3 maneiras em que o aumento da oferta de moradia reduz os preços
Quando a oferta aumenta mais que a demanda; quando há adensamento; e quando ocorre um processo de filtragem.
Entendendo o que esse conceito realmente significa a partir de diferentes perspectivas.
18 de dezembro de 2025O termo “cidade inteligente” tem sido repetido exaustivamente nas últimas duas décadas, sendo hoje uma ideia tão difundida quanto controversa, mesmo que não saibamos exatamente o que significa. Assim como “cidade criativa”, “cidade sustentável” ou “cidade resiliente”, trata-se de um conceito performático mobilizado por governos, empresas e organismos internacionais em disputas narrativas sobre os rumos do desenvolvimento urbano. A polissemia reflete a diversidade de atores e de interesses que o empregam, produzindo convergências em torno da centralidade das tecnologias digitais, e divergências quanto à sua finalidade, legitimidade e impactos.
Longe de ser um conceito neutro, cidade inteligente é um campo de batalha discursiva. Empresas de tecnologia utilizam-no para justificar investimentos em infraestrutura digital e vender novos equipamentos e novos métodos de digitalização da gestão urbana. Governos mobilizam-no para estruturar programas de modernização urbana tendo a política como pano de fundo. Acadêmicos criticam-no como gestão urbana tecnocrata. E, por vezes, movimentos sociais buscam ressignificá-lo a partir de práticas coletivas. Trata-se, então, de um conceito em disputa em que diferentes narrativas coexistem, competem e se sobrepõem.
Almejando algum esclarecimento, e inspirado pela oportunidade de ministrar uma disciplina chamada “Smart cities” a um grupo de franceses que vêm anualmente ao Brasil fazer intercâmbio em comércio exterior, proponho que a ideia de cidades inteligentes seja interpretada a partir de cinco perspectivas: utópica, mercadológica, orientada por dados, estatal e humanista.
Leia mais: Existe algo de “inteligente” nas cidades inteligentes?
Desde os anos 1960, visões futuristas marcam a imaginação sobre cidades tecnologicamente avançadas. Idealizações como as do Archigram, um grupo de arquitetos em Londres que propôs visões experimentais de cidade e tecnologia, já antecipavam a ideia de ambientes urbanos concebidos como laboratórios de experimentação para inovações técnicas. No entretenimento, Os Jetsons encarregaram-se de borrar noções tradicionais de dimensões físicas do espaço e do tempo na cidade.
No início do século 21, experiências reais como Songdo, na Coreia do Sul, e Masdar, nos Emirados Árabes Unidos, consolidaram o que se denomina de “urbanismo experimental” (test-bed urbanism). Essas cidades, concebidas como protótipos, prometem um futuro urbano limpo, eficiente e controlado por tecnologias digitais. O caráter utópico reside tanto na promessa de superar os problemas urbanos contemporâneos (poluição, congestionamentos, insegurança, dentre outros), quanto na idealização de uma governança racional, desprovida de conflitos. Contudo, tais cidades-laboratório ignoram dimensões sociais e políticas, reproduzindo espaços excludentes, voltados a elites globais e distantes das realidades majoritárias. A utopia tecnológica, nesse sentido, revela-se um dispositivo discursivo que mais projeta desejos corporativos e estatais do que responde às complexidades urbanas reais.

Um dos vetores de difusão do termo “cidades inteligentes” foi o protagonismo de corporações globais de tecnologia, em especial a IBM. Em 2011, a empresa registrou a marca “Smarter Cities” (cidades mais inteligentes) e lançou uma campanha global para divulgar o conceito atrelado a seus produtos de soluções tecnológicas integradas. Nessa narrativa, a cidade inteligente aparece como um imperativo moral e técnico, capaz de converter problemas urbanos complexos em desafios de engenharia resolvíveis por softwares e sensores. A consequência é a tentativa de posicionar as empresas como ponto de passagem obrigatória na gestão urbana, monopolizando os caminhos possíveis para o futuro. Essa visão promove um tecnocratismo redutor, deslocando investimentos públicos para o setor de TI em detrimento de políticas sociais.
Um exemplo desse projeto é o Centro de Operações do Rio de Janeiro, idealizado como projeto piloto da IBM para sua visão empresarial de cidades inteligentes. Por outro lado, o Hipervisor Urbano de Curitiba apresenta uma estratégia tecnológica semelhante, mas sem a forte dependência de uma empresa estrangeira para implantação e gestão. Isso nos leva à próxima perspectiva.
Esta vertente está sobreposta à anterior, pois depende de tecnologias de mercado ao ser sustentada pela expansão da internet das coisas, da big data e da inteligência artificial. Tal orientação aposta na coleta e na análise massiva de dados urbanos como meio para promover eficiência, sustentabilidade e competitividade. Cidades seriam, assim, transformadas em organismos cibernéticos, capazes de aprender e se adaptar em tempo real.
Embora seja essencial uma gestão urbana baseada em dados e essa promessa contenha potencial de inovação, há riscos. A dependência crescente de fluxos massivos de dados introduz desafios de privacidade, segurança e governança. Além disso, a ênfase nos aspectos tecnológicos pode eclipsar dimensões fundamentais da vida urbana, como cultura, metabolismo social e governança democrática.
Leia mais: Cidades inteligentes começam com mapas confiáveis: o papel da Infraestrutura de Dados Espaciais
Além das corporações e dos discursos tecnocientíficos, a noção de cidade inteligente foi também apropriada por Estados nacionais como parte de estratégias de modernização e competitividade. Um caso paradigmático é o Smart Cities Mission, lançado pelo governo indiano em 2015, que investe em cem cidades inteligentes como vitrines de progresso.
Em outros contextos, programas nacionais de digitalização urbana seguiram lógicas semelhantes, mobilizando recursos públicos e alianças para implementar soluções tecnológicas. Esse enfoque evidencia como as cidades inteligentes são instrumentalizadas como política pública e narrativa de progresso. Contudo, também revela tensões: ao privilegiar grandes centros urbanos e investimentos em infraestrutura digital, corre-se o risco de aprofundar desigualdades regionais e negligenciar demandas básicas como o provimento de infraestrutura de água, esgoto e energia em favelas, sobretudo em países em desenvolvimento. O caráter “de cima para baixo” dessas iniciativas contrasta com a complexidade e a diversidade das cidades, limitando a capacidade de inclusão e participação cidadã.
Por fim, uma aproximação crítica desloca o olhar da tecnologia para as práticas sociais que configuram a cidade. Essa vertente entende a cidade inteligente não como produto acabado de tecnologias corporativas, mas como processo aberto de apropriação cidadã da inovação.
Exemplos variam de plataformas colaborativas de mobilidade a iniciativas de monitoramento comunitário de riscos ambientais, passando pelas práticas de urbanismo tático, dentre as quais destaco as recifenses. Desde 2021, a cidade implementa intervenções com participação dos moradores na definição de prioridades. Essas ações, como a criação de travessias seguras, novas áreas de convivência e redesenho sutil do espaço viário, buscaram testar soluções rápidas e de baixo custo para melhorar a mobilidade e a qualidade urbana. Nessas práticas, a inteligência urbana emerge da agência coletiva dos habitantes recolocando a dimensão política e social no centro do debate, e lembrando que a cidade inteligente só será inclusiva se for também democrática.
*
O percurso das cinco perspectivas permite concluir que cidade inteligente é uma noção flutuante apropriada por diferentes atores para projetar futuros urbanos legitimados pelo poder do Estado, mesmo que não ofereçam contribuições reais para cidadãos comuns. Reconhecer essa disputa ajuda a pensar os rumos do urbanismo contemporâneo. Se “cidade inteligente” pode significar múltiplas coisas, é porque traduz a própria complexidade das cidades, em que projetos globais, interesses corporativos, políticas nacionais e práticas locais se entrelaçam. A questão central não é, portanto, se as cidades devem ou não ser inteligentes, mas quem define a noção de inteligência urbana? Quem legitima? A serviço de quais interesses e com quais efeitos sociais e territoriais essas políticas avançam?
A sugestão que deixo é de que, mais do que instalar dispositivos tecnológicos pela cidade, os interessados em cidades inteligentes pensem em soluções locais, táticas, tendo a tecnologia como um meio, mas não como a única saída para tratar de problemas urbanos.
Rafael Kalinoski é Professor de Urbanismo no Centro Universitário de Tecnologia de Curitiba e na Escola de Administração Pública da Prefeitura Municipal de Curitiba. É arquiteto e urbanista, mestre em planejamento urbano e doutor em gestão urbana. Atua como pesquisador visitante na PUCPR, e como consultor no escritório de arquitetura novaiorquino Rawlins Design.
Para aprender mais sobre urbanismo, conheça o curso “Do Planejamento ao Caos“!
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarQuando a oferta aumenta mais que a demanda; quando há adensamento; e quando ocorre um processo de filtragem.
Confira nossa conversa com Kátia Mello e Andressa Capriglione sobre o Moradia Primeiro, uma estratégia de transformação social para lidar com a população em situação de rua.
Promoções e praticidade do comércio eletrônico podem esconder impactos negativos da modalidade para a vida urbana das grandes cidades.
Segundo pesquisa, a sinalização voltada a motociclistas não pode ser considerada a causa principal para a queda no número de acidentes na capital paulista.
O crescimento urbano do Rio de Janeiro proporcionou encontros, produtividade e novas ideias.
Quer saber se uma cidade está prosperando? Comece com uma ida ao banheiro.
Confira nossa conversa com o professor André Dias e a fundadora do projeto Mãos Invisíveis, Vanessa Lima, sobre os desafios para lidar com as pessoas em situação de rua no Brasil.
O controle que as organizações criminosas exercem sobre territórios informais no Brasil está ligado à configuração desses espaços e ao planejamento urbano.
O gradil foi instalado sem qualquer consulta pública, sem projeto técnico e interfere radicalmente no acesso e na visibilidade do local. Cercar é a representação máxima de uma visão de cidade excludente.
COMENTÁRIOS