Lima e a descentralização do transporte coletivo
Imagem: Alex Proimos/Flickr.

Lima e a descentralização do transporte coletivo

Como se contrói um desenvolvimento voltado para o transporte coletivo em uma cidade predisposta à informalidade e mudando a cada dia?

17 de junho de 2013

O NextCity, que já havia defendido a desregulamentação do transporte coletivo no ano passado, acaba de postar uma história bastante completa sobre o sistema de Lima, que desregulamentou o transporte em 1991, removendo barreiras de entrada para competidores privados assim como controle de preços das passagens.

O texto cita várias situações interessantes que não devem surpreender os leitores frequentes deste blog. Na minha tradução:

“O sistema, com todo seu caos, também fornece transporte barato e de sobra para a classe trabalhadora da cidade, indo para lugares (e mantendo tarifas mais baixas) que os sistemas formais de muitas outras cidades.”

E continua:

“Como se contrói um desenvolvimento voltado para o transporte coletivo em uma cidade onde o desenvolvimento parece naturalmente predisposto à informalidade, crescendo nas periferias e mudando a cada dia? Assim é como Lima tem crescido nas últimas décadas — e como o sistema privado de ônibus, com todos os problemas que ele causa para a cidade como um todo, tem tido sucesso por sua adaptabilidade e agilidade.

“Tem um motivo pelo qual o transporte funciona da maneira que é em Lima”, diz McConville. “A flexibilidade do sistema, sua cobertura — muita gente que precisa do serviço são as comunidades pobres na periferia da cidade. Estas comunidades estão mudando o tempo todo. É muito difícil de atendê-las com um sistema formalizado.”

Um grande motivo pelo qual o número de usuários de transporte coletivo aumentou drasticamente foi precisamente pelo modo como o sistema funciona. Ônibus privados vão diretamente onde estão as pessoas, e cobram o que elas conseguem pagar. Formalizar o sistema pode ser um risco que vale a pena tomar, mas não deixa de ser um risco.

“O desafio que Lima tem é de [reformar o sistema e ainda] manter os 80% de moradores que usam transporte coletivo,” diz Tapia. Parte de o que fez a rede de ônibus privado tão atraente foi sua capacidade de se adaptar para a população expansiva de Lima. Antes da entrada dos ônibus privados, os moradores da cidade — especialmente aqueles nas periferias — tinham acesso inadequado ao transporte.”

E para concluir (e vamos comparar isso com a situação brasileira):

“Este sistema serviu a cidade nos últimos 20 anos, e manteve preços estáveis por mais de uma década. Por outro lado, no ano passado o Metropolitano [nova linha pública de Lima] aumentou suas tarifas no BRT para tornar a linha lucrativa. O aumento de 1,50 para 2,00 soles (R$ 1,50) na tarifa única da linha principal torna o Metropolitano quase o dobro do preço dos ônibus privados.”

O artigo, por outro lado, cita alguns problemas que surgem com este sistema, e cito-os abaixo com maneiras muito simples de mitigá-los:

Acidentes causados por “corridas a passageiros”

Uma solução já citada neste blog é a de “direitos de calçada,” pois o problema surge pelo fato de a rua ser pública. Se determinadas linhas, principalmente as que trabalharem com veículos grandes, tiverem suas próprias paradas, mesmo que uma ao lado da outra, elimina-se os problemas gerados por esse tipo de concorrência. Além disso, empresas deveriam ser severamente penalizadas se forem identificadas como responsáveis por terem causado um acidente de trânsito, criando um sistema de incentivos para a boa condução.

Ameaças de “máfias” do transporte em Lima

Não vejo este problema como uma falha de um mercado competitivo per se, mas uma falha de segurança pública ao permitir ameaças sociais por grupos terroristas. É uma assunto que surge quando falamos sobre perueiros no Brasil, mas que aqui está relacionado ao fato de que o transporte coletivo privado é crime, atraindo para este mercado grupos que já se envolvem com outras atividades ilícitas.

Poluição

Quando desregulamentaram o transporte em Lima o número de ônibus multiplicou por quatro. De início vejo este aumento como positivo: mais pessoas tendo acesso à transporte coletivo e, principalmente, menos pessoas optando pelo transporte individual, o que resulta em menos poluentes.

Mas poluição que surge, principalmente com as vans antigas, certamente é uma externalidade que poderia ser mitigada. Uma forma simples de resolver isso seria apenas exigir revisões periódicas nos veículos, assim como são feitos com todos os carros que circulam na cidade, garantindo segurança e níveis toleráveis de poluentes.

O histórico da desregulamentação na capital peruana mostrou alguns problemas, mas tem correções fáceis e cria uma dinâmica impossível de ser replicada por qualquer sistema formalizado. Lima é uma grande metrópole, com políticas e problemas urbanos que se assemelham às brasileiras, e em um momento de revisão de conceitos de transporte coletivo por todo nosso país, sem dúvida é um modelo a ser considerado.

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  • Olá meus amigos. Sou peruano vivo na Lima. Moro na parte este da cidade. Eu quero lhes contar acerca de minha caótica e bela cidade. Lima é ingovernável desde que tenho memória. Temos un dos passages de coletivo máis baratos , comparado ao nosso salário mínimo ou aos preços internacionáis de coletivo. Só México tem un passage máis barato do que o nosso. Ainda assim México subsidia o seu combustível. Y a China, mas eles fabrican carros. México e China, dois potencias manufatureiras y subsidiadoras. Perú só tem peruanos, huehuehue. Ainda máis. O governo peruano impoe un imposto sob o combustível contaminante. Pronto veremos no Perú uma queda do uso do diésel, para transporte. Nao é problema para os taxistas porque ninguém que faz serviço de taxi utiliza gazolina. Todos utilizam GNV ou GLP. E os micros, onibuses, todos eles vao a mudar diésel por combustível menos contaminante. O SIT “metropolitano” o BTR é uma estafa. E un roubo porque é caro demáis além de ser un monopólio de prefeitos , municipios y contratistas. Eles monopolizan as rutas, as vías. Isso faz tao caro seu serviço. Um abraço.

  • Anthony, fiquei curioso com essa história de Lima e dei uma pesquisada na web. As primeiras impressões não são boas:

    http://www.guardian.co.uk/world/2012/sep/11/lima-peru-public-transport-reform
    http://wbi.worldbank.org/sske/case/modernizing-lima%E2%80%99s-public-transit-system
    http://intiaperture.blogspot.com.br/2010/07/risks-of-public-transportation-in-lima.html
    http://archive.unu.edu/unupress/unupbooks/uu23me/uu23me0j.htm#transport
    http://rovingreporter.areavoices.com/2011/10/07/combi-culture-the-chaotic-world-of-lima-public-transit/
    http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20487609

    Tem de tudo aí… desde a confusão e dificuldade de compreensão por estrangeiros até tuberculose nos usuários. Passando pelos acidentes, poluição e criação de máfias que você mencionou.

    A minha pergunta é: até que ponto é possível mitigar esses problemas com uma mínima intervenção estatal, que mantenha um nível de competitividade e incentivos dentro do setor, mas que também não passa por ideias libertárias mais radicais como privatização de todas as ruas e espaços públicos?

    • Bernando,
      Começando pela poluição, concordo plenamente com a regulação proposta no artigo do Guardian. Quanto ao trânsito, acho difícil isso ser causado por ter mais gente em transporte coletivo do que menos.

      Linhas vazias simplesmente não existem em um sistema como este, pois causam prejuízo. O problema de trânsito surge devido a 2 motivos. Primeiro, a densidade demográfica baixíssima da cidade (3x menos que são paulo, 10x menos que NYC), o que cria uma cidade totalmente espraiada nas periferias e certamente é um motivo regulatório. Segundo, como qualquer outro bem público, as ruas são oferecidas gratuitamente à população, fazendo com que os custos infraestrutura de trabalho das empresas e de transporte dos motoristas seja socializada. Cidades como Milão, Estocolmo, Cingapura e Teerã resolveram isso por taxas de congestão de trânsito.

      O BRT citado pelo Banco Mundial foi um fracasso, como comentei em uma outra postagem. A obra foi superfaturada, a capacidade dele estava na metade do esperado e as tarifas eram o dobro do preço dos “colectivos” privados. O governo teve que proibir o trânsito dos colectivos na rota do BRT para que ele tivesse melhor aproveitamento.

      O blog Inti Aperture fala como se o problema dos acidentes fosse causado pela desregulamentação, mas ao mesmo tempo cita que 7 mil motoristas andam sem carteira de motorista. Problemas relativos à segurança e fiscalização vão existir seja qual for o sistema, pois sempre teremos milhares de agentes públicos e privados dirigindo nas ruas.

      O site unu.edu faz a mesma crítica do governo de Lima: a situação está um “caos” e tem transporte coletivo demais. No Brasil é estranho ouvirmos que existe transporte coletivo demais (a ideia não é sempre aumentar?), e percepção de “caos” é natural na observação de qualquer sistema complexo e descentralizado. Os urbanistas modernistas quiseram organizar o “caos” urbano das nossas cidades e resultou em absurdos como Brasília. E em Lima resultou em absurdos como o BRT.

      Quanto à dificuldade de se adaptar para turistas, também não vejo isso como um grande problema. Turistas devem se informar e estudar as regras básicas locais antes de visitar um lugar novo e diferente, como qualquer outra coisa. A língua também é um sistema descentralizado que é compreendido por todos moradores, e não vejo porque transformar isso em algo mais acessível à turistas. Existem cidades onde as pessoas comem coisas extremamente esquisitas para o gosto brasileiro – também um sistema descentralizado – e nem por isso é um problema que deve ser adaptado para quem vem de fora.

      Quanto à tuberculose, o problema deve ser provavelmente em relação à poluição. Sou favorável à inspeção veicular, como comentei antes.

      Obrigado pelo comentário, é uma questão muito interessante e desafiadora!

      Abraço!

  • Muito interessante, mas fiquei com sérias dúvidas quanto à integração intermodal, por exemplo Metrô-Ônibus-Van-Balsa-Trem, ou mesmo de uma linha para a outra, uma vez que as operadoras possuem incentivos para “prender” os usuários dentro dos seus serviços e não que eles passem a usar conjuntamente serviços de outros prestadores. Você possui mais informações a respeito? Abs

    • Erick,
      O caso de Lima mostrou que o tamanho dos veículos diminuiu bastante com a desregulamentação, imagino que pela facilidade de entrar no mercado (são muito mais baratas) e também pela capacidade de fazer viagens ponto a ponto.

      Pensando em uma estação de metrô e de trem, acho difícil, imagino que não sejam modais que competem com vans. É extremamente comum termos táxis (usando um veículo menor como exemplo) fazendo ponto em estações de trem e de metrô. Imagino que com as vans aconteceria a mesma coisa. Não seriam sistemas concorrentes diretos, mas complementares. E se a mesma empresa for proprietária de vários modais certamente terá incentivos para fazer a integração entre as linhas.

    • Oi Marcos, obrigado pelo comentário e pelo texto de referência, o qual desconhecia.

      Para falar a verdade não li o livro, apenas o paper e alguns artigos, mas minha impressão inicial é a seguinte em relação às criticas demonstradas:

      Primeiro, quanto a dificuldade de adicionar novas paradas, acredito que grande maioria dos novos entrantes no mercado não seriam empresas que utilizam grandes veículos que requerem paradas de ônibus, mas veículos menores que tem a flexibilidade de parar em qualquer lugar “legal” sem grande prejuízo ao trânsito. Este é o resultado que se viu em maioria dos sistemas que foram, de certa forma, desregulamentados e, também, de países sem uma aplicação de legislação de transporte como países em desenvolvimento da América Central e da Ásia. Isso significa que grande parte dos ônibus, inclusive, seriam substituídos por linhas com veículos menores fazendo rotas mais personalizadas, abolindo a necessidade de algumas das paradas.

      Além disso, não necessariamente toda nova empresa precisaria de uma nova parada, já que provavelmente seria muito comum o compartilhamento de paradas por diferentes empresas, criando acordos entre elas para ganhos de eficiência: pelo que entendo há um custo que deve ser pago à cidade para o uso dessa parada, e muito provavelmente haja ganhos caso duas companhias entrem em acordos para dividir o mesmo espaço de forma menos predatória.
      Quanto ao último comentário sobre a dificuldade de aprovação dessas paradas em diversos órgãos públicos, me parece não um problema do sistema proposto mas sim dos entraves burocráticos que normalmente são gerados neste tipo de órgão.

      Quanto à ausência de serviço, qualquer referência de cidade que possui a operação de transporte informal prova que qualquer linha pode ser criada justamente pela ausência de uma barreira de entrada neste mercado para prover o serviço. A permissão de operação de forma descentralizada por pequenos operadores é a única forma de permitir capilaridade viária no serviço, diferente das grandes rotas de ônibus do poder público: qualquer indivíduo que possua um veículo, qualquer que este seja, pode ver qualquer rota como uma oportunidade de negócio. Com o uso de aplicativos que hoje se espalha pelo mercado de transporte isso se torna ainda mais simples e diminui a assimetria de informação entre o usuário e o provedor de serviço. O crítico seleciona uma determinada rota como um exemplo para provar contra esta situação, mas caso indivíduos sejam permitidos para operar em escalas menores – caronas – entre os aeroportos provavelmente essa rota virá a existir por ser uma conexão entre aeroportos.

      Por fim, o crítico fala sobre os salários dos motoristas, como se eles obrigatoriamente tivessem que manter o padrão de classe média que esses motoristas tinham no passado. No entanto, me parece mais relevante perceber que a diminuição no salário destes motoristas ao longo o tempo se explica pela diminuição de seu valor comparativo perante a sociedade: cada vez é mais fácil de achar gente disposta a trabalhar como motorista e cada vez menos é um trabalho especializado e diferenciado relativa às outras atividades da sociedade. Motoristas de empresas públicas normalmente ganham mais pelo seu poder sindical que obriga as contratantes a pagarem valores maiores, aumentando artificialmente seus salários embora haja pessoas que ganham muito menos dispostas a trabalhar por valores menores (a exemplo das empresas privadas). Seja qual for o resultado, a crítica me parece mais uma defesa do salário mínimo da categoria do que contrária ao sistema de curb rights propriamente dito.

      Fico a disposição para mais trocas caso você tenha interesse!

    • A ideia citada pelo autor que criou esta tese é de leiloar abertamente a concessão destes espaços por períodos determinados, com direito de revenda, aluguel e de criar parcerias nestes espaços para a mesma finalidade. Veja mais detalhes sobre isso no subtítulo “Auctioning Curb Zones” deste link: http://www.independent.org/publications/tir/article.asp?a=410

      É um sistema minimamente regulado neste sentido, mas que teria possibilidade de adaptação dentro dele mesmo (pela possibilidade de troca/venda/aluguel das licenças) e ainda iria concorrer abertamente com vans e táxis, que não precisariam de terminais fixos dada a facilidade de carga e descarga.