Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Em tempos em que a política habitacional volta a ser discutida na esfera federal, é interessante lembrar que o Brasil já teve um programa que integrava as favelas com o restante da cidade por meio de intervenções urbanas
22 de março de 2023O crescimento da urbanização irregular é um problema persistente nas cidades brasileiras. Conhecidos como favelas, cortiços, vilas, ocupações ou aglomerados subnormais, estes assentamentos constituem o que chamamos de cidade informal. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, cerca de 50% dos imóveis do país não possuem documento ou registro formal. O problema é ainda mais grave quando consideramos que o processo de urbanização brasileiro continua em andamento, e nossas cidades devem receber mais 29 milhões de habitantes até 2050.
Segundo a pesquisadora Diana Motta, a habitação resultante desse processo é, em geral, não autorizada, de baixo custo e padrão de qualidade, situada em áreas restritivas à ocupação e sem infraestrutura urbana. Nos casos mais graves, isso se traduz em pessoas vivendo em edificações precárias, expostas a temperaturas extremas, sem saneamento básico, e sob risco de enchentes e desmoronamentos.
Em fevereiro de 2023, o governo federal relançou o programa Minha Casa, Minha Vida através da edição da MP 1162/23. Esse documento coloca como objetivo do MCMV promover a melhoria de moradias existentes para reparar as inadequações habitacionais. Prevê ainda a concepção da habitação em seu sentido amplo de moradia, com a integração das dimensões física, urbanística, fundiária, econômica, social, cultural e ambiental do espaço em que a vida do cidadão acontece.
Em tempos em que a política habitacional volta a ser discutida na esfera federal, é interessante lembrar que o Brasil já teve um programa que atendia esses objetivos. O programa Favela-Bairro foi uma iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro que teve início em 1994. O objetivo foi melhorar a qualidade de vida dos moradores de favelas, promovendo sua integração com o restante da cidade por meio de intervenções urbanas.
O programa Favela-Bairro incluiu a construção, nas favelas já existentes, de infraestrutura básica, como saneamento, água e esgoto, iluminação pública e pavimentação de ruas. Além disso, também foram construídas creches, escolas, postos de saúde, quadras esportivas e outros equipamentos públicos nas favelas. O programa foi um dos primeiros a romper com a lógica de remover favelas e transferir os moradores para lugares cada vez mais afastados.
Um dos marcos dessa mudança de mentalidade foi o Plano Diretor Decenal da cidade do Rio de Janeiro, publicado em 1992, que determinou expressamente a não remoção das favelas, bem como a sua transformação em bairros ou integração com os bairros em que se situam (Art. 44). Seguindo as orientações do plano, a Prefeitura do Rio de Janeiro criou o GEAP – Grupo Executivo de Assentamentos Populares. Esse grupo, coordenado pelo arquiteto Sérgio Magalhães, que foi entrevistado no Podcast #73 deste Caos Planejado, seria responsável pela criação do Favela-Bairro.
Obras entregues no Favela-Bairro Vidigal. (Imagens: Habitare)
Como explicam Alice Brasileiro e Cristiane Duarte, o programa começou com a realização de um concurso organizado pelo IAB/RJ – Instituto de Arquitetos do Brasil. Foram selecionadas 15 equipes multidisciplinares coordenadas por arquitetos para atuarem nas 15 primeiras favelas escolhidas pela Prefeitura para receberem a intervenção do Favela-Bairro. No total, foram atendidas 16 favelas, pois no Andaraí a própria Prefeitura executou o projeto-piloto do Favela-Bairro.
Tendo em mente a aplicação eficiente dos recursos, as primeiras favelas escolhidas para participar do programa tinham porte médio, entre 500 e 2500 domicílios. Prevaleceu o entendimento que atuar em favelas maiores traria custos muito altos e focar em favelas menores acarretaria na pulverização das ações.
Antes e depois das obras do programa Favela-Bairro. (Imagens: CAU-RJ)
Para viabilizar a primeira fase do programa, que durou até o ano 2000, a Prefeitura conseguiu recursos do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, que forneceu 180 milhões de dólares. Esse valor foi complementado por recursos da própria Prefeitura, que investiu 120 milhões de dólares.
Segundo Catherine Osborn, um orçamento idêntico foi destinado à segunda fase do Favela-Bairro, que foi realizada entre os anos 2000 e 2008. Com isso, o programa foi ampliado para atender mais de cem favelas.
Antes e durante as obras do programa Favela-Bairro na comunidade Jardim Primavera. (Imagens: Prefeitura do Rio de Janeiro)
O sucesso do Favela-Bairro foi reconhecido internacionalmente. A ONU passou a indicar o programa como um exemplo de combate à pobreza, e ele de fato inspirou programas semelhantes na Argentina, Uruguai, Equador, Bolívia e Colômbia.
Em 2020, o BID publicou um relatório sobre o impacto das intervenções realizadas nas duas primeiras fases do programa. O relatório aponta que a qualidade de vida da população melhorou logo após o término das obras, que ampliaram o acesso ao esgoto, iluminação pública, distribuição de correspondência e fornecimento confiável de água. Infelizmente, o relatório também aponta que a infraestrutura construída se degradou rapidamente.
Antes e depois das obras do programa Favela-Bairro na VIla Elza. (Imagens: Prefeitura do Rio de Janeiro)
Dez anos após o término da segunda fase, os pesquisadores relataram que algumas favelas atendidas pelo programa praticamente reverteram ao seu estágio original. Ao ser entrevistado em 2020, Sérgio Magalhães reforçou essa afirmação. Segundo o idealizador do programa, não houve uma política que garantisse a continuidade das ações e a manutenção da infraestrutura. Para ilustrar a situação, o arquiteto diz o seguinte:
“Vamos admitir fazer um paralelo singelo, paralelo muito simples. Nós temos uma favela, uma determinada comunidade, onde era raro ter infraestrutura. Nós a implantamos. Colocamos água, esgoto, drenagem, abrimos ruas, pavimentamos, criamos calçadas, iluminação pública, creche, escola, estação de tratamento de esgoto. Fizemos tudo isso. […]
Então,vamos admitir que feito esses serviços e os dois razoavelmente equilibrados, o governo só fique na favela e não faça nada em Ipanema. Então, por exemplo, em Ipanema, o [sistema de] esgoto estragou e o esgoto não vai ser tratado. A lâmpada queimou e não se refaz a iluminação. Aí começa um cara construindo na calçada e o governo não faz nada. Mas o governo faz tudo isso na favela. Em quanto tempo a favela será Ipanema e Ipanema será a favela?”
Entre os problemas, o relatório do BID relata a ação do crime organizado, que muitas vezes destruía o asfalto e a iluminação pública para dificultar o acesso às comunidades. Sérgio Magalhães também cita a não-continuidade dos POUSO – Posto de Orientação Urbanística e Social, que agiam como escritórios da Prefeitura dentro das favelas. Sem esses postos, a Prefeitura deixou de fiscalizar as construções irregulares, deixou de acompanhar a necessidade de reparos na infraestrutura, e deixou de receber informações sobre o avanço do crime organizado.
Favela Dois de Maio, no Engenho Novo. Em pouco tempo, o sistema de esgoto construído pelo Favela-Bairro passou a apresentar problemas. (Imagens: Rio on Watch)
Enquanto esteve em vigor, o programa Favela-Bairro trouxe ganhos reais para os moradores das comunidades. No Podcast #73, Sérgio Magalhães lembra que havia favelas muito isoladas, onde não havia acesso viário ou mesmo linhas telefônicas. Com o programa, profissionais como marceneiros, eletricistas, costureiras, etc, ampliaram largamente sua clientela. Em determinadas favelas, isso resultou em um crescimento exponencial do números de empregos e empresas registradas nessas áreas.
Além do ótimo resultado, é preciso destacar que o custo por família atendida, em torno de 2500 dólares, foi extremamente eficiente para uma política pública. Magalhães calcula que, ao todo, foram gastos entre 2 e 3 bilhões de reais no programa Favela-Bairro. Para efeito de comparação, o Minha Casa, Minha Vida consumiu cerca de 500 bilhões de reais, com pouco impacto na redução do déficit habitacional, tampouco na qualidade de vida das favelas do país.
O Favela-Bairro é um caso atípico de sucesso da política habitacional brasileira que, curiosamente, virtualmente desapareceu do debate público sobre programas habitacionais para baixa renda. Ao mesmo tempo, surge como referência global na transformação urbana de favelas a cidade de Medellín, na Colômbia, que tem implementado políticas similares às vezes chamadas de “urbanismo social”.
No entanto, parece ter caído no esquecimento o fato da cidade do Rio de Janeiro ter sido a verdadeira pioneira das medidas aplicadas em Medellín, que aprendeu com os resultados positivos do Favela-Bairro. Resgatando o legado deste programa, espera-se que não sejam gastos outros 500 bilhões em políticas habitacionais antes de levarmos a sério os erros e acertos do passado.
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