Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Ocupações temporárias de edifícios, muitas vezes por coletivos de estudantes ou artistas, podem reverter os vazios urbanos.
23 de agosto de 2021Ruínas de construções elegantes ilustram de forma eloquente o pior que pode acontecer a uma cidade após o fim de um ciclo econômico. As famílias abastadas não têm mais dinheiro para manter seus casarões, e mesmo os edifícios da classe média são parcialmente abandonados quando seus donos, desempregados ou em dificuldades, mudam-se em busca de oportunidades noutros lugares.
Desocupado, sem uso, o patrimônio degrada-se lentamente. A história das cidades está repleta de exemplos, em todas as épocas e continentes: Roma ao fim da Antiguidade clássica, Veneza no início da Idade Moderna, Paraty após a mudança na Rota do Ouro, Detroit nos dias de hoje.
Esses exemplos extremos revelam uma dinâmica corriqueira, que acontece o tempo todo nas cidades: antigas formas de trabalhar, morar e viver são preteridas por outras, e o uso que se dava a determinados espaços construídos deixa de fazer sentido. Nessa circunstância, há dois caminhos a seguir: ou se permite que as construções ganhem novos usos ou elas ficarão desabitadas e tenderão a degradar-se.
Muitas vezes, as dinâmicas de mercado são suficientes para a renovação no uso dos imóveis — como no caso dos antigos casarões da avenida Paulista, em São Paulo, que já foram residência dos barões do café, depois converteram-se em agências bancárias e hoje, com a digitalização dos serviços financeiros, estão experimentando diversas novas vocações.
Outras vezes, a renovação não ocorre no curto prazo: o dono do imóvel demora a aceitar sua desvalorização, recusa-se a baixar o preço, não acha comprador e o imóvel acaba vazio. Como veremos mais adiante, na década de 1970, todo o Lower East Side da ilha de Manhattan, em Nova York, estava repleto de prédios abandonados — o bairro havia se tornado indesejável em razão de fatores como a alta criminalidade e a má zeladoria dos espaços públicos associados a uma recessão econômica.
Reverter os chamados vazios urbanos não é tarefa fácil, pois depende de ações em diversas frentes: o poder Executivo precisa melhorar a gestão das áreas públicas e a efetividade dos serviços; o Legislativo deve revisar as leis que dificultam a renovação nos usos dos prédios, como as leis de zoneamento, e considerar os incentivos e desincentivos fiscais; e órgãos de fiscalização como o Corpo de Bombeiros e as agências de proteção do patrimônio devem reavaliar suas normas para que estas não condenem as construções à ruína.
Além disso, se a dinâmica de preços do mercado não é suficiente para pôr em uso os imóveis ociosos, é preciso que o Estado aja — por exemplo, obrigando o proprietário de um imóvel a lhe dar uso, sob pena de sua desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, como já está previsto na lei brasileira. Em nossa Constituição, tais medidas são justificadas por promoverem a função social da propriedade, entendendo-se que a propriedade, ainda que pertença a uma pessoa ou empresa, também tem uma função social a cumprir, e que um imóvel urbano sem uso não cumpre tal função.
Apesar dos instrumentos urbanísticos previstos nas leis para fazerem valer a função social da propriedade, boa parte das grandes cidades brasileiras tem, hoje, muitos edifícios ociosos que se arruínam lentamente. Se a dinâmica do mercado imobiliário é lenta e o Estado demora a responder, a sociedade civil pode ter um papel a cumprir. Neste artigo, descreve-se como ocupações temporárias de edifícios, muitas vezes por coletivos de estudantes ou artistas, podem reverter os vazios urbanos, dar aos prédios a manutenção de que necessitam e interromper o processo de abandono e decadência de um bairro.
Na cidade de Genebra, na Suíça, as ocupações — chamadas pelo seu nome em inglês, squat — foram muito comuns na década de 1990 e início dos anos 2000. O movimento começou com jovens, geralmente universitários ou artistas, que viam de maneira crítica a ociosidade de diversos imóveis bem localizados da cidade.
A razoabilidade da denúncia desses jovens, assim como a visão de que conflitos violentos desnecessários deveriam ser evitados, fez com que a sociedade de Genebra tolerasse amplamente as ocupações, que chegaram a se espalhar por centenas de prédios. Além de serem usadas como moradias, as ocupações também abrigavam atividades culturais e sociais como shows e exposições, e operavam cafés, bares e outros serviços.
A mais famosa e longeva dessas ocupações chamava-se RHINO, sigla para Retour des Habitants dans les Immeubles Non-Occupés, ou seja, Retorno dos Habitantes aos Imóveis Não Ocupados, e durou de 1988 a 2007 (esta filmagem de 1993 mostra um pouco de seu dia a dia).
Além de moradia, havia cinema, café, restaurante e área para shows. Uma geração de jovens de Genebra se formou frequentando e habitando as ocupações, que eram áreas de efervescência cultural, grande diversidade social e financeiramente acessíveis para pessoas que, no mercado formal de moradia, só conseguiriam pagar alugueis em imóveis nas periferias, distantes dos bons serviços, infraestruturas e oportunidades que a cidade oferece.
Em Nova York, durante as décadas de 1970 e 1980, ocupações em imóveis vazios e devedores de impostos também foram comuns. Nos bairros do Brooklyn e Lower East Side, dezenas de prédios construídos no fim do século XIX estavam vazios e em processo de deterioração.
A prefeitura havia tornado-se proprietária da maioria deles, ao recebê-los como compensação quando seus donos não eram mais capazes de pagar os impostos devidos. Muitos desses imóveis, negligenciados também pela prefeitura, foram ocupados por movimentos de luta por moradia, algumas vezes levando à sua regularização.
A organização ACORN, por exemplo, negociou para que a prefeitura doasse 25 desses prédios, assim como recursos para sua reforma, para abrigar as pessoas que vinham ocupando 87 construções abandonadas no Brooklyn nos anos 1980.
A partir da década de 1990, conforme Nova York saiu de sua crise financeira e administrativa, a maioria das ocupações foram desfeitas, geralmente sem amparo legal para seus moradores. Exceções a essa regra foram as 11 ocupações do Lower East Side que, em 2002, foram regularizadas pela autoridade municipal em parceria com a organização Urban Homesteading Assistance Board.
O Lower East Side viveu um renascimento na década de 1990, e isso se deve, em parte, às ocupações. Seus jovens residentes deram vidas aos prédios e às ruas, os artistas construíram a imagem de um bairro criativo, bacana, trazendo novos moradores e comerciantes, atraídos por essa identidade.
Hoje, é um bairro de classe alta, com aluguéis caros e lojas acessíveis para poucos. A vitalidade das ocupações e seu caráter cultural alternativo foram muito importantes para tornar o bairro atraente outra vez.
Um dos casos mais ambiciosos de ocupação urbana é o de Christiania, um setor histórico e bem localizado, com área equivalente à de sete ou oito quarteirões, na região central da capital dinamarquesa Copenhague. O terreno e seus prédios pertenciam ao exército nacional, mas estavam abandonados e o ingresso ali era proibido, o que frustrava muitos cidadãos da capital.
Em 1971, um público de jovens, estudantes e artistas deram início a uma ocupação dos prédios. Após o fracasso de algumas tentativas de desocupar a área, o governo dinamarquês decidiu tolerar a ocupação e não interfere na autogestão do território. Christiania é, hoje, um dos locais mais visitados da Dinamarca por turistas, um bairro limpo, seguro e organizado.
No local, não se veem apenas jovens de visual alternativo: além de moradores idealistas de todas as idades que se instalam por lá desde a década de 1970, também é comum ver senhoras, executivos e grupos de turistas europeus passeando, curiosos com a experiência de vida comunitária.
No último censo do IBGE, em 2010, foram identificados mais de seis milhões de domicílios vagos no Brasil; além deles, há os imóveis comerciais e industriais vazios. Como resultado, muitas cidades brasileiras têm, hoje, milhares de construções ociosas ou mesmo abandonadas degradando suas áreas centrais.
Nessas situações, há um conflito entre interesses individuais e coletivos: por um lado, o proprietário do imóvel pode preferir mantê-lo vazio a alugá-lo ou vendê-lo por um preço que considera baixo; por outro, a sociedade vê como um desperdício que imóveis bem localizados fiquem ociosos, pois paga caro para dotar as áreas urbanas com infraestruturas como as redes de eletricidade, comunicação e transportes, e para atender essas áreas com serviços que vão da varrição ao policiamento.
Publicado originalmente em Arq.Futuro em 14 de abril de 2019.
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A regularização fundiária, que já seria normalmente problemática pela tendência a judicialização de eventuais litígios, se soma a esses outros problemas que dão mote a um processo ainda mais cruel de favelização e de precarização da moradia em eventuais ocupações.
Nesse contexto, o que se apresenta como uma pretensa solução para o não uso dos espaços vagos em nossas cidades em tal artigo na verdade é a NÃO SOLUÇÃO, sendo uma compactuação com tal política de caráter fisiológico.