Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Compreender a construção do hábito é um passo importante na promoção de ações para a mobilidade sustentável.
7 de novembro de 2022É notório que cidades em todo o mundo precisam empreender esforços para que mais pessoas optem pelos meios mais sustentáveis de transporte — a caminhada, a bicicleta e o transporte coletivo — em detrimento de carros e motos. Mas o que nos leva a escolher um meio de transporte em vez de outro? Quais fatores estão por trás da nossa escolha? Será que são, de fato, decisões conscientes ou apenas “hábitos automáticos”? Compreender este processo é passo importante na promoção de ações para a mobilidade sustentável.
A opção por um determinado meio de transporte é resultado de um processo que envolve diferentes variáveis, como nossas experiências anteriores, nossa memória — nem sempre muito confiável —, acesso à informação, percepções, crenças, preferências e o motivo do deslocamento em questão.
Por exemplo, para muitos, a bicicleta pode não parecer uma opção viável para ir ao trabalho ou ao local de ensino. Talvez pela ideia desagradável de chegar suado, por não saber o trajeto mais seguro para o deslocamento, pela indisponibilidade de paraciclos no destino ou por uma combinação entre esses e, quem sabe, outros fatores.
Na realidade, esse processo de escolha começa ainda antes. Envolve fatores externos, como nossa origem e destino — onde estamos e aonde vamos —, e se temos que levar uma filha ou filho à escola no meio do caminho.
É influenciado pelas restrições de tempo e recursos, se o deslocamento será de dia ou à noite — o que pode impactar, em especial, as escolhas de mulheres e pessoas LGBTQIA+. E é influenciado pelo motivo da viagem — se o deslocamento não for indispensável, podemos, inclusive, optar por ficar em casa.
Com o passar do tempo, o processo de escolha vira um hábito automático: deixa de ser avaliado e até mesmo percebido. Mas, eventualmente, o “curso habitual” pode ser interrompido por algum acontecimento que favoreça — ou obrigue — um novo olhar para a realidade à nossa volta e a reavaliação de nossos comportamentos. Um acontecimento disruptivo, como, por exemplo, uma pandemia.
Entre muitas outras consequências, a crise sanitária da Covid-19 forçou muita gente a redefinir a maneira como vivia e se deslocava. Cientistas comportamentais referem-se a esse fenômeno como “fresh start effect” (“efeito do novo começo”).
Ele ocorre quando um evento disruptivo estabelece um marco temporal, que separa os comportamentos passados dos novos — muitas vezes, ainda aspiracionais, referentes a como desejamos ser no futuro.
Em 2020, uma pesquisa da Universidade Católica do Chile com apoio do WRI Brasil retratou a transformação gerada pela Covid-19 nas perspectivas de milhares de pessoas a respeito da mobilidade e do trabalho em nove cidades latino-americanas, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre.
Mais de 50% dos respondentes reduziram a frequência de uso do transporte coletivo, e o trabalho de casa, antes inimaginável, se tornou a parcela mais significativa da distribuição modal em quase todas as cidades. Perguntadas sobre o que desejavam para o futuro do trabalho, menos de 5% das pessoas indicaram um modelo totalmente presencial, e a maioria gostaria de trabalhar três ou mais dias de casa.
Se concretizadas, essas tendências transformariam significativamente a mobilidade como a conhecemos. Elas resultam, em grande parte, de uma mudança de percepções e crenças e da busca por informações sobre alternativas de transporte. Quem não conhece ao menos uma pessoa que abandonou o transporte coletivo, ou que virou um ciclista entusiasmado, ou que não gostaria de voltar ao escritório de jeito nenhum?
Essa mudança de hábitos pode ser explicada em cinco estágios: pré-contemplação, contemplação, preparação, ação e manutenção. Olhemos para a escolha por uma mobilidade urbana mais sustentável.
No primeiro estágio, de pré-contemplação, o tema pode não ser percebido como relevante, talvez por desconhecimento sobre o assunto. As pessoas que optam por usar o carro em todos seus deslocamentos provavelmente não saibam — ou não parem para refletir — que mais de 1,3 milhão de pessoas morrem por ano em sinistros de trânsito, principalmente em veículos privados. Nem que o trânsito é a maior causa de morte entre jovens de até 29 anos. E não sabem que o setor de transportes é responsável por 60% das emissões urbanas de gases de efeito estufa.
Talvez elas saibam que vivemos uma emergência climática, que torna urgente a mudança para tecnologias de transporte mais limpas. Mas não pararam para pensar que isso inclui uma transformação nos hábitos mais rotineiros da população — como o ir e vir do trabalho ou até a padaria da esquina. No estágio pré-contemplativo, as pessoas simplesmente tendem a se deslocar da mesma forma (hábito) que faziam no passado, sem refletir se de fato é a escolha mais lógica no presente.
No segundo estágio, de contemplação, as pessoas ainda não usam meios de transporte mais sustentáveis, mas os percebem na rua e têm alguma opinião sobre eles, embora não os considerem uma opção viável. Muitas pessoas têm amigos que pedalam, têm curiosidade de experimentar a bicicleta ao perceber a presença crescente de ciclistas nas ruas, mas ficam com receio de experimentar.
No terceiro estágio, preparação, as pessoas já venceram a desconfiança e experimentaram, pela primeira vez, algo de que acabaram gostando. É o caso daquela pessoa que não pedalava, mas, em um final de semana qualquer, com as ruas abertas para as pessoas — e fechadas aos carros — e com a possibilidade de usar uma bicicleta compartilhada, resolve passear pela cidade.
No quarto estágio, de ação, as pessoas começam a usar de forma mais rotineira o meio de transporte — talvez sempre em um determinado dia ou para uma atividade específica. Com o tempo, o hábito se consolida, e chega-se ao quinto estágio, o de manutenção. No caso da mobilidade urbana, a adoção e manutenção de hábitos mais sustentáveis é muito mais do que uma vitória pessoal: ganham a cidade, o clima, o meio ambiente, a economia e a sociedade.
Para atingirmos a desejável mudança de hábitos de mobilidade sustentável, será necessário que as pessoas se permitam experimentar novos meios de transporte. Esta mudança, entretanto, também depende de fatores externos, para além das nossas percepções, crenças e outras questões pessoais. É necessário criar condições não apenas para a adoção de um novo hábito, mas também para sua manutenção.
O poder público desempenha um papel fundamental ao, por exemplo, promover leis e políticas que incentivem meios de transporte mais sustentáveis, construir mais faixas dedicas ao ônibus e ciclovias e planejar, qualificar e fiscalizar o transporte coletivo. Funciona.
A inauguração do Move, o sistema BRT de Belo Horizonte, levou 25 mil pessoas a trocarem o carro pelos novos ônibus. As ações de promoção da bicicleta no Brasil — como a disseminação das ciclovias e das bicicletas compartilhadas — vieram acompanhadas de notável aumento no uso da bicicleta. A renovação do transporte coletivo no país e a adequação da infraestrutura cicloviária às melhores práticas internacionais ainda podem fazer muito para estimular hábitos sustentáveis.
Outro ator importante é a iniciativa privada. Empresas não determinam como nos deslocamos até o local de trabalho, mas suas políticas e benefícios influenciam a escolha. Por exemplo, se aos funcionários é oferecida a opção entre vale-combustível e estacionamento gratuito ou transporte coletivo com desconto em folha de até 6%, o que está nas entrelinhas? Que ir de automóvel é um melhor negócio.
Como incentivar hábitos mais sustentáveis nesse cenário? Isso também se estende às viagens a negócio. As pessoas tendem a aderir à política padrão. Por isso, fazer da mobilidade sustentável o padrão no ambiente corporativo é uma ação promissora.
Do ponto de vista individual, é preciso, antes de tudo, contemplar escolhas mais saudáveis para você, sua cidade e o planeta, para então se preparar, agir e, se tudo der certo, consolidar novos hábitos. A mudança de hábitos não ocorre da noite para o dia, é um processo gradual — mas é preciso começar.
Na próxima vez que você se deslocar, seja ao trabalho, mercado, padaria ou academia da esquina, reserve um momento para refletir sobre outras opções de transporte e esteja aberto a experimentá-las.
Avalie as políticas de transporte da empresa em que trabalha, e se as políticas públicas implementadas pela sua cidade caminham na direção da sustentabilidade. Independentemente do padrão de deslocamento que você tem hoje, é possível começar a mudança de hábitos a qualquer momento.
Publicado originalmente em WRI Brasil em setembro e 2022.
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