Moradia digna e direito à cidade antes e depois de desastres naturais
Foto: Thiago Guimarães/Prefeitura de Canoas

Moradia digna e direito à cidade antes e depois de desastres naturais

A importância da moradia digna e do direito à cidade ficaram mais evidentes depois das chuvas no Sul do Brasil. Políticas públicas que conciliem a habitação com outros setores, como a urbanização de favelas em São Paulo, podem nos dar pistas de como centrar esforços na concretização destes direitos.

20 de maio de 2024

Enquanto acompanhamos os desdobramentos das chuvas no Rio Grande do Sul, contabilizamos as perdas no estado. Muitos são os traumas que atingem os gaúchos. Até 16 de maio, data em que este texto foi escrito, 151 pessoas haviam morrido e outras 104 estavam desaparecidas. Além disso, mais de 600 mil pessoas tiveram que deixar suas casas. Sem contar com os transtornos psicológicos que acompanharão muitas das vítimas pela vida toda.

A perda repentina da moradia traz implicações que vão muito além da falta de abrigo. Perder uma casa significa também não ter mais um direito básico – o direito à moradia – nem um importante meio de acessar a cidade.

É importante lembrarmos que a Constituição Federal de 1988 estabelece a moradia como um direito social de todos os brasileiros. Isso significa que é dever do Estado – entendido em seus níveis municipais, estaduais e federal – garantir a moradia a todos por meio de políticas públicas. Depois de situações extremas como as cheias nas cidades gaúchas, é essencial que autoridades governamentais planejem a assistência às famílias a curto e a longo prazo. Nesse contexto, além de ações emergenciais, cabe ao Poder Público desenhar e implementar políticas públicas que não apenas garantam maior segurança à moradia, mas que evitem prejuízos ao direito de todos à cidade.

Mas o que quer dizer ter direito à cidade? Comecemos imaginando o que é não o ter. Ou o que é perdê-lo. 

Ser privado de um lugar para morar implica perder também o acesso à cidade e a chance de usufruir dela. O conceito de “direito à cidade”, proposto pelo sociólogo Henri Lefebvre em meados do século XX, chama a atenção para a possibilidade de explorarmos o que as cidades nos oferecem para além de oportunidades de trabalho e de geração de riquezas. Entendemos que as cidades são mais do que um meio econômico, e podem – e devem – oferecer moradias dignas, escolas e hospitais de qualidade e oportunidades de lazer.

A população do Rio Grande do Sul sofreu um baque duplo, já que muitos gaúchos perderam suas casas e muito do que suas cidades podem oferecer. As enchentes revelaram uma vulnerabilidade urbana gigantesca.

Precisamos ter em mente que, com ou sem eventos climáticos extremos nos ameaçando, a concretização e a manutenção do direito à moradia digna precisam vir acompanhadas de outras garantias. A política pública habitacional deve ser implementada junto a outras políticas, que, seguindo a lógica de associação entre o morar com dignidade e o acesso pleno à cidade, em última análise, permitem um maior bem-estar nos centros urbanos.

Leia mais: Reavaliando a política habitacional: o acesso à moradia através da infraestrutura

O Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009 e recentemente relançado pelo Governo Federal, tem o objetivo de garantir o direito à moradia para famílias de baixa renda. Entretanto, nos primeiros anos, muitos empreendimentos foram construídos em terrenos distantes dos centros urbanos e de empregos, serviços e equipamentos urbanos.

Em contraste, há iniciativas de urbanização de favelas que não priorizam as remoções de famílias para conjuntos habitacionais periféricos. Pelo contrário, a principal diretriz é consolidar – pavimentar vielas, instalar iluminação pública e equipamentos essenciais – as comunidades, que, em muitos casos, estão em localizações relativamente próximas de empregos ou ao menos a redes já estabelecidas de transporte público. Nesse sentido, podemos nos voltar a experiências recentes de urbanização de favelas em São Paulo. Projetos como os concebidos para a Favela do Sapé e do Real Parque foram além da chamada provisão de novas unidades habitacionais.

Em 2008, o Sapé abrigava 2.360 famílias, das quais 450 estavam em áreas de risco de alagamentos ou deslizamentos. O esgoto a céu aberto, que desembocava no córrego que corta a comunidade, tornava a situação de centenas de pessoas ainda mais dramática. Também em 2008, 1.110 famílias moravam em condições precárias no Real Parque.

Conforme revelado em pesquisas acadêmicas, as obras, realizadas ao longo dos anos 2010, trouxeram benefícios como a construção de quadras, ciclovias e espaços comerciais para moradores. O Córrego do Sapé passou por um processo de despoluição e registrou melhorias na qualidade de suas águas. Além disso, 462 apartamentos foram entregues nesta favela e 1.246 unidades foram construídas no Real Parque. A ideia foi que se pudesse desfrutar do espaço urbanizado a partir do morar, mas não apenas dessa maneira.

Vale reforçar que, dentro da lógica de consolidação das comunidades urbanizadas, as casas removidas são prioritariamente aquelas em áreas de risco. As chuvas, cada vez mais fortes em função das mudanças climáticas, costumam invadir as moradias na beira de córregos e causar deslizamentos em áreas íngremes. Se não houver reocupações nessas áreas – o que infelizmente é comum no pós-obra, em muitos casos –, em tese as favelas urbanizadas se tornam mais resilientes a eventos climáticos extremos.

Obras de urbanização no Sapé. Foto: Guilherme Formicki
Real Parque depois das obras de urbanização. Foto: Guilherme Formicki

As experiências do Sapé e do Real Parque, entretanto, ainda não foram ideais. Isso se deu porque os projetos originais, que previam as construções de uma biblioteca pública no Sapé e de uma unidade básica de saúde no Real Parque, não foram implementados à risca. A permanência dos moradores nos apartamentos novos também não se garantiu, já que contas como água, luz, gás e condomínio passaram a representar um grande ônus no orçamento de muitas famílias. Por fim, a Prefeitura perdeu o controle da gestão dos espaços comerciais no Real Parque, o que, na prática, resultou no comando pelo crime organizado.

Isso não significa que a urbanização de assentamentos precários deva ser posta de lado no Brasil. A cada nova experiência, podemos aprender com os erros das anteriores. E com casos de outros países, como Medellín, que implementou intervenções nas suas comunas – o nome local das favelas – desde os anos 1990, colhendo bons resultados.

Leia mais: Podcast #90 | Urbanização de favelas

Embora os direitos à moradia digna e à cidade estejam longe de serem plenamente concretizados nas nossas cidades, podemos aprender com algumas experiências. E, depois do evidenciado por casos como a catástrofe que atingiu o Rio Grande do Sul, podemos aprimorar essas políticas a partir de novos contextos e de novas necessidades.

A importância da moradia digna e do direito à cidade ficam ainda mais evidentes no caso gaúcho. A tendência é que nos lembremos mais e mais dessa importância conforme as mudanças climáticas avancem.

Ações de adaptação ao avançar do clima extremo também vão se tornar cada vez mais importantes. Diversas ações e políticas, a partir de agora, precisam caminhar lado a lado.

Guilherme Rocha Formicki é doutorando em Planejamento Urbano e Regional na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Arquiteto e urbanista formado na FAU-USP, cursou o mestrado em Planejamento Urbano pela Universidade de Columbia (EUA). Lá, ganhou o prêmio Charles Abrams pela dissertação com o maior comprometimento com justiça social. Guilherme trabalhou na Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo entre 2014 e 2016, com atuação na urbanização de sete favelas das zonas Sul e Oeste da cidade.

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