Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O zoneamento por performance tem uma abordagem mais flexível que o zoneamento exclusivo por uso, e sua implementação pode contribuir para ambientes urbanos mais dinâmicos.
29 de abril de 2024Ao longo do século XX, estruturou-se no planejamento urbano o zoneamento exclusivo por uso como a principal ferramenta para organização das cidades. Essa abordagem foi muito difundida pelo urbanismo modernista. Brasília, por exemplo, foi construída como uma grande organização em setores, cada um destinado a um uso específico. Esse modelo, embora tenha trazido certa ordem à expansão urbana, também apresentou limitações significativas, como a segregação espacial, o aumento da dependência do transporte motorizado e a falta de flexibilidade para lidar com mudanças dinâmicas nas necessidades urbanas.
Autores pioneiros como Jane Jacobs, Alain Bertaud e Richard Florida ressaltam a importância da diversidade econômica e de usos para o desenvolvimento sustentável das cidades. A mistura de usos e a presença de uma variedade de atores são elementos essenciais para a construção de ambientes urbanos dinâmicos, seguros e inclusivos. A fim de promover ambientes assim, temos atualmente, tanto na academia quanto nos escritórios de urbanismo e planejamento urbano, o crescente desenvolvimento e exploração de ferramentas que buscam, por meio da coleta e análise de dados geoespaciais, identificar padrões e tendências de uso e deslocamentos nas cidades, contribuindo para o planejamento urbano e a alocação de recursos de forma mais eficiente, para além de organizações baseadas em regras calcadas em ideologias.
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Em contraste com o zoneamento por uso, o zoneamento por performance vem ganhando cada vez mais defensores nos últimos quarenta anos, e oferece várias vantagens significativas para o planejamento urbano e o desenvolvimento sustentável da cidade. O conceito de zoneamento por performance tem suas raízes em uma abordagem mais flexível e adaptável ao planejamento urbano, tendo como obra-chave o livro “Performance Zoning”, de Lane Kendig, de 1980, que oferece uma base teórica para essa visão inovadora. No zoneamento por performance, as “regras” tradicionais de zoneamento são substituídas por critérios de desempenho, como qualidade do ar, eficiência energética, acessibilidade e qualidade de vida.
Ao invés de designar áreas específicas para usos fixos, o zoneamento por performance incentiva a inovação e a adaptação às necessidades em constante mudança da cidade. Isso encoraja o desenvolvimento de soluções criativas e sustentáveis para enfrentar desafios urbanos. O zoneamento por performance pode ser projetado para promover a sustentabilidade ambiental, social e econômica. Os requisitos de desempenho podem incluir metas de eficiência energética, padrões de construção verde, acesso a transporte público e espaços públicos de qualidade, etc.
Esse tipo de zoneamento já foi testado em várias cidades ao redor do mundo, oferecendo exemplos concretos de sua aplicação. Por exemplo, em Portland, Oregon, nos Estados Unidos, o zoneamento por performance foi introduzido como parte de um esforço para promover o desenvolvimento sustentável em escala urbana. Nesse modelo, os desenvolvedores são incentivados a atender a uma série de critérios de desempenho a depender da zona onde o lote está. No caso específico do livro de Kendig e em Portland, existem regramentos acerca da resistência de vedações ao calor por conta de possíveis incêndios em áreas residenciais, por exemplo.
De forma mais ampla, outros exemplos, como Vancouver, no Canadá, e Freiburg, na Alemanha, propuseram em seus planos diretores metas de sustentabilidade, como métricas de eficiência energética e emissão de poluentes a serem alcançadas até as próximas revisões. No caso brasileiro, é possível apontarmos o incentivo ao uso da fachada ativa, como foi o caso do PDE de São Paulo, como um exemplo de zoneamento por performance, uma vez que incentiva edifícios a terem usos no térreo que se relacionem diretamente com o ambiente urbano.
O zoneamento por performance também parece ser mais capaz de lidar com as mudanças dinâmicas nas necessidades e demandas da cidade ao longo do tempo. Os critérios de desempenho podem ser ajustados para refletir novos objetivos e prioridades, garantindo que o desenvolvimento urbano seja responsivo e adaptável. Esse zoneamento pode ajudar a reduzir os conflitos entre diferentes usos de terra, proporcionando uma estrutura mais holística e integrada para o planejamento urbano. Ele enfatiza a harmonização e a coexistência de atividades diversas.
A ideia, basicamente, é olhar para os impactos que os usos de determinada edificação têm no seu entorno, ao invés de focar no uso propriamente dito. Estipular limites máximos de ruído, tráfego e poluição visual, independente do uso, poderiam parecer utopias há quarenta anos, mas com o avanço de tecnologias de geoprocessamento, internet das coisas e sensoriamento remoto, não é difícil imaginar um futuro próximo no qual o zoneamento por performance fará ainda mais sentido.
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Em resumo, o zoneamento por performance oferece uma abordagem mais flexível, adaptável e sustentável para o planejamento urbano, promovendo o desenvolvimento de cidades mais resilientes e harmoniosas. Mesmo assim, ele ainda é uma solução pouco utilizada no Brasil. Não pode ser encarado como uma solução universal e de rápida aplicação, de fato, mas deveria ser mais discutido no nosso contexto local. O importante é que uma gestão democrática do território e da infraestrutura urbana integre princípios de diversidade, evidências empíricas e tecnologias de análise de dados, incluindo o geoprocessamento, o georreferenciamento, os SIG e a inteligência artificial. Ao adotarmos uma abordagem abrangente e colaborativa, podemos criar cidades mais inclusivas e dinâmicas, que respondem melhor às necessidades das pessoas.
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