O que faz de uma cidade “inteligente”?
Foto: Daniel Castellano/SMCS

O que faz de uma cidade “inteligente”?

Entendendo o que esse conceito realmente significa a partir de diferentes perspectivas.

18 de dezembro de 2025

O termo “cidade inteligente” tem sido repetido exaustivamente nas últimas duas décadas, sendo hoje uma ideia tão difundida quanto controversa, mesmo que não saibamos exatamente o que significa. Assim como “cidade criativa”, “cidade sustentável” ou “cidade resiliente”, trata-se de um conceito performático mobilizado por governos, empresas e organismos internacionais em disputas narrativas sobre os rumos do desenvolvimento urbano. A polissemia reflete a diversidade de atores e de interesses que o empregam, produzindo convergências em torno da centralidade das tecnologias digitais, e divergências quanto à sua finalidade, legitimidade e impactos.

Longe de ser um conceito neutro, cidade inteligente é um campo de batalha discursiva. Empresas de tecnologia utilizam-no para justificar investimentos em infraestrutura digital e vender novos equipamentos e novos métodos de digitalização da gestão urbana. Governos mobilizam-no para estruturar programas de modernização urbana tendo a política como pano de fundo. Acadêmicos criticam-no como gestão urbana tecnocrata. E, por vezes, movimentos sociais buscam ressignificá-lo a partir de práticas coletivas. Trata-se, então, de um conceito em disputa em que diferentes narrativas coexistem, competem e se sobrepõem. 

Almejando algum esclarecimento, e inspirado pela oportunidade de ministrar uma disciplina chamada “Smart cities” a um grupo de franceses que vêm anualmente ao Brasil fazer intercâmbio em comércio exterior, proponho que a ideia de cidades inteligentes seja interpretada a partir de cinco perspectivas: utópica, mercadológica, orientada por dados, estatal e humanista.

Leia mais: Existe algo de “inteligente” nas cidades inteligentes?

Perspectiva utópica

Desde os anos 1960, visões futuristas marcam a imaginação sobre cidades tecnologicamente avançadas. Idealizações como as do Archigram, um grupo de arquitetos em Londres que propôs visões experimentais de cidade e tecnologia, já antecipavam a ideia de ambientes urbanos concebidos como laboratórios de experimentação para inovações técnicas. No entretenimento, Os Jetsons encarregaram-se de borrar noções tradicionais de dimensões físicas do espaço e do tempo na cidade.

No início do século 21, experiências reais como Songdo, na Coreia do Sul, e Masdar, nos Emirados Árabes Unidos, consolidaram o que se denomina de “urbanismo experimental” (test-bed urbanism). Essas cidades, concebidas como protótipos, prometem um futuro urbano limpo, eficiente e controlado por tecnologias digitais. O caráter utópico reside tanto na promessa de superar os problemas urbanos contemporâneos (poluição, congestionamentos, insegurança, dentre outros), quanto na idealização de uma governança racional, desprovida de conflitos. Contudo, tais cidades-laboratório ignoram dimensões sociais e políticas, reproduzindo espaços excludentes, voltados a elites globais e distantes das realidades majoritárias. A utopia tecnológica, nesse sentido, revela-se um dispositivo discursivo que mais projeta desejos corporativos e estatais do que responde às complexidades urbanas reais.

Songdo, Coreia do Sul. Foto: Wikimedia Commons

Perspectiva mercadológica

Um dos vetores de difusão do termo “cidades inteligentes” foi o protagonismo de corporações globais de tecnologia, em especial a IBM. Em 2011, a empresa registrou a marca “Smarter Cities” (cidades mais inteligentes) e lançou uma campanha global para divulgar o conceito atrelado a seus produtos de soluções tecnológicas integradas. Nessa narrativa, a cidade inteligente aparece como um imperativo moral e técnico, capaz de converter problemas urbanos complexos em desafios de engenharia resolvíveis por softwares e sensores. A consequência é a tentativa de posicionar as empresas como ponto de passagem obrigatória na gestão urbana, monopolizando os caminhos possíveis para o futuro. Essa visão promove um tecnocratismo redutor, deslocando investimentos públicos para o setor de TI em detrimento de políticas sociais.

Um exemplo desse projeto é o Centro de Operações do Rio de Janeiro, idealizado como projeto piloto da IBM para sua visão empresarial de cidades inteligentes. Por outro lado, o Hipervisor Urbano de Curitiba apresenta uma estratégia tecnológica semelhante, mas sem a forte dependência de uma empresa estrangeira para implantação e gestão. Isso nos leva à próxima perspectiva.

Perspectiva orientada por dados

Esta vertente está sobreposta à anterior, pois depende de tecnologias de mercado ao ser sustentada pela expansão da internet das coisas, da big data e da inteligência artificial. Tal orientação aposta na coleta e na análise massiva de dados urbanos como meio para promover eficiência, sustentabilidade e competitividade. Cidades seriam, assim, transformadas em organismos cibernéticos, capazes de aprender e se adaptar em tempo real.

Embora seja essencial uma gestão urbana baseada em dados e essa promessa contenha potencial de inovação, há riscos. A dependência crescente de fluxos massivos de dados introduz desafios de privacidade, segurança e governança. Além disso, a ênfase nos aspectos tecnológicos pode eclipsar dimensões fundamentais da vida urbana, como cultura, metabolismo social e governança democrática.

Leia mais: Cidades inteligentes começam com mapas confiáveis: o papel da Infraestrutura de Dados Espaciais

Perspectiva estatal

Além das corporações e dos discursos tecnocientíficos, a noção de cidade inteligente foi também apropriada por Estados nacionais como parte de estratégias de modernização e competitividade. Um caso paradigmático é o Smart Cities Mission, lançado pelo governo indiano em 2015, que investe em cem cidades inteligentes como vitrines de progresso.

Ao privilegiar grandes centros urbanos e investimentos em infraestrutura digital, corre-se o risco de aprofundar desigualdades regionais e negligenciar demandas básicas como o provimento de infraestrutura de água, esgoto e energia em favelas.

Em outros contextos, programas nacionais de digitalização urbana seguiram lógicas semelhantes, mobilizando recursos públicos e alianças para implementar soluções tecnológicas. Esse enfoque evidencia como as cidades inteligentes são instrumentalizadas como política pública e narrativa de progresso. Contudo, também revela tensões: ao privilegiar grandes centros urbanos e investimentos em infraestrutura digital, corre-se o risco de aprofundar desigualdades regionais e negligenciar demandas básicas como o provimento de infraestrutura de água, esgoto e energia em favelas, sobretudo em países em desenvolvimento. O caráter “de cima para baixo” dessas iniciativas contrasta com a complexidade e a diversidade das cidades, limitando a capacidade de inclusão e participação cidadã.

Perspectiva humanista

Por fim, uma aproximação crítica desloca o olhar da tecnologia para as práticas sociais que configuram a cidade. Essa vertente entende a cidade inteligente não como produto acabado de tecnologias corporativas, mas como processo aberto de apropriação cidadã da inovação.

Exemplos variam de plataformas colaborativas de mobilidade a iniciativas de monitoramento comunitário de riscos ambientais, passando pelas práticas de urbanismo tático, dentre as quais destaco as recifenses. Desde 2021, a cidade implementa intervenções com participação dos moradores na definição de prioridades. Essas ações, como a criação de travessias seguras, novas áreas de convivência e redesenho sutil do espaço viário, buscaram testar soluções rápidas e de baixo custo para melhorar a mobilidade e a qualidade urbana. Nessas práticas, a inteligência urbana emerge da agência coletiva dos habitantes recolocando a dimensão política e social no centro do debate, e lembrando que a cidade inteligente só será inclusiva se for também democrática.

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O percurso das cinco perspectivas permite concluir que cidade inteligente é uma noção flutuante apropriada por diferentes atores para projetar futuros urbanos legitimados pelo poder do Estado, mesmo que não ofereçam contribuições reais para cidadãos comuns. Reconhecer essa disputa ajuda a pensar os rumos do urbanismo contemporâneo. Se “cidade inteligente” pode significar múltiplas coisas, é porque traduz a própria complexidade das cidades, em que projetos globais, interesses corporativos, políticas nacionais e práticas locais se entrelaçam. A questão central não é, portanto, se as cidades devem ou não ser inteligentes, mas quem define a noção de inteligência urbana? Quem legitima? A serviço de quais interesses e com quais efeitos sociais e territoriais essas políticas avançam?

A sugestão que deixo é de que, mais do que instalar dispositivos tecnológicos pela cidade, os interessados em cidades inteligentes pensem em soluções locais, táticas, tendo a tecnologia como um meio, mas não como a única saída para tratar de problemas urbanos. 

Rafael Kalinoski é Professor de Urbanismo no Centro Universitário de Tecnologia de Curitiba e na Escola de Administração Pública da Prefeitura Municipal de Curitiba. É arquiteto e urbanista, mestre em planejamento urbano e doutor em gestão urbana. Atua como pesquisador visitante na PUCPR, e como consultor no escritório de arquitetura novaiorquino Rawlins Design.

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