Qual a influência do coeficiente de aproveitamento sobre a mancha urbana?
Imagem: Filipe Karam/PMPA.

Qual a influência do coeficiente de aproveitamento sobre a mancha urbana?

Cidades que impõem restrições mais rígidas (menores CA máximos) possuem maiores áreas urbanas.

8 de fevereiro de 2023

Em setembro de 2022, Ricardo Carvalho e Leonardo Monastério publicaram o artigo FAR Regulations and the Spatial Size of Brazilian Cities. O trabalho, disponível no link abaixo, avalia a influência das restrições ao aproveitamento de terrenos sobre o crescimento da mancha urbana.

O termo FAR, ou floor area ratio, é conhecido no Brasil como coeficiente de aproveitamento máximo (CA máximo). Essa medida é a razão entre a área total que a lei permite construir em um terreno urbano e a área desse terreno. Assim, se um terreno de 200 m² tiver um CA máximo igual a 3, o edifício permitido para aquele local não poderá ter mais do que 600 m² de área construída.

Várias cidades brasileiras adotam restrições aos coeficientes de aproveitamento. Há muito se ventila a hipótese de que tais restrições provocam um uso ineficiente de terrenos bem localizados, o que aumenta a demanda por moradia nas bordas das cidades, e consequentemente estimula o crescimento espraiado da mancha urbana. 

Em seu artigo, os autores examinam as restrições ao CA máximo nas 325 maiores cidades do país. Conversamos com Ricardo Carvalho sobre as implicações do estudo para a política urbana brasileira.

Confira a seguir a entrevista com Ricardo Carvalho:

CP: De onde surgiu a ideia de estudar as restrições aos coeficientes de aproveitamento no contexto brasileiro?

Ricardo Carvalho: Percebemos que há pouquíssima evidência empírica sobre as consequências econômicas e sociais dos regulamentos de uso do solo no Brasil. Ao mesmo tempo, esse é um dos temas mais investigados na economia urbana. Estudar o funcionamento desses regulamentos é importante para compreender a organização espacial das cidades e para aprimorar políticas de planejamento urbano.

Caos Planejado: Para esse trabalho, vocês pesquisaram as restrições ao CA máximo nas 325 maiores cidades do Brasil. Foi muito difícil conseguir esses dados?

Ricardo Carvalho: Nós tivemos o apoio de um assistente de pesquisa. Através de um web scraping, ele buscou os coeficientes máximos de aproveitamento nos portais de leis dos municípios. Um dos complicadores é que não há uma padronização dessas leis. Além disso, às vezes os coeficientes estão nas leis de zoneamento dos municípios, às vezes no próprio Plano Diretor. Esse coeficiente, ou CA máximo, também é diferente em cada zona da cidade. Em nossa pesquisa, consideramos o valor máximo de CA encontrado em cada município.

Cerca de 40 das 325 cidades não tinham regulações de coeficiente de aproveitamento. Nós decidimos manter esses municípios na amostra por acreditarmos que eles podem mostrar uma dinâmica de uso do solo que seja nacionalmente relevante. Nós também realizamos testes de robustez, eliminando esses municípios, e os resultados se mantiveram consistentes. 

CP: A pesquisa foi financiada pela ENAP – Escola Nacional de Administração Pública. Você pode nos contar um pouco sobre como a pesquisa de temas de política urbana tem despertado o interesse da Administração Pública?

Ricardo Carvalho: O que a gente nota é que órgãos como a ENAP e o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) têm procurado realizar avaliações de políticas públicas em diversas áreas, como saúde, habitação, educação, etc, o que inclui as políticas urbanas. Então nossa pesquisa está dentro de um interesse maior que é entender como as políticas públicas funcionam.

O IPEA, por exemplo, tem a diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais, e eles têm interesse em compreender questões relacionadas ao urbanismo e ao planejamento. São poucos pesquisadores que trabalham com Economia Urbana no Brasil, então podemos dizer que esse campo ainda está em fase embrionária, mas tem um futuro promissor.

CP: Um dado que nos chamou a atenção é que vocês afirmam que entre 1985 e 2020 a área urbana total brasileira cresceu 96%, ou seja, quase dobrou de tamanho. 

Ricardo Carvalho: Essa é uma informação obtida por dados de satélite do Mapbiomas que estão disponíveis ao público. Há técnicas para detectar, dentro de um município, se cada pixel da imagem corresponde a uma área urbanizada ou não. 

Depois da Constituição Federal de 1988, os municípios ficaram mais autônomos, e passaram a adotar mais regulamentações de uso do solo. Mas observe que, entre 1985 e 2020, a renda per capita do brasileiro aumentou, e a população urbana aumentou também, o que são dois fatores que contribuem para a expansão urbana. Não se sabe se as leis de planejamento urbano também tiveram impacto no crescimento da mancha urbana, e é nesse ponto que o trabalho tenta mostrar uma evidência.

CP: Em 1985, o Brasil já tinha cerca de 70% da sua população vivendo em zona urbana. Ou seja, a área urbana dobrou de tamanho para uma população que já era urbanizada, o que mostra que o êxodo rural não foi o principal impulsionador desse processo. Vocês conseguem apontar uma relação causal, ou seja, podemos afirmar que as regulações de uso do solo estão causando o espraiamento da mancha urbana?

Ricardo Carvalho: Eu sou muito cuidadoso ao afirmar que houve um efeito causal. Na verdade, eu encontro uma relação entre regulações de uso do solo e o aumento da área urbana. Não sabemos se o aumento de área urbana é um incentivo para que o município adote regulações de uso do solo ou se as regulações estão provocando o crescimento da mancha urbana. Não é uma mera correlação, mas para afirmar a relação causal precisaríamos de dados mais detalhados.

Nós usamos um conjunto de técnicas econométricas (como testes de sensibilidade e variáveis instrumentais) que permitem incluir outras variáveis na análise e afastar alguns problemas de endogeneidade. Nós sabemos, pelos modelos teóricos de Economia Urbana, que há outras variáveis que afetam o crescimento da mancha urbana, como população, renda per capita, renda agrícola e custos de transporte. Assim, a relação entre a regulação e a expansão urbana fica mais nítida. 

CP: Em linhas gerais, qual é a conclusão do trabalho quanto à relação entre coeficientes de aproveitamento e área urbanizada? 

Ricardo Carvalho: Nós mostramos que as cidades que impõem restrições mais rígidas (menores CA máximos) possuem maiores áreas urbanas. No decorrer do artigo, mostramos que essa relação é bem robusta. Em média, a redução de um desvio-padrão no CA máximo está associada a uma ampliação da mancha urbana em cerca de 12,4%. Também mostramos que a redução do CA máximo gera perdas econômicas para a sociedade na ordem de US$ 9,56 milhões por ano (o que é equivalente a 23% da arrecadação média de uma cidade com IPTU e ITBI) em decorrência da ampliação dos custos com transporte.

CP: No final do trabalho, vocês estimam o prejuízo causado pelas regulações em termos de custos de transporte. Como os coeficientes de aproveitamento afetam a mobilidade urbana?

Ricardo Carvalho: Nós usamos o modelo teórico desenvolvido por Alain Bertaud e Jan Brueckner (publicado em 2005 na Regional Science and Urban Economics). O ponto deles é que se você reduz o coeficiente de aproveitamento, isso leva a um aumento da área da cidade, o que faz com que as pessoas gastem mais tempo para se deslocar até o trabalho. É importante notar que o custo não só é financeiro, há também uma perda de tempo. 

CP: Além do aumento dos custos de transporte, há outras consequências do aumento da área urbana que não foram medidas neste trabalho. Você pode nos dar alguns exemplos?

Ricardo Carvalho: Uma área urbana maior está relacionada com maior poluição atmosférica e redução de áreas de vegetação nativa. Também espera-se que haja maior congestão de trânsito nas periferias da cidade. Além disso, a expansão urbana está ligada a um aumento dos assentamentos irregulares e gera um custo maior para prover infraestrutura e serviços públicos, como água, energia, coleta de lixo, saneamento, etc. Cidades espraiadas são cidades mais custosas.

CP: Considerando esse resultado, vocês acreditam que as cidades brasileiras deveriam revisar suas regulações? Quais as implicações do estudo para a política urbana?

Ricardo Carvalho: O nosso estudo sugere que as políticas de restrição de uso do solo podem gerar efeitos não esperados pelos planejadores e legisladores locais. Assim, antes de realizar modificações arbitrárias nos parâmetros urbanísticos ou a criação de novas restrições de uso do solo, os planejadores devem levar em consideração que isso modifica o comportamento dos indivíduos e o padrão de organização das cidades, trazendo custos relevantes. É necessário comparar esses custos com os potenciais benefícios. Acreditamos que as políticas urbanas e as leis de planejamento urbano precisam ser baseadas em evidências.

Sua ajuda é importante para nossas cidades.
Seja um apoiador do Caos Planejado.

Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.

Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.

Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.

Quero apoiar

LEIA TAMBÉM

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

  • Acho necessário apontar que é preciso ter capital financeiro para utilizar os CA para além de 1 até o máx. Isso significa dizer que o espraiamento das cidades em decorrência das restrições do CA máx. é um fato restrito a uma determinada camada social, porem outras questões mais relevantes não foram mencionadas na matéria, a exemplo dos vazios urbanos, especulação imobiliária, e exclusão de grande parte da população menos favorecida economicamente à participar do mercado imobiliário oficial, além, para finalizar, da ausência de políticas públicas de ocupação de edifícios vazios. A observar.