendimentos e de bairros, diretrizes em escala municipal baseadas na forma podem gerar distorções justamente por causa da variabilidade de preferências de cada cidadão. Por ser impossível o acesso às preferências imediatas de todos que participam da cidade, o planejador não tem condições de estabelecer uma quantia ideal na proporção de orientação e de mistério como sugere o vídeo. Em uma cidade verdadeiramente orgânica e complexa esses resultados surgem de forma espontânea e descentralizada.
Aqui o autor parte da seguinte premissa do Joseph Campbell: “Se você quer ver no que uma sociedade realmente acredita, olhe para quais são os maiores edifícios do horizonte”, dizendo em seguida que não valorizamos coletivamente corporações de calçados esportivos, consultores tributários, a indústria do petróleo ou empresas farmacêuticas, como alguns exemplos. Mas será que isso é verdade, na prática? Um cidadão de bem pode até dizer que não valoriza tais corporações, mas diariamente ele é um consumidor de calçados, paga seus impostos, queima combustível e usa produtos plásticos e, quando fica doente, toma remédios. Através das ações de todos os cidadãos que agem desta forma uma preferência é de fato revelada, pela valorização destes produtos e serviços. O vídeo, assim, mostra um desentendimento de o que significa a complexidade de uma economia, e de como as preferências da sociedade são manifestadas na sociedade.
Altos prédios comerciais também raramente são destinados a um único uso. São neles onde estão as empresas que produzem os computadores que usamos, os aviões em que viajamos ou o leite que tomamos no café da manhã. Uma cidade assim reflete a valorização social de uma complexa rede descentralizada e voluntária que gera os produtos e serviços que deixam nossas vidas mais agradáveis.
Dando sequência ao seu argumento, o autor defende a preservação das vistas e a limitação da altura das edificações em cinco andares. No entanto, esta própria regra é um paradoxo: se alguém construir um edifício de quatro andares, um edifício de cinco andares certamente bloqueará a vista do edifício menor. Sendo ainda mais explícito com esta lógica, é evidente perceber que uma casa de um andar tem condições de bloquear a vista de outra casa de um andar, sendo a defesa de vistas, na verdade, indefensável quando se discute a cidade.
Seja como for, não é razoável limitar uma determinada cidade em cinco andares. A altura das cidades antigas as quais o vídeo se refere não era definida por regras de urbanismo, mas simplesmente pela inexistência do elevador. Neles, os andares mais altos eram sempre os mais baratos, não os mais caros como são hoje, pois eram os mais difíceis de serem acessados. A limitação de cinco andares propõe uma limitação de oferta imobiliária arbitrária, um impacto negativo muito mais palpável do que a “sensação de insignificância” mencionada pelo autor.
O autor argumenta que edifícios não devem parecer iguais a outros de outro lugares do mundo, pois suas viagens se tornam mais chatas e porque cada local tem clima, necessidades, pontos positivos e negativos diferentes. Ele defende que a cidade deve ter um forte caráter local, utilizando formas e materiais locais.
Isso é verdade principalmente no mercado imobiliário comercial da América Latina, onde se construiu e ainda se constrói muitas torres envidraçadas completamente inadequadas para o clima tropical. São obras que tentam imitar cidades de clima temperado, onde o “efeito estufa” produzido pelo vidro enclausurado gera benefícios ambientais, e não inflam contas de ar condicionado de forma desnecessária como fazem por aqui. Construtores devem sim reconhecer este problema e desenvolver soluções locais mais adequadas, sem imitar referências construtivas de forma ineficiente.
No entanto, devo discordar no tangente às formas e materiais locais. Formas estéticas e arquitetônicas — aqui tentando abster a técnica construtiva propriamente dita — sempre foram globalizadas, sendo influenciadas por diferentes culturas e ideias. Assim, é impossível determinar que uma determinada forma é puramente ligada a um determinado local. Faço o mesmo argumento para os materiais locais: dificilmente os materiais disponíveis localmente são os que vão produzir o melhor resultado para uma edificação, e isso vale para qualquer produto. É impossível imaginar um lápis, um objeto único e relativamente simples, ser produzido com materiais locais, muito menos uma cidade inteira. Os exemplos antigos dados pelo autor de uso de materiais locais foram construídos por falta de opções, não por preferência estética ou funcional. O único exemplo contemporâneo mencionado pelo autor, o arquiteto Glenn Murcutt, não utiliza materiais locais e é extremamente questionável afirmar que ele desenha uma “arquitetura australiana”, dada a subjetividade dessa interpretação.
Ao final o video afirma que os principais desafios para implementar estas ideias são a ausência de vontade política e uma confusão intelectual sobre estética. Esta foi uma das mensagens mais perigosas passadas pelo vídeo. Ele diz que é possíel afirmar o que é inerentemente bonito ou feio, enquanto a realidade prova o contrário. Eu mesmo conheço pessoas que acham lindas as torres de vidro criticadas pelo autor. Outras que acham que as favelas são a expressão mais incrível e espontânea que a humanidade já criou. Há outras ainda que acham Paris linda e romântica, e outras que a acham monótona.
O argumento utilizado de estatísticas de turismo é simplesmente falso. Dubai, Singapura, Nova York e Hong Kong estão entre as 10 cidades mais visitadas do mundo e representam estéticas e formas urbanas opostas à opinião do vídeo. Além disso, minha própria experiência pessoal contraria o exemplo que ele deu de que ninguém nunca tirou férias em Frankfurt, pois tive a oportunidade de passar três dias nesta cidade alguns anos atrás e achei a cidade maravilhosa.
A partir dessas premissas, o vídeo faz um ataque final aos incorporadores imobiliários, que de forma egoísta lutariam para deixar a cidade cada vez mais feia. Infelizmente o mundo não é feito de flores. Alguns incorporadores investem em arquitetos renomados para atender nichos de moradores e de clientes, mas que estão dispostos a pagar a mais pela sua preferência estética. No entanto, são poucas as pessoas que tem condições de sustentar este luxo, dado que moradia normalmente é o maior gasto da vida de uma pessoa e é tornada cada vez mais cara pelas próprias regulações que o vídeo defende. O exemplo do próprio autor de New Town, em Edimburgo, torna isso evidente, pois o bairro é um dos mais caros da cidade (e, ironicamente, um dos com menos vida urbana por causa do zoneamento residencial).
O vídeo novamente se contradiz quando argumenta que a cidade não pode ser determinada por um mercado imobiliário livre, pois grande maioria das cidades citadas ao longo do vídeo foram, efetivamente, construídas a partir de um mercado imobiliário muito mais livre do que existe hoje. Isso vale para todas as cidades medievais, os bairros antigos de Londres, o Marais de Paris (o que sobrou da reforma de Haussman), com exemplos adicionais de Hong Kong, Nova York e os próprios centros históricos das cidades brasileiras.
Ao entendermos a cidade como ambiente complexo devemos nos desprender da tentativa de normatizar nossos interesses pessoais na forma urbana. As conclusões finais do vídeo, clamando por controle estatal e a rígida normatização do ambiente urbano é tão perigosa e de mesmo fundamento que o fracassado planejamento de Brasília e de qualquer princípio urbano modernista, pois vê a cidade como um espaço físico passível de modelagem pelo planejador. A cidade deve ser o resultado da ação espontânea e voluntária entre todos seus habitantes, e não de um comitê político que determina o que é certo, errado, bonito ou feio, sendo esta última alternativa é a receita perfeita para o caos planejado.
Esta postagem foi editada pelo autor em 28 de março de 2015.
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