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As cidades são alguns dos objetos mais complexos de que se tem notícia. Nelas se encontram fenômenos físicos, químicos, biológicos, sociais e culturais estudados por diversas ciências e técnicas, como a geografia, as engenharias, a arquitetura, o urbanismo, a sociologia, a ciência política, a economia, o direito e a administração. Embora cada disciplina contribua para a compreensão do fenômeno urbano, nenhuma delas é capaz, isoladamente, de dar conta da realidade multifacetada da cidade, o que torna indispensável o diálogo e a busca de uma integração entre essas diversas abordagens.
A importância do elemento jurídico para o desenvolvimento urbano decorre do fato de que a cidade é produto da ação de diversos atores, cuja interação é regulada predominantemente por normas jurídicas. Proprietários, loteadores, incorporadores, locatários, concessionários de serviços públicos e órgãos públicos tomam decisões com base nos direitos de que dispõem, nos deveres a que estão obrigados, nos contratos legalmente admitidos e na atuação do Poder Judiciário em caso de violação dessas regras.
A particularidade da cidade enquanto fenômeno a ser juridicamente regulado deu origem ao direito urbanístico, ramo do Direito dedicado às relações que envolvem a construção, a conservação e o uso dos espaços urbanos públicos e privados. São objeto do direito urbanístico, por exemplo, o parcelamento do solo, o zoneamento e as obras públicas.
Um exemplo simples da presença do direito urbanístico no cotidiano da arquitetura e do urbanismo é o lote. Fisicamente, pode ser considerado um simples terreno. Juridicamente, trata-se de uma parcela do território pronta para receber uma edificação de dimensões preestabelecidas, que se conectará às redes de energia, água, esgotamento sanitário, telecomunicações e transporte, assegurando, assim, a prestação dos respectivos serviços aos futuros moradores.
Caberá ao arquiteto projetar essa edificação com observância de índices urbanísticos e normas de construção constantes do plano diretor e do código de obras e edificações. Do outro lado do balcão, caberá ao urbanista estabelecer esses índices e normas de modo a que as edificações, em conjunto com parques, praças, calçadas, ciclovias e ruas, resultem em um conjunto harmônico, saudável e agradável para seus moradores.
Em todos os temas urbanísticos, duas dimensões são sempre relevantes: a relação entre o poder público e os particulares e o processo pelo qual o poder público toma suas decisões.
Quanto ao primeiro aspecto, tanto há relações consensuais, como o parcelamento do solo, quanto impositivas, como a desapropriação. Entre as impositivas, algumas devem ser indenizadas, como a desapropriação, outras podem gerar a cobrança de tributos, como a contribuição de melhoria decorrente de obra pública, e outras ainda não geram obrigação financeira para nenhuma das partes, como o zoneamento.
A disciplina do processo de tomada de decisão por parte dos órgãos públicos visa assegurar que suas ações não sejam instrumento de favorecimento ou perseguição de terceiros e que contribuam efetivamente para a melhoria da qualidade de vida dos habitantes da cidade. Trata-se de saber não apenas quem tem competência para tomar determinada decisão, mas também com base em quais estudos preparatórios, pareceres e consultas públicas ela deverá ser fundamentada.
Nenhum dirigente político, investidor ou morador deve tomar decisões que envolvam o espaço construído sem levar em consideração as regras que organizam sua produção e seu uso. É preciso conhecer a situação fundiária e as restrições ambientais, urbanísticas e de preservação do patrimônio cultural que incidem sobre a área em questão.
Além disso, nenhuma análise de viabilidade financeira pode ser feita sem a correspondente análise de viabilidade jurídica. Muitos projetos geram benefícios urbanos, como a valorização de imóveis próximos, superiores ao seu custo, mas nem sempre existe um instrumento jurídico apto a captar esses benefícios e direcioná-los para o financiamento do projeto. Outros podem ter seu licenciamento urbanístico ou ambiental condicionado ao cumprimento de ônus, mitigações ou compensações, cujo custo não pode deixar de ser incluído na modelagem financeira.
Por fim, mas não menos importante, deve-se considerar que o Direito estabelece os incentivos econômicos e políticos que motivam os diversos agentes responsáveis pela construção das cidades. Maus incentivos produzem um desenvolvimento urbano de má qualidade. Boas instituições alinham os incentivos dos diversos agentes, de modo a produzir o melhor resultado agregado.
O papel decisivo das instituições para o desenvolvimento é bem conhecido. É o Estado de direito que, ao proteger o direito de propriedade e garantir o cumprimento dos contratos, gera a segurança jurídica necessária aos investimentos de longo prazo. Instituições deficientes levam os agentes econômicos a buscarem proteção e lucro por meio da corrupção, o que cria um estado de baixo investimento, ausência de concorrência, favorecimento e estagnação.
No desenvolvimento urbano, a situação não é diferente. A beleza e o conforto encontrados em cidades como Paris, Londres ou Barcelona não são fruto da riqueza dos respectivos países ou do maior preparo de seus arquitetos, engenheiros e urbanistas, mas de instituições que induzem os governos e empresários a fazerem uso das melhores técnicas urbanísticas e de engenharia, de maneira transparente e democrática. Ao mesmo tempo, coíbem a apropriação privada da valorização gerada por obras e normas públicas, permitindo, assim, que os investimentos públicos sejam financiados pela própria valorização imobiliária por eles gerada.
Embora o Brasil tenha muitas leis aplicáveis ao desenvolvimento urbano, federais, estaduais e municipais, sua qualidade deixa a desejar, especialmente quando comparada à legislação existente em países desenvolvidos, que é muito mais sistematizada e, por vezes, codificada. Além disso, a aplicação das leis existentes é deficiente, seja pelo desconhecimento do direito urbanístico pela maior parte dos operadores do Direito, seja pela falta de diálogo entre urbanistas, juristas e economistas.
A aplicação das leis existentes é deficiente, seja pelo desconhecimento do direito urbanístico pela maior parte dos operadores do Direito, seja pela falta de diálogo entre urbanistas, juristas e economistas.
Apesar das deficiências e da baixa efetividade da legislação brasileira, muito se avançou nas últimas décadas. A Constituição reconhece a existência do direito urbanístico e prestigia o planejamento urbano; marcos normativos importantes para o urbanismo, como o Estatuto da Cidade, o Estatuto da Metrópole e a lei da regularização fundiária, foram editados; políticas setoriais, como de saneamento, manejo de resíduos sólidos, defesa civil, mobilidade urbana e acessibilidade, foram institucionalizadas por meio de leis próprias; instrumentos inovadores, como a outorga onerosa do direito de construir e a operação urbana consorciada, foram incorporados à gestão pública; planos diretores foram elaborados e têm sido atualizados regularmente na maioria das cidades médias e grandes.
Não se deve, no entanto, ter grandes expectativas no curto prazo. As instituições, assim como as cidades, são legadas de uma geração para as seguintes. Grande parte das cidades em que vivemos foi construída nas décadas ou mesmo nos séculos anteriores, de acordo com a legislação da época. Da mesma forma, a cidade que estamos construindo hoje será usufruída principalmente pelas gerações futuras. Tenhamos esse senso de responsabilidade ao lidar com a legislação urbana!
Artigo publicado originalmente em Arq.Futuro em 7 de novembro de 2017.
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