Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Neste momento em que o Egito e a Indonésia planejam transferir suas capitais, é bom olhar para a história de outros países que fizeram isso, como Brasil, Nigéria e Costa do Marfim.
29 de fevereiro de 2024Transferir uma capital é uma decisão urbana complexa com várias dimensões e consequências, tanto para a capital antiga quanto para a nova. Pode ser impulsionada por fatores políticos, econômicos, sociais e outros, tendo implicações urbanas e arquitetônicas para os residentes. Esses fatores incluem a localização, o planejamento, o projeto dos edifícios, o propósito da antiga capital, as condições climáticas e a separação dos centros político/administrativos de cidades culturais e econômicas.
Em face da discussão de temas urbanos, o Egito está construindo uma nova capital para aliviar a população e o estresse urbano no Cairo. Da mesma forma, a Indonésia está planejando uma nova capital em resposta aos desafios enfrentados por Jacarta, como a poluição, o congestionamento de tráfego e o aumento do nível do mar. É valioso olhar para outros países do Sul Global que transferiram suas capitais, observando as lições arquitetônicas e urbanas aprendidas com suas experiências.
Brasília é uma capital famosa construída para esse propósito. Ela foi estabelecida na década de 1950 com o objetivo de transferir a capital do Rio de Janeiro para uma localização mais próxima do centro geográfico do país. Da mesma forma, Abuja, a capital da Nigéria, foi transferida de Lagos em 1991 por razões semelhantes, como a superpopulação e o fato de Lagos ser um centro cultural e econômico onde as funções administrativas lutavam para prosperar. Outro exemplo é Yamoussoukro, a capital da Costa do Marfim, que foi fundada em 1983 para substituir Abidjan como a capital econômica.
Essas capitais no Sul Global levantam questões sobre o papel de uma cidade como centro econômico, cultural ou político/administrativo. Elas destacam como uma abordagem singular e de cima para baixo pode influenciar o resultado de novas cidades e levantar questionamentos sobre o tipo de arquitetura adequada para uma cidade puramente administrativa. Este artigo explora esses conceitos examinando e comparando as ações e respostas dessas três capitais.
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Projeto de Cima para Baixo vs Crescimento Adaptativo
Novas capitais foram criadas com base em um modelo racional e abrangente, enfatizando planos grandiosos. Especialistas implementaram abordagens de cima para baixo no planejamento, visando romper com a tradição e iniciar uma mudança social. O caráter da cidade foi determinado por arquitetos e urbanistas, em vez de evoluir organicamente ao longo do tempo. Isso muitas vezes resultou em um descompasso entre a cidade e seus habitantes devido à escala dos projetos.
Exemplos disso podem ser vistos no planejamento da cidade de Brasília, projetada por Lúcio Costa, e Abuja, projetada pela International Planning Associates (IPA). No caso de Yamoussoukro, a capital da Costa do Marfim, o ex-presidente Houphouet-Boigny supervisionou o processo de planejamento. Ele insistiu em vários projetos arquitetônicos e urbanos em larga escala para acomodar necessidades políticas, educacionais e turísticas. No entanto, ele intencionalmente excluiu espaços para atividades econômicas locais e mercados tradicionais, por considerar seu status baixo demais para Yamoussoukro. Como consequência, durante a crise econômica dos anos 1980, os trabalhadores da construção civil, que eram os principais residentes da cidade, a abandonaram, deixando-a vastamente despovoada. Desde então, a cidade luta para crescer de forma orgânica e atrair residentes de outras partes do país, principalmente devido à natureza de sua estrutura urbana.
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Dependência dos Carros
A dependência dos carros em novas capitais é uma tendência comum que promove o uso de automóveis e separa diferentes tipologias. Essas cidades favorecem fortemente o uso de carros, implementando projetos de estradas que incluem viadutos, vias duplas e vias de várias faixas. Como resultado, a arquitetura da cidade torna-se mais dispersa. A presença de grandes estacionamentos cria barreiras entre pedestres e edifícios, enfatizando ainda mais a dependência dos carros. Essa dependência de veículos automotores aliena a importância da circulação de pedestres. Sem sistemas de transporte público adequados, os residentes respondem adquirindo mais carros particulares, o que torna impossível navegar pela cidade sem eles.
Brasília e Abuja servem como exemplos de cidades projetadas para proprietários de carros, com pouca atenção dada ao transporte público. Esse design centrado em carros leva a uma alta dependência de veículos automotores entre a população urbana, marginalizando pedestres e excluindo grupos sociais como os pobres e os deficientes. Também dificulta a viabilidade de planos futuros para um transporte comunitário eficaz.
Edifícios Abandonados em Antigas Capitais
Quando as cidades perdem seu status de capital, muitas funções administrativas e políticas se mudam para a nova capital, deixando os edifícios arquitetônicos que as abrigavam vazios. Infelizmente, o pós-mudança frequentemente é mal planejado, resultando em prédios abandonados. O Rio de Janeiro, Brasil, é um exemplo disso, com prédios administrativos que ficaram obsoletos quando Brasília se tornou a capital. No entanto, à medida que a população de rua no Rio de Janeiro cresceu, projetos organizados de ocupação surgiram na tentativa de reutilizar esses prédios abandonados como moradias para os pobres. Através das políticas adotadas, os ocupantes têm o direito legal de permanecer após cinco anos, embora estabelecer esse direito na prática seja desafiador.
No caso de Lagos, a antiga capital da Nigéria, há inúmeros prédios abandonados como consequência da perda do status de capital. No Central Business District (CBD), há aproximadamente 60 prédios variando de 5 a 20 andares de altura. No entanto, o governo negligenciou esses edifícios e impede que ocupações utilizem esses espaços. Essa situação resultou em um tecido urbano repleto de arquitetura não utilizada.
Escala Arquitetônica e Incrementação
Novas capitais frequentemente priorizam o projeto de prédios governamentais, estruturas monumentais e edifícios emblemáticos para mostrar poder e louvar a sociedade. Essa abordagem para o desenvolvimento da cidade cria estruturas grandiosas que aprimoram a relação entre os residentes e os elementos da cidade. No entanto, esses empreendimentos ambiciosos devem considerar as realidades econômicas dos países em desenvolvimento do Sul Global. Não é incomum que projetos arquitetônicos monumentais sejam inadequados para o clima econômico desses países. Um exemplo disso é Yamoussoukro, onde muitos projetos de empreendimentos propostos foram deixados incompletos devido a uma crise econômica incerta. Como resultado, a cidade agora consiste em terrenos dispersos com apenas algumas estruturas arquitetônicas grandiosas.
É aconselhável que os planos arquitetônicos ajustem suas expectativas de construções modernas para se alinharem com as realidades econômicas desses contextos. Isso inclui estruturar projetos que acomodem a incerteza, ao mesmo tempo em que buscam aspirações icônicas. Ao incorporar estratégias de design incremental, comumente usadas no desenvolvimento de habitação social, na construção de edifícios icônicos, pode-se alcançar uma abordagem mais sustentável e viável.
Desmatamento
O Brasil é conhecido por sua grande e extensa floresta. No entanto, no caso de Brasília, 73 por cento do Cerrado local foi destruído durante o estabelecimento da nova capital. Esta destruição incluiu prédios governamentais, áreas residenciais e comerciais, infraestrutura de transporte e outros desenvolvimentos necessários. Infelizmente, o projeto desses edifícios e da infraestrutura não se esforçou para substituir a vasta floresta que foi perdida, causando um impacto negativo no clima.
Aprendendo com as consequências do desmatamento em Brasília, as autoridades no desenvolvimento da nova capital da Indonésia garantiram que a maioria da terra planejada para urbanização consiste em plantações de eucalipto cultivado, em vez de florestas tropicais virgens. No entanto, grupos ambientais expressaram preocupações e exigiram a divulgação de avaliações de impacto ambiental antes que novos empreendimentos ocorram.
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