Impressões urbanas na literatura nacional
Imagem: Cristine Rochol/PMPA.

Impressões urbanas na literatura nacional

Para exemplificar como a literatura pode contribuir para o estudo urbano, reunimos aqui alguns escritores nacionais e as suas obras.

18 de junho de 2020

Para entender e amar cidades, você deve conhecer a literatura específica sobre o assunto, além de conhecer a urbe que mora e que visita — a pé, de carro, de transporte público, de bicicleta, etc. Além disso, outro modo de conhecer e amar cidades — e compreender a visão de uma época sobre urbanidade, seus valores e seus problemas — é por meio da leitura da literatura em romances.

Para exemplificar como a literatura pode contribuir para o estudo urbano, reunimos aqui alguns escritores nacionais e as suas obras.

Aluísio Azevedo

“Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação.”

O Cortiço

Aluísio de Azevedo é, talvez, o primeiro autor que vem à mente quando se pensa em questões urbanas na literatura nacional. Maranhense e radicado no Rio de Janeiro, então capital federal, o escritor se destacou na luta abolicionista e como pioneiro da corrente literária naturalista.

Em “O Mulato”, Aluísio de Azevedo destaca a cidade colonial clássica de São Luís, assim como a sua elite burguesa. Descreve muito bem o tipo de moradia predominante da burguesia local, em casarões em que o térreo era destinado ao comércio, e os andares superiores à moradia. Além disso, é possível perceber que o antigo caminho grande, atual Rua Grande, era a ligação da então “cidade” com os subúrbios— zona de expansão da cidade, que na época, ainda era composta quase que exclusivamente por sítios.

Todavia, sua principal obra é “O Cortiço”, de onde retiramos o trecho que inicia este tópico. Nesta obra, o autor narra o cotidiano dos trabalhadores que habitavam os cortiços do centro do Rio de Janeiro, então capital federal, destacando as dificuldades e obstáculos que essa população enfrentava. De maneira sutil, intencionalmente ou não, Azevedo mostrou os pontos que justificavam a escolha dos moradores por aquele tipo de habitação, mesmo que esta fosse considerada insalubre pela elite intelectual da época. E o principal fator está ligado ao encurtamento da distância entre a moradia e o trabalho. Ermínia Maricato, em “As ideias ainda fora do lugar e o lugar fora das ideias”, destaca a intrínseca relação entre o trabalho e a moradia e o peso que esse fator tem na escolha das pessoas por habitar determinada região. Tal elemento é tão importante que as favelas (aglomerados subnormais) geralmente são criadas em locais próximos à cidade formal (região de emprego), ainda que as habitações desses locais sejam de risco (em morros) ou apresentem má qualidade ambiental e de saneamento (palafitas).

Enxergando apenas a ponta visível do problema, as edificações sem ventilação e que não recebiam luz solar de forma direta, os planejadores urbanos da época, inspirados nas reformas urbanas de Paris de Hausmann e levando em consideração a Teoria da Miasma, derrubaram os cortiços do centro do Rio de Janeiro — que deu origem às primeiras favelas na então capital brasileira —, precarizando ainda mais a moradia daquela população.

Jorge Amado

“Omolú mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram e Omolú era uma deusa das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então vinham os homens da saúde pública, metiam os doentes num saco, levavam para o lazareto distante. As mulheres ficavam chorando porque sabiam que eles nunca mais voltariam.”

Capitães de Areia

Jorge Amado é um dos maiores escritores nacionais, com grande destaque no século XX. Há mais de 30 obras assinadas pelo escritor baiano, que foram traduzidas para dezenas de idiomas e foram adaptadas para o cinema e televisão — Tieta do Agreste, Gabriela, Capitães de Areia, Dona Flor e seus dois maridos, etc. Também foi deputado federal pelo Partido Comunista e imortal da Academia Brasileira de Letras.

Seus livros destacam o cotidiano das cidades da Bahia, especialmente nas cidades de Salvador e Ilhéus. Muito engajado nos problemas sociais do Brasil, da Bahia e de nossas cidades, retratava a desigualdade urbana em seus livros — os recém-criados subúrbios, e as moradias operárias — como em seu livro “Suor”, que narra histórias de gente simples que moravam em um cortiço de Salvador. O nome do livro é referente ao cheiro da habitação. O trecho selecionado foi extraído de “Capitães de Areia”, sexto romance do autor, de 1937. No trecho, é possível verificar o surto de varíola que ocorria na cidade de Salvador, vitimando, especialmente, as populações mais vulneráveis da cidade, que habitavam — e habitam — regiões sem infraestrutura sanitária adequada.

Por fim, devemos destacar a obra “Bahia de Todos-os-Santos”, em que Jorge Amado descreve diversas regiões da cidade de Salvador e as suas mudanças. “A Bahia te espera para sua festa mais quotidiana. Teus olhos se encharcarão de pitoresco, mas se entristecerão também ante a miséria que sobra nestas ruas coloniais onde começam a subir, magros e feios, os arranha-céus modernos”.

Euclides da Cunha

“A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelos cômoros, atulhando as canhadas, cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto nos pendores — tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo houvesse sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto. Não se distinguiam as ruas. Substituía-as dédalo desesperador de becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras orientando-se para todos os rumos, como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos…”

Os Sertões

Euclides da Cunha foi membro do exército, jornalista e escritor. Trabalhou para diversos veículos importantes, como “A província de S. Paulo”, atual “O Estado de S. Paulo”. Durante a Guerra de Canudos, foi enviado para a região a fim de documentar o conflito. Suas anotações sobre a guerra, sociedade e vida da região renderam a obra “Os Sertões”, um dos grandes livros da literatura nacional, especialmente por ser um dos pioneiros em relatar a negligência em relação a população sertaneja. A clássica frase “O sertanejo, é antes de tudo, um forte”, é de sua autoria.

Além disso, é possível perceber na obra de Euclides da Cunha, um retrato bastante fiel da construção de um assentamento informal. Você já viu uma favela ou aglomerado subnormal ser construído? Se inicia de forma rápida, até para que o seu propósito seja alcançado o quanto antes: um teto para se estabelecer, a esperança de ter uma ‘casa’, um lar. Em geral, a construção começa cedo, com o raiar do dia. Homens, mulheres, crianças — braços —  montam o pau-a-pique e toda a estrutura da casa, seu esqueleto, de forma rápida, seja para garantir logo uma proteção contra o sol e a chuva, seja para aumentar a chance de que a casa não seja derrubada pela polícia depois. Ao final do dia, as primeiras residências já estão bem encaminhadas. A casa — e a ‘vila’, demorará a ficar pronta —, e talvez nunca fique. Caso você nunca tenha visto, o trecho que encabeça esse tópico o ajudará.

Tal relato é tão forte que foi utilizado por Luís Kehl em “Breve história das favelas”. Afinal, a “fase transitória entre a caverna primitiva e a casa’, conforme destaca Euclides da Cunha, se encaixa em um entendimento sobre as casas em aglomerados subnormais. Repare que Euclides da Cunha não chegava a considerar, aquelas habitações, uma casa especificamente, apesar de estas servirem ao propósito que reconhecemos tradicionalmente como casa: o morar.

Por que Euclides da Cunha deixava essa lacuna em aberto? Talvez não enxergasse dignidade naquele tipo de moradia, em pessoas que, em sua visão, não desfrutavam da vida, mas que durante quase toda a totalidade de sua vida, apenas lutavam pela sobrevivência. Atualmente, diversos autores, cientistas urbanos e sociais, destacam que a moradia não se encontra apenas em uma edificação física, composta de paredes, portas, janelas e um teto, mas sim de um espaço que proporciona cidadania e a garantia de diversos outros direitos e serviços — trabalho, educação, saúde, lazer, transporte, etc. Talvez, por falta desses elementos, o escritor, séculos antes desse debate amadurecer aqui no país, já conseguia descrever de forma lúcida os problemas da habitação no país.

Ferreira Gullar

“O homem está na cidade como uma coisa está em outra e a cidade está no homem que está em outra cidade”

Poema Sujo — Um fragmento: “Velocidades”

José Ribamar Ferreira — Ferreira Gullar — foi um dos principais poetas brasileiros do século XX. Além de poeta, foi escritor, biógrafo, crítico de arte, tradutor, ensaísta e memorialista brasileiros, tendo sido um dos pioneiros do movimento do neoconcretismo. Imortal da academia da Academia Brasileira de Letras, deixou inúmeras reflexões sobre os nossos problemas sociais e, em uma sociedade que se urbanizou de forma rápida durante o século XX, as cidades não puderam ficar de fora.

Além da denúncia das desigualdades e os problemas que a urbanização brasileira impunha às populações mais pobres, o poeta reflete sobre o papel da cidade e o seu conceito. No poema destacado, que as cidades se movem em velocidades diferentes, destacando as particularidades de cada urbe e da ação do tempo na vida de uma cidade. Alcântara, antigo polo urbano importante do Estado do Maranhão, estagnou e, com sua população empobrecida, observa as grandes construções erguidas em outros tempos — igrejas, casarões e até mesmo palácios para receber a visita de um imperador que nunca aconteceu.

Das desigualdades presentes entre a mesma cidade, os espaços entre ricos e pobres. Essa última constatação não é sua exclusividade. Desde Aristóteles, essa percepção se faz presente no cenário urbano: “Em todas as cidades há três partes: os muito ricos, os muito pobres e os terceiros no meio destes”. Contudo, a reflexão de Ferreira Gullar é importante por trazer essa percepção para a realidade local e por notar uma acentuação entre as duas pontas — muito ricos e muito pobres.

Sendo assim, a literatura apresenta um importante subsídio para o estudo das cidades. Poemas e romances trazem impressões sobre as cidades e urbanidade de um modo diferente da literatura acadêmica, mas que podem acrescentar ou complementar bastante o estudo sobre o urbanismo, história das cidades e percepção sobre um ideal urbano de uma época.

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