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A cada dez anos, recenseadores do IBGE passam por todas as ruas do país contabilizando a população. Parte deste trabalho envolve verificar quais construções são utilizadas como moradia. Após retornar aos imóveis algumas vezes e fazer perguntas aos vizinhos, os agentes descobrem quais domicílios estão realmente em uso e quais se encontram vazios.
A partir dessa atividade indispensável ao Censo, surgem informações bastante relevantes: qual o estoque residencial existente e qual o estoque residencial vago, sem habitantes. Para quem tem interesse na questão habitacional, é irresistível comparar o montante vago de uma determinada localidade com seu déficit habitacional.
Por exemplo: em 2010, na Região Metropolitana de São Paulo, havia 651.701 domicílios vagos, enquanto nesse mesmo ano o déficit habitacional, segundo estimativa da Fundação João Pinheiro, era de 596.232 unidades — ou seja, 91,48% dos domicílios vagos. Como apontava Raquel Rolnik, há mais imóveis vazios que famílias sem moradia!
Mais irresistível ainda é imaginar uma simples solução para o déficit habitacional, alocando diretamente famílias que estão na fila por habitação de interesse social nas unidades vazias da cidade. Essa ideia sempre me fez lembrar a cena do filme “Doutor Jivago”, em que o personagem principal volta para sua mansão em Moscou após a revolução Bolchevique e descobre que sua casa havia sido compartilhada com outras famílias. A Camarada Kaprugina, encarregada de organizar os novos residentes, lhe diz: “Havia espaço para 13 famílias somente nesta casa”, ao que Dr. Jivago responde: “Sim. Este é um acordo melhor, Camaradas. Mais justo”.
Por que a luta desses movimentos parece tão legítima apesar de ferir os direitos de propriedade? Eu ressaltaria dois aspectos: o urbanístico e o legal.
Em termos urbanísticos, promover a moradia em áreas centrais é interessante porque essas áreas contam com infraestrutura urbana abundante, como linhas de ônibus, estações de metrô, de trem, praças, calçadas, bibliotecas e equipamentos culturais. Promover a urbanização compacta, permitindo que habitantes preencham a infraestrutura existente, implica levar menos infraestrutura às periferias, desmatar menos áreas protegidas, andar menos de carro e poluir menos o ar, objetivos de uma cidade sustentável.
Por outro lado, em termos legais, reabitar espaços sem uso seria cumprir a função social da propriedade nos termos do Estatuto da Cidade e constituição de 1988, que inovou ao tentar respeitar os direitos de propriedade e, ao mesmo tempo, “desatravancar” as maneiras de promover o bem comum. As invasões chamam a atenção para o descumprimento dessa função. A questão da moradia é crítica nas grandes metrópoles — as desigualdades são tão marcantes que os cidadãos prejudicados se sentem legitimados em seu descumprimento das leis.
Por que é tão difícil cumprir a função social da propriedade? Instrumentos como o IPTU tentam combater a “especulação imobiliária”, que acontece quando os proprietários de imóveis (terrenos ou construções) mantêm esses ativos sem uso, esperando sua valorização. Na perspectiva individual destes proprietários, ao ocupar o espaço hoje ele perde a oportunidade de ocupar o espaço no futuro de forma mais rentável. Em economia isso se chama “custo de oportunidade”. Assim, estes proprietários estão “pegando carona” na promoção de um bem público, a infraestrutura urbana, e impondo externalidades negativas para os demais residentes, com o custo de estender a infraestrutura para outras áreas para atender a demanda do presente. Para internalizar essa externalidade impõe-se o IPTU progressivo, que ainda não encontrou regulamentações eficazes.
Trazendo essa discussão para as áreas centrais, onde os poucos terrenos sem edificações são estacionamentos, a questão do IPTU progressivo pode ser focada nas unidades já construídas. Nesse caso, lembremos de algumas especificidades do caso brasileiro. Primeiro, os custos de manter um imóvel vazio são baixos e, mesmo com o IPTU, muitos proprietários são inadimplentes e assim permanecem sem perder a propriedade. Além disso, os ganhos da valorização futura podem ser muito maiores que um aluguel baixo no presente e, devido à ineficiência jurídica, alugar no presente pode representar um risco de não conseguir tirar os inquilinos do imóvel no momento mais propício para vendê-lo.
A questão das amenidades urbanas, o conjunto de benfeitorias urbanísticas de um bairro, é extremamente pertinente no caso dos centros “antigos”. A escolha de manter esses centros como bairros atraentes, onde o patrimônio histórico foi preservado, é do poder público. A Prefeitura de São Paulo já divulgou intenções de implementar programas de renovação urbana do centro algumas vezes. Portanto, haveria motivos para os donos de imóveis manterem seus imóveis vazios, esperando esses investimentos públicos chegarem e os preços dos imóveis aumentarem. Assim, deveríamos buscar sinergia nas ações de renovação urbana e cobrança de IPTU progressivo.
Ao mesmo tempo, cabe colocar outra discussão relevante: a taxa de vacância do mercado imobiliário nunca deverá ser nula. Quando uma propriedade é listada no mercado, leva algum tempo até o proprietário encontrar o comprador ou inquilino. A vacância tem um papel importante: é entre as unidades vagas que os consumidores podem adaptar melhor sua escolha às suas preferências. Há uma taxa de vacância natural na economia, derivada das fricções do mercado como custos de busca, imperfeição de informações e custos da burocracia que incapacitam o ajuste do mercado somente pelos preços. Quando algum bairro possui um estoque habitacional diversificado, assim como um conjunto de potenciais moradores também diversificado, o processo de busca é mais lento, pois deve-se olhar mais unidades até encontrar a adequada. Em 2010, três pesquisadores ganharam o prêmio Nobel de economia devido à sua pesquisa que descreve esses custos de busca, principalmente no mercado de trabalho.
Outro ponto importante de se mensurar a taxa de vacância natural do estoque imobiliário é que, ao serem constatados desvios desta taxa, chega-se a indícios de especulação imobiliária, podendo identificar os locais onde realmente há retenção de estoques visando a valorização futura de ativos. Este dado permite ao poder público identificar quando uma decisão privada é ótima socialmente, justificando quando o mecanismo do IPTU progressivo, por exemplo, deve ser aplicado.
Esta análise deve sempre levar em conta os movimentos naturais do mercado imobiliário. Isto é, há uma demora em novas unidades serem construídas em resposta a maior demanda. Ao mesmo tempo, há uma demora para unidades já construídas “saírem” do mercado ou mudarem de uso quando não há mais demanda.
Esta análise deve sempre levar em conta os movimentos naturais do mercado imobiliário. Isto é, há uma demora em novas unidades serem construídas em resposta a maior demanda. Ao mesmo tempo, há uma demora para unidades já construídas “saírem” do mercado ou mudarem de uso quando não há mais demanda. Assim, há um complicador adicional na especulação imobiliária: os descompassos causados por esses ciclos de expansão e retração. Para o mercado das áreas centrais, normalmente bairros em processo de desvalorização mas com expectativa de revalorização, vale a pena relembrar os custos de ajustar a oferta habitacional à demanda vigente.
Portanto, para melhorar a eficiência do mecanismo de alocação de moradias vagas para potenciais moradores, abrem-se dois caminhos: corrigir desvios da taxa de vacância natural (a especulação imobiliária) e diminuir a própria taxa de vacância natural, diminuindo os custos de busca e a “agilidade” do ajuste da oferta e demanda.
Fiz um trabalho empírico em que encontro evidências de três tipos de fatores influenciando a taxa de vacância: características dos domicílios, “mobilidade” das famílias e características da vizinhança. Por exemplo, velhos edifícios de apartamentos são mais difíceis de serem reformados e suas características são mais difíceis de serem adaptadas às novas necessidades dos moradores. Por outro lado, a “mobilidade” das famílias se traduz em quantas unidades habitacionais devem trocar de mãos. Temos aí tanto a pressão demográfica pela formação de novos domicílios, quanto a troca de uma unidade já habitada por outra, motivada por mudanças na preferência deste morador. Para localidades em que há mais famílias “entrando” no mercado ou mais famílias querendo trocar de moradia, há mais processos de busca devendo ser efetuados. Por fim, amenidades urbanas específicas de algum bairro o fazem mais atraente que os demais, diminuindo a sua taxa de vacância. Mesmo não mensurando a taxa de vacância natural, foi possível identificar vestígios de que há desvios da taxa, indicando excesso de vacância em São Paulo.
Em resumo, vale lembrar que as cidades são objetos complexos e as soluções para seus problemas não podem ser simplistas. Após o próximo Censo, lá por 2022, teremos mais uma vez a contabilização das moradias vagas e este número vai nos afligir bastante quando comparado com o novo número do déficit habitacional. Enquanto não nos preocupamos com esse novo número, muitas famílias estão se preocupando com as chuvas que podem soterrar ou inundar suas casas, ou com as poucas oportunidades de trabalho e emprego que seus filhos têm acesso ao viver na periferia.
Vanessa Gapriotti Nadalin é doutora em teoria econômica pela Universidade de São Paulo e pesquisadora da área urbana do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) desde 2009.
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uma pergunta: tem como saber quantas dessas habitações estão fechadas por vontade do dono, e quantas estão fechadas por problemas burocráticos, principalmente por influência do IPHAN?
Pensemos na grande intervenção em política urbana a título de função social da propriedade no Brasil até hoje: a lei do inquilinato de Vargas. Ao controlar aluguéis e proibir despejar o inquilino (uma intervenção menor do que simplesmente expropriar o imóvel), o que aconteceu foi um sufocamento do mercado, com queda do investimento na construção de moradias. O resultado? Autoconstrução, e, principalmente, a favelização. Sentimos essa herança indesejada da intervenção pública até hoje. Vejamos ainda outras passagens de política pública de habitação até hoje: conjuntos habitacionais (a la Cingapura), que reproduziram os mesmos problemas dos projects; MCMV, que inflacionou (para todos) os preços dos terrenos, expulsando muitos a título de beneficiar poucos (lembrando que os critérios para inclusão no programa, pasme, não eram exatamente impessoais…); o BNH, e a sua política concentradora de renda. Mesmo nos dias de hoje, a intervenção a título de função social “light” que é realizada, por exemplo, no rent control de Nova Iorque, tem diversos problemas, o menor dos quais é a corrupção. Se isso não funciona nos EUA, por que funcionaria no Brasil, com capacidade institucional bem menor. Ah, lembrando que o movimento dos sem teto, como foi doloridamente lembrado nos últimos dias, está a reboque de um partido (até outro dia, pensávamos que eram dois…). Enfim, o histórico brasileiro de intervenção nessa área é terrível, não há motivos para crer que o país tenha capacidade institucional para bem executar essa política (vide interferências partidárias), ainda que ela fosse boa (não me parece que é).
Resposta da autora: O artigo fala no iptu progressivo como maneira de aumentar os custos de deixar um imóvel vazio, para estimular os proprietários a recolocar esse imóvel no mercado, ou seja, aumentar a oferta. Não se trata de controle de aluguéis, instrumento sobre o qual há algum consenso indicando que este restringe a oferta habitacional.
Esse raciocínio é estático. Efeito dinâmico: sabendo do risco de ser expropriado, se investe menos no mercado imobiliário e todos ficam pior. Aliás, falando no mercado de Moscou (e da URSS), que foi a fundo atrás da “função social da propriedade”, pesquise sobre o quê Paul Seabright e Michael Heller tem a dizer sobre a política habitacional soviética. Parece que não deu muito certo…
Resposta da autora: O artigo está advogando exatamente contra a expropriação, a favor da manutenção dos direitos de propriedade. É sobre como recursos como o estoque habitacional podem ser melhor alocados considerando os mecanismos de funcionamento do mercado habitacional.
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uma pergunta: tem como saber quantas dessas habitações estão fechadas por vontade do dono, e quantas estão fechadas por problemas burocráticos, principalmente por influência do IPHAN?
Pensemos na grande intervenção em política urbana a título de função social da propriedade no Brasil até hoje: a lei do inquilinato de Vargas. Ao controlar aluguéis e proibir despejar o inquilino (uma intervenção menor do que simplesmente expropriar o imóvel), o que aconteceu foi um sufocamento do mercado, com queda do investimento na construção de moradias. O resultado? Autoconstrução, e, principalmente, a favelização. Sentimos essa herança indesejada da intervenção pública até hoje. Vejamos ainda outras passagens de política pública de habitação até hoje: conjuntos habitacionais (a la Cingapura), que reproduziram os mesmos problemas dos projects; MCMV, que inflacionou (para todos) os preços dos terrenos, expulsando muitos a título de beneficiar poucos (lembrando que os critérios para inclusão no programa, pasme, não eram exatamente impessoais…); o BNH, e a sua política concentradora de renda. Mesmo nos dias de hoje, a intervenção a título de função social “light” que é realizada, por exemplo, no rent control de Nova Iorque, tem diversos problemas, o menor dos quais é a corrupção. Se isso não funciona nos EUA, por que funcionaria no Brasil, com capacidade institucional bem menor. Ah, lembrando que o movimento dos sem teto, como foi doloridamente lembrado nos últimos dias, está a reboque de um partido (até outro dia, pensávamos que eram dois…). Enfim, o histórico brasileiro de intervenção nessa área é terrível, não há motivos para crer que o país tenha capacidade institucional para bem executar essa política (vide interferências partidárias), ainda que ela fosse boa (não me parece que é).
Resposta da autora: O artigo fala no iptu progressivo como maneira de aumentar os custos de deixar um imóvel vazio, para estimular os proprietários a recolocar esse imóvel no mercado, ou seja, aumentar a oferta. Não se trata de controle de aluguéis, instrumento sobre o qual há algum consenso indicando que este restringe a oferta habitacional.
Esse raciocínio é estático. Efeito dinâmico: sabendo do risco de ser expropriado, se investe menos no mercado imobiliário e todos ficam pior. Aliás, falando no mercado de Moscou (e da URSS), que foi a fundo atrás da “função social da propriedade”, pesquise sobre o quê Paul Seabright e Michael Heller tem a dizer sobre a política habitacional soviética. Parece que não deu muito certo…
Resposta da autora: O artigo está advogando exatamente contra a expropriação, a favor da manutenção dos direitos de propriedade. É sobre como recursos como o estoque habitacional podem ser melhor alocados considerando os mecanismos de funcionamento do mercado habitacional.